Reportagens

Custos e clima extremo podem mudar o mapa da soja no Rio Grande do Sul

Fontes avaliaram que isso abre espaço para economias mais adaptadas ao bioma, como pecuária, uvas e oliveiras

Aldem Bourscheit ·
17 de dezembro de 2025

Em Suspiro, localidade no interior de São Gabriel, as contas do produtor Antônio Marcos Siqueira não fecham mais. Depois de oito anos plantando soja, a falta de chuva o fez perder até metade da lavoura nas últimas safras. 

Em outras áreas do município gaúcho, nem valeria colher. “Tem gente que desiste até de ‘meter a máquina’ na lavoura”, contou. “O que tem ali não paga nem o óleo diesel”, relatou.

Na região, os cultivos já cobriram 136 mil ha, depois caíram para 118 mil ha. Agora se aproximam de 125 mil ha – abaixo do pico de anos anteriores. As causas incluem safras prejudicadas por questões climáticas e dívidas acumuladas pelos fazendeiros. 

“Esse ano praticamente não houve custeio para as lavouras. A maioria entrou em análise lá por abril e nunca foi fechada”, detalhou Vitor Hugo Ribeiro da Luz, técnico regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).

Essa história se repete em vários outros pontos da metade sul do Rio Grande do Sul, no Pampa, sintoma de um “combo” com clima mais instável, queda no preço da saca, altos custos de produção e crédito rural dificultado.

Lavoura de soja em Porto Mauá (RS), na fronteira com a Argentina. Foto: Leandro Kibisz / Creative Commons

A pressão sobre a rentabilidade da soja igualmente ajuda a explicar por que o debate sobre alternativas econômicas ganhou força, apontam dados do Observatório do Código Florestal. Entre 2015 e 2019, a saca oscilava entre R$ 60 e R$ 80, na época suficientes para manter margens apertadas de lucro. 

Com a retomada da demanda global pós-pandemia, gargalos logísticos e, depois, o choque adicional da guerra Rússia-Ucrânia, a saca variou de R$ 150 a R$ 190 entre 2020 e 2022. Isso criou um “colchão financeiro” que sustentou o avanço da cultura mesmo em áreas de maior risco climático. Mas, tal onda não perdurou.

Desde 2023, a soja opera, em média, entre R$ 120 e R$ 135 por saca, enquanto os custos de produção seguem elevados e o crédito rural ficou mais restrito. O resultado é um modelo sem preços para amortecer perdas, onde qualquer quebra de safra recai diretamente nos produtores.

Rotina de clima extremo

Relatos de técnicos e produtores gaúchos à reportagem apontaram que a soja ficou mais exposta porque a metade sul do estado é justamente uma região historicamente de maior risco hídrico e com solos muitas vezes mais frágeis. 

“O avanço da soja foi grande no Pampa e a dificuldade climática é maior do que na metade norte do Rio Grande do Sul”, resume o assistente técnico da Emater, Alencar Rugeri.

Ao mesmo tempo, estudos da UFRGS indicam que o estado conviverá nas próximas décadas com uma alternância entre secas severas e chuvas excessivas – um padrão associado à crise climática. Ou seja, esses riscos passaram de pontuais a rotineiros.

O resultado aparece nas estatísticas recentes. Conforme os técnicos da Emater, seis das últimas sete safras de soja no estado registraram maiores perdas por estiagem ou excesso de chuvas, com exceção apenas da safra 2020/2021.

Nas últimas safras, o Rio Grande do Sul se mantém como terceiro ou quarto maior produtor nacional de soja, usualmente atrás de estados como Mato Grosso e Paraná e, em alguns ciclos, também de Goiás.

Secas severas também se tornaram rotineiras em solo gaúcho. Foto: Fábio Pozzebom / Agência Brasil

Venenos sem barreiras

O avanço estadual da soja também choca com economias vizinhas. Na Campanha e em outras regiões gaúchas, produtores de olivas e frutas reclamam de prejuízos causados pela deriva de herbicidas hormonais, como o 2,4-D, usados para limpar o solo antes do plantio e extirpar plantas daninhas.

Esses produtos são voláteis e podem ser transportados pelo vento por dezenas de quilômetros, atingindo culturas sensíveis mesmo quando sua aplicação ocorre só dentro da lavoura de origem.

“As videiras começam a enrolar a folha, abortar flor e a produção cai”, explicou a presidente da Associação Vinhos da Campanha Gaúcha, Rosana Wagner. “Em 2024, eu perdi metade da produção”, contou a também diretora da vinícola Cordilheira, de Sant’Ana do Livramento.

A associação representa um setor que se estruturou a partir dos anos 2000, tornou-se uma economia relevante na metade sul do estado e, hoje, convive com uma insegurança permanente durante as pulverizações de venenos agrícolas.

Esse conflito chegou à Justiça e à esfera política. Há ações civis públicas, decisões judiciais proibindo esses agrotóxicos – que acabaram suspensas – e discussões acaloradas sobre decretos que criam zonas de exclusão para tais produtos químicos. 

“A simples troca do herbicida aumenta o custo em cerca de uma saca ou uma saca e meia por ha – é praticamente nada. Manter como está coloca em risco toda a fruticultura do estado”, ressaltou Flávio Obino, presidente do Instituto Brasileiro de Olivicultura (Ibraoliva).

