Reportagens

Macaco velho?

Primatólogos questionam descoberta de nova espécie de macaco-prego encontrada recentemente em Pernambuco. Animal já teria sido descrito por naturalista alemão.

Aline Ribeiro ·
19 de maio de 2006 · 18 anos atrás

O anúncio de que uma nova espécie de macaco-prego foi encontrada na Mata Atlântica pernambucana fez algumas sobrancelhas arquearem na comunidade científica. Primatólogos acreditam que a espécie descrita como recém-descoberta em artigo publicado na revista Zootaxa já é conhecida há pelo menos três séculos pelo nome Simia Flavia. “Se considerarmos as semelhanças, podemos dizer que esta é a mesma espécie descrita pelo naturalista alemão Schreber no século XVIII”, afirma o curador da Coleção de Mamíferos do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, Mario de Vivo.

O desenho de 1774 do naturalista Johann Christian Daniel von Schreber mostra aspectos em comum entre os dois animais. “A ilustração apresenta um bicho de cor amarela, com pouco ou nenhum tufo de pêlo e um arco branco em cima da cabeça. É muito parecido com o animal encontrado pelos pesquisadores”, opina Vivo. “Se eles fossem sistematas profissionais, teriam verificado melhor a literatura antes de afirmar que se trata de uma nova espécie”, critica.

De pelagem clara e pesando quase três quilos, o animal encontrado no nordeste foi batizado com o nome Cebus queirozi – uma homenagem à família Queiroz, proprietária da área onde foi achado. Conhecida na região de Pernambuco como macaco-galego ou macaco-loiro, a espécie foi descrita na revista Zootaxa por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco sob a liderança do professor Antonio Rossano Mendes Pontes, especialista em ecologia e conservação de mamíferos. Os cientistas teriam visto o bicho pela primeira vez em novembro do ano passado, quando se depararam com 18 animais. Hoje, acreditam que o grupo tenha mais de 30 exemplares e apontam indícios da existência de outras três populações no mesmo estado. “É uma descoberta espetacular, porque a espécie passou despercebida durante muito tempo”, diz Pontes.

Em xeque

Mas um estudo realizado pelo chefe do Centro de Proteção de Primatas Brasileiros (CPB) do Ibama, Marcelo Marcelino, em parceria com Alfredo Langguth, da Universidade Federal da Paraíba, pretende comprovar que a espécie encontrada é a mesma já descrita pelo naturalista alemão. Um artigo sobre a redescoberta do animal está previsto para ser publicado em junho no Boletim do Museu Nacional. A publicação desse novo trabalho pode invalidar o de Pontes. Se isso acontecer, a denominação Cebus queirozi será descartada e substituída pelo mesmo nome que o macaco ganhou ainda no século XVIII. “O pesquisador (Pontes) teve pressa para dizer que descobriu uma espécie. Esse foi o seu erro, porque além de ter se enganado ao dizer que o bicho era novo, fez um artigo cheio de falhas”, destaca Marcelino.

Segundo ele, a qualidade do trabalho é questionável, principalmente porque Pontes quebrou uma praxe do meio científico. Para escrever o artigo, não coletou nem disponibilizou em museu nenhum indivíduo da espécie. “O trabalho publicado não obedece ao Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, que exige a apresentação de um exemplar, disponível em coleção. Os autores recorreram ao artigo 73.1.4 do código para publicar a nova espécie apenas com base em fotos. Esse artigo abre exceções para casos extremos, quando existe um número muito pequeno de exemplares da espécie. De qualquer forma, não é a situação desse macaco”.

Marcelino diz que já existe confirmação de outras oito populações desse animal nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Pernambuco – fato que descartaria a inviabilidade da coleta sob a justificativa de extinção. “Temos ainda relatos não confirmados de ocorrências em outras duas áreas. Isso numa estreita faixa de 30 quilômetros ao longo do litoral desses estados. Além disso, esses animais são freqüentemente resgatados de cativeiros ilegais e enviados para os centros de triagem do Ibama no Nordeste. Só na Paraíba existem nove. Não é, portanto, um caso de tão extrema ameaça que não possibilite a coleta de exemplares”, ressalta.

O presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia, Fabiano Melo, concorda com Marcelino. “Apesar de o código deixar uma brecha, eu considero grave o fato de não ter sido coletado nenhum exemplar. Senão vai virar moda fotografar bicho e divulgar. Existem casos de espécies descritas pela ciência que desapareceram da natureza e só restou a pele nas coleções.” Ele também aponta algumas lacunas no trabalho de Pontes. “Tem problemas de descrição do bicho, além de ser muito sucinto. Acho que outras revistas não aceitariam desta forma.”

Perguntado sobre o fato de não ter coletado nenhum exemplar antes de descrever a espécie, Pontes questiona: “Você acha que vale a pena matar um animal cuja população é tão pequena? Eu sigo uma nova mentalidade científica que vai contra essa coisa absurda que os taxonomistas defendem. Não vou tirar um bicho da natureza para colocar na gaveta de um museu.”

Pontes afirma que a espécie encontrada por sua equipe não é a mesma descrita pelo naturalista alemão. “Essa gente é invejosa e incompetente. Estudam o bicho há anos, mas nunca o descreveram. Agora trazem à tona um desenho antigo, que não se parece com o Cebus queirozi, para contestar minha descoberta. A cor do animal é levemente parecida, mas as características são completamente diferentes. E tem mais uma contradição: se eles dizem que para a descrição ser válida tem de ter um exemplar no museu, por que a de antigamente não precisava?”, rebate, lembrando que Schreber não disponibilizou um animal em coleção científica.

Outras acusações

Segundo Marcelino, ao contrário do que Pontes coloca em seu trabalho, ele pode não ter consultado os museus Nacional (no Rio de Janeiro) e de Zoologia da USP antes de descrever a espécie. “No Museu Nacional temos um exemplar dessa espécie, que foi coletada em Alagoas. Se ele tivesse de fato consultado as coleções, não teria como deixar de ver o animal.” Além disso, o chefe do CPB aponta que a bibliografia utilizada no artigo é insuficiente. “Ele ignorou toda a literatura especializada em Cebus. Deixou de citar os autores mais básicos sobre este assunto no Brasil, que são José de Souza Silva Junior e Cecília Torres de Assumpção. Não soube montar uma sinonímia para a espécie. Então, como ele sabia que estes bichos eram uma forma diferenciada?”

Marcelino diz ainda que Pontes sabia da existência do trabalho feito por ele em parceria com Langguth, mas não os procurou para comunicar a possível descoberta. De acordo com o livro “Fundamentos Práticos de Taxonomia Zoológica”, de Nelson Papavero, “um zoólogo nunca deve estabelecer um novo táxon se acreditar que outro já reconheceu o mesmo táxon e está a ponto de descrevê-lo”. Mas Pontes nega a acusação. “Quando soube da existência da espécie, mandei um e-mail para todas essas pessoas, mas não recebi retorno. E quer saber? Achei ótimo, porque se tivessem respondido eu teria de dividir a descoberta. Em nome da conservação, fui adiante com meu trabalho.”

Nova ou velha, é importante que sejam criadas condições para garantir a perpