Um canto incomum ouvido numa área montanhosa do Acre levou à identificação de uma nova espécie. Ela vive em faixa de ocorrência muito limitada, o que aumenta sua exposição a projetos de infraestrutura, mudanças na proteção do território e efeitos do aquecimento global.
No fim de uma tarde abafada de 2021, depois de oito horas de barco rio acima até o remoto Parque Nacional da Serra do Divisor, no oeste do Acre, o biólogo e ilustrador Fernando Igor de Godoy só queria dar uma “passarinhada” rápida antes de escurecer. Foi então que, em meio à floresta, um canto chamou sua atenção.
“Quando eu ouvi, falei na hora: isso não existe. Não parecia a variação de nada conhecido, era alguma coisa nova”, relatou.
O som longo, agudo e metálico ecoava pela serra, mas não lembrava nenhuma espécie conhecida. Godoy gravou ali mesmo o que se tornaria o primeiro registro da sururina-da-serra, hoje descrita por um time de cientistas como Tinamus resonans, a mais nova integrante da família dos inhambus.
No mundo das aves, novas espécies muitas vezes vêm do refinamento de populações já conhecidas, apartadas por análises genéticas. Não foi o caso. A sururina tem plumagem, comportamento e vocalização únicos entre os tinamídeos, grupo de animais como os macucos, perdizes e codornas.

Sua cabeça exibe uma máscara cinza-ardósia escura contrastando com peito castanho-avermelhado e o dorso pardo uniforme, compondo uma “vestimenta” não usada por nenhum de seus parentes.
O canto – com notas longas e potentes, em sequências que podem ultrapassar 45 segundos – foi a pista mais forte. Uma vocalização tão distinta acendeu um alerta de que ali havia algo fora do comum.
“Os inhambus já nascem sabendo cantar. Eles não aprendem com o ambiente. Por isso, quando você escuta uma vocalização tão diferente, o alerta acende na hora”, explicou Godoy.
A descoberta começou durante um trabalho de Godoy como ilustrador para um guia de aves da Serra do Divisor, financiado por instituições brasileiras e estadunidenses. No campo, comunidades locais ajudaram a selecionar as espécies da publicação. Foi nessa época que topou com o novo inhambu.
Nos meses seguintes, pesquisadores que ouviram o áudio levantaram dúvidas e sugeriram ser uma variação de espécies conhecidas. O biólogo Luís Morais foi o primeiro a defender a novidade. No ano passado, conseguiu fotografar e filmar a ave, cujo nome científico lembra a reverberação do canto na morraria.
“Muita gente achou que eu estava ‘viajando’. Disseram que era variação, híbrido, um bicho cantando estranho. Foram poucos os que levaram a sério no começo”, lembrou Godoy.
Um mundo próprio
A sururina viveria apenas entre cerca de 310m e 435m de altitude, num mosaico de floresta úmida, solo raso e raízes expostas. Essa estreita faixa da Serra do Divisor abrigaria as estimadas 2.100 aves da espécie. Ainda não há registros dela fora dessa região.
Tal isolamento – onde a caça é rara e grandes predadores são escassos – explicaria seu comportamento tranquilo e a fácil aproximação com as pessoas. “Mas, essa docilidade não é regra, depende muito da pressão de caça. Onde o acesso é difícil, os animais tendem a ser mais tranquilos”, explicou Godoy
O comportamento dócil e o isolamento renderam à espécie o apelido de “dodô brasileiro”, mas esse era um pombo das ilhas Maurício, de outra família de animais. Mesmo assim, o paralelo vale como um alerta de que aves mansas costumam desaparecer quando chegam as estradas, caçadores e animais domésticos.

Rasgando o parque
Com 837,5 mil ha, o Parna da Serra do Divisor é uma das áreas mais intactas da Amazônia brasileira. Estimativas recentes indicam que quase toda sua cobertura florestal segue conservada, enquanto o entorno registra taxas de desmatamento bem maiores.
Ela abriga florestas com imponentes árvores, palmeiras, cipós, bambus, orquídeas e a singular vitória-régia. O ICMBio lista na área 1.233 espécies animais, como o macaco uacari, a onça-pintada, o quati, tartarugas, o boto-vermelho, o araçari-castanho e o peixe-boi.
Apesar desse patrimônio público, o parque enfrenta ameaças persistentes. Projetos de uma estrada e de uma ferrovia voltados à exportação de commodities por portos do Pacífico seguem vivos em órgãos públicos e nos congressos brasileiro e peruano.
Paralelamente, avançam propostas para rebaixar o parque à categoria de Área de Proteção Ambiental (APA), a categoria de unidade de conservação mais débil na legislação federal brasileira. A mudança abriria espaço para mineração, exploração madeireira e agropecuária.
O principal projeto rodoviário é a estrada binacional Cruzeiro do Sul (AC) – Pucallpa (Peru), na prática uma extensão da BR-364, cortando o Parna da Serra do Divisor e terras indígenas. Seu licenciamento ambiental federal está paralisado por decisões da Justiça Federal no Acre.
Para Francisco Piyãko, liderança do povo Ashaninka e nativo da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, os prejuízos socioambientais da obra superariam qualquer benefício. “É uma região extremamente sensível. Essa ligação não vai ajudar a região, vai só destruir”, afirma.

Segundo ele, também coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ), uma das principais ameaças é o avanço da criminalidade. A estrada conectaria o Acre a áreas peruanas já marcadas por exploração madeireira ilegal e plantios de coca.
“Você vê o narcotráfico se instalando, as facções circulando, porque virou uma fronteira internacional sem proteção”, descreveu.
Piyãko também questionou as promessas – sobretudo de políticos acreanos – de desenvolvimento econômico associado às obras. Como exemplo, ele citou a experiência ao longo da BR-364 – em obras desde os anos 1980 – onde a infraestrutura não teria melhorado a vida da coletividade.
“As cidades viraram só caminho. Cresceu a pobreza, gente sem ter onde morar, sem ter o que comer”, disse. “É muito mais discurso eleitoreiro, dizendo que vai tirar o estado do isolamento. O estado não está isolado, já existe uma ligação com o Pacífico, por Assis Brasil (AC) e Puerto Maldonado (Peru)”, disse.

Ameaça silenciosa
Além das obras de infraestrutura e das motosserras, a crise global do clima também pode afetar espécies vivendo em condições muito específicas, como a sururina-da-serra. Afinal, como ela já ocupa o terreno mais alto disponível, não teria como subir e fugir do aumento da temperatura.
Incêndios florestais também são um perigo real e crescente pelas mudanças ambientais e degradação da Amazônia. Um único foco grande pode consumir boa parte do habitat da espécie, diante da sua ocorrência muito restrita.
“Se a Serra do Divisor vai bem, a sururina vai bem. Se o parque vira estrada, boi e fogo, não tem papel que resolva”, reforçou Godoy.
Ainda assim, a ave ainda não tem categoria oficial de ameaça. Os dados reunidos pelos cientistas serão avaliados numa oficina sobre aves amazônicas para propor um enquadramento – possivelmente como “espécie ameaçada”, dada a distribuição mínima e o risco climático.
Para Godoy, a descoberta também expõe o quanto a região permanece pouco conhecida. “Se uma ave dessa foi descrita agora, imagine a quantidade de animais, de plantas, de fungos, se tantos organismos para serem descritos”, projetou.
Diante disso, Piyãko afirmou que a Serra do Divisor devia ser reservada como uma fonte para o equilíbrio do planeta. “Muitas espécies hoje destacadas pela ciência são conhecidas há gerações pelos povos indígenas da região”, descreveu.

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