Essa cultura se consolidou como uma das economias permanentes que mais avançaram no Rio Grande do Sul nas últimas duas décadas, especialmente no Pampa. Ao todo, 110 municípios gaúchos respondem por 65% da produção nacional do setor.

Parreiral afetado por agrotóxicos usados na soja e outras culturas. Foto: Michelle Rodrigues / SEAPDR/RS / Divulgação
Cultivo de olivas no Rio Grande do Sul. Foto: Unipampa / Divulgação

Vocação natural pecuária 

Para alguns produtores da metade sul, essa mudança já começou – menos por escolha e mais por esgotamento econômico. Em Santa Margarida do Sul, o produtor Maikon Bertolini relata que repetidas perdas tornaram a soja praticamente inviável em áreas mais frágeis.

“Desde 2020 são estiagens fortes sucessivas. No ano passado, não colhemos nem para pagar os arrendamentos”, disse. “Em 2023, a safra estava boa, mas a enchente na colheita impediu a retirada do grão”.

Diante desse cenário, inúmeras áreas antes ocupadas pela soja começaram a ser devolvidas pelos arrendatários, muitos já considerando migrar para outras atividades. 

Entre as alternativas mais citadas está a pecuária em campos nativos – não como um “retorno ao passado”, mas como a retomada de um modelo mais alinhado às características do Pampa.

“Aqui, se o produtor fica dois anos sem plantar soja, a terra volta a ser campo nativo praticamente sozinha”, afirmou Bertolini, ao descrever a rápida regeneração do campo e a reintrodução do gado em áreas antes dominadas pela lavoura.

Tal movimento ganha respaldo em iniciativas como a Alianza del Pastizal, onde cada fazenda deve manter ao menos metade da área com campos nativos e um acompanhamento técnico. O projeto reúne 422 produtores certificados em 54 municípios pampeanos, somando 206 mil ha de campo nativo conservado.

Para Pedro Pascotini, gerente da Alianza na ong Save Brasil, o avanço da agricultura ajudou a reforçar a lógica do projeto. “Quando a saca de soja chegou a quase R$ 200, a pressão econômica pela conversão de áreas aumentou e a pecuária extensiva se tornou uma ferramenta competitiva de conservação”, avaliou.

Sem adotar uma posição contrária à soja, ele observa que parte do cultivo avançou sobre áreas sem aptidão agrícola e que agora há sinais claros de recuo. “Essas áreas marginais estão ‘trocando de mão’, com arrendatários saindo e propriedades com potencial retornando à pecuária”, destacou.

A cultura gaúcha também está ligada às mudanças econômicas e ambientais em curso. Foto: Fernando Dias / SAPPSI/RS / Divulgação

Reforço do verde natural 

Na cidade ou no campo, a instabilidade climática não reduz a responsabilidade dos governantes. Pelo contrário, ela aumenta a urgência de se aplicarem instrumentos já previstos em lei para diminuir vulnerabilidades ambientais e sociais.

Nessa linha, a legislação florestal é uma das principais ferramentas para manter e recuperar Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais, que ajudam a estabilizar o solo, reter água, conter erosões e amortecer eventos extremos.

No Rio Grande do Sul, porém, sua implantação é letárgica. Dados do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) indicam que, entre cerca de 658 mil imóveis inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), apenas 14 concluíram a regularização – somando menos de 18 mil ha.

Para o Observatório do Código Florestal (OCF), isso desperdiça uma oportunidade concreta de aumentar a resiliência do estado. “O código não é só uma exigência ambiental. Ele é uma ferramenta de adaptação climática”, resume o secretário-executivo da entidade, Marcelo Elvira.

A imagem clássica do Pampa, próximo a Quaraí (RS). Foto: Fabio Olmos.

O futuro em jogo

Temporário ou permanente, o recuo da soja abre janelas de oportunidade para reorganizar o mosaico da agropecuária no Pampa, com menos monoculturas dependentes de agrotóxicos e mais atividades permanentes e compatíveis com o bioma.

Mas essa possível mudança ocorre sob alta pressão. Dados do MapBiomas indicam que a agropecuária já superou a área de vegetação nativa no bioma, cenário que ajuda a explicar o aumento de disputas por terra e água e tensões entre cadeias produtivas.

Nesse contexto, é preciso lembrar que os pastos nativos não são “vazios” improdutivos ou inferiores às florestas, mas são ambientes de alta biodiversidade com papel relevante no equilíbrio climático, sobretudo por armazenar carbono no solo e regular o ciclo da água.

Proteger esse patrimônio e reduzir a vulnerabilidade do território dependeria menos de novas leis e mais de aplicar as que já existem. Para o Observatório do Código Florestal, o Rio Grande do Sul desperdiça uma oportunidade concreta de adaptação ao avançar lentamente na implantação da legislação ambiental.

“Com todo o desastre que aconteceu [nas enchentes de 2024], a pergunta é: ‘tá esperando o quê?’”, questiona Marcelo Elvira, secretário-executivo da entidade.

A Associação dos Produtores de Soja do Estado do Rio Grande do Sul (Aprosoja/RS) e a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) não atenderam nossos pedidos de entrevista até a publicação da reportagem.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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