Reportagens

As águas da cidade: gestão hídrica e planejamento urbano

Desde o excesso até a falta, os moradores das grandes cidades sofrem com a má gestão dos recursos hídricos

Júlia Mendes · Daniella Mendes ·
9 de outubro de 2024

As águas da cidade: gestão hídrica e planejamento urbano

Desde o excesso até a falta, os moradores das grandes cidades sofrem com a má gestão dos recursos hídricos

Nacionalmente conhecida pelo filme que retrata a evolução do crime no bairro, a Cidade de Deus foi ocupada por desabrigados de uma das piores chuvas do Rio de Janeiro no século XX. A “enchente do século” ocorreu na madrugada de 10 de janeiro de 1966, quando 60% dos bairros da cidade carioca foram atingidos por 245 milímetros de chuva. O evento provocou mais de mil desabamentos e deslizamentos, deixou mais de 30 mil pessoas desalojadas e cerca de 200 mortos. 

Apesar de terem se passado quase 60 anos, as chuvas fortes ainda impactam a vida da maioria dos cariocas. Problemas ambientais e sociais se relacionam na equação cujo resultado revela os mais afetados por enchentes, deslizamentos e pela falta de saneamento básico.

Vinicius Bertho pesquisa os impactos das chuvas na região onde está a Cidade de Deus e procura entender a sua relação com os fatores socioambientais locais. De acordo com ele, a forma que a cidade é dividida no Plano Diretor tem o poder de intensificar ou enfraquecer as diferenças sociais, pois é nessa divisão que a gestão determina o direcionamento de recursos públicos.

No caso da Cidade de Deus, bairro considerado mais pobre em relação aos vizinhos – como Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes – Vinicius conta que, no seu estudo, analisou os impactos nessas regiões durante a mesma chuva, no ano de 1988. Segundo ele, enquanto ruas ficaram alagadas por dias na Cidade de Deus e houve falta de luz por horas, os bairros mais favorecidos da região foram minimamente afetados, sem grandes impactos. Na Barra da Tijuca, por exemplo, os registros são de apenas lixo em maior quantidade na praia. “A chuva é democrática, mas os impactos não. Assim, vai chover quase que por igual na cidade, mas os impactos vão ser muito diferentes dependendo de cada local”, comentou Vinicius. 

Para além de eventos climáticos como as chuvas, a forma como a cidade é planejada, estruturada e construída também influencia diretamente a relação da população com outros tipos de acesso à água, como os rios, cachoeiras e praias. 

De acordo com o artigo “enchentes que destroem, enchentes que constroem”, de Lise Sedrez e Andrea Casa Nova Maia, as condições do ecossistema, como clima e geomorfologia, são tão importantes quanto as transformações provocadas nele, como aterros, canalização de rios e outras intervenções estruturais. 

Em regiões periféricas, a água é vista ou como um problema que pode causar alagamentos, inundações e deslizamentos, enquanto em regiões mais privilegiadas a água é vista como sinônimo de lazer e entretenimento. Ex-moradora do bairro de Realengo, na zona oeste do Rio, e pesquisadora do grupo de pesquisa Geomorphos, da UFRJ, Giovanna Ramos diz que a própria visão dos moradores do seu bairro sob essas fontes de água é diferente de áreas mais privilegiadas, como a Zona Sul da cidade – que abrange bairros como Ipanema e Leblon.  

“Enquanto parte da população vê a água de uma maneira quase que recreativa, como se fosse um refúgio da cidade metropolitana, muitos vão ter o rio como um transtorno. Porque é o rio que vai entrar dentro da casa ou que vai ser visto como um valão, o nome e a característica de como esse rio é tratado também vai mudar. Então o valor simbólico do recurso é muito diferente dependendo de qual local estamos falando”, explica Giovanna. 

Água como recurso público

Conhecida como “Lei das Águas”, a Lei nº 9433/1997 institui a Política Nacional dos Recursos Hídricos do Brasil e cria o Recurso Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. O principal objetivo da lei era estabelecer princípios básicos para a gestão de recursos hídricos, a partir da adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento, o reconhecimento da água como bem econômico e da importância da sua diversidade de usos, além da necessidade de um trabalho de gestão com participação social.

Apesar dos avanços trazidos pela legislação em relação ao planejamento e à gestão da água, algumas mudanças são necessárias, como explica a professora de Geografia da UFRJ, Mônica Marçal. Segundo ela, a Lei 9.433, assim como outras legislações ambientais, enxergam o bem da natureza apenas pelo recurso. Nesse caso, o rio é visto unicamente a partir do que oferece para a humanidade: a água.

“Claro que a gente precisa da água, mas para água continuar até cenários de 50, 100, 150 anos, como prevê a lei, precisamos entender o funcionamento da bacia hidrográfica como um todo, os níveis de canais do rio, como que é a sua trajetória de evolução […] Precisamos entender que um sistema é dinâmico e complexo”, comenta Mônica, que também é coordenadora do grupo de pesquisa Geomorphos. 

A forma como a legislação é estabelecida afeta a população, principalmente quando se trata da distribuição de água pela cidade, destaca a professora. Enquanto áreas mais favorecidas têm pleno acesso ao recurso hídrico até para o lazer, outras ainda sofrem com a falta de acesso a um direito essencial: o saneamento básico. 

Dados do Mapa da Desigualdade 2023, da Casa Fluminense, mostram que, dos 22 municípios da região metropolitana, 12 têm coleta e tratamento de esgoto abaixo de 5%, dos quais nove têm 0% de habitantes cujo esgoto é coletado e tratado. Apenas um município, Niterói, teve 100% da população com acesso a saneamento básico adequado.

Essa discrepância entre regiões é um reflexo da situação do Brasil como um todo, que detém cerca de 8% de água mundial de água doce, com 20% de sua água sendo distribuída. De acordo com o último censo do IBGE, cerca de 17% da população não é abastecida pela rede geral de água, e somente 64,69% está conectada à rede de esgoto. A região Sudeste foi a que apresentou a maior parcela da população em domicílios com coleta de esgoto (86,2%). Enquanto isso, a região Norte possui a menor taxa, com apenas 22,8% de casas com saneamento.  

“Estamos falando muito da Baixada do Rio de Janeiro, que é mais discrepante do resto da cidade, mas ainda assim é a região metropolitana do Rio de Janeiro, que foi a capital do Brasil e que é uma cidade turística e se projeta para o mundo. Ou seja, se uma metrópole ainda assim não consegue dar um tratamento de esgoto ou saneamento básico adequado à população, algo previsto em lei, que dirá o Brasil todo, um país tão grande, tão vasto e com tantas discrepâncias”, reflete Giovanna.

*Foto de capa: Delmiro Junior/Photo Premium/Folhapress

  • Júlia Mendes

    Estudante de jornalismo da UFRJ, apaixonada pela área ambiental e tudo o que a envolve

  • Daniella Mendes

    Jornalista pela Unicarioca, estudante de Geografia na UERJ e apaixonada pelas geociências e pela biodiversidade brasileira.

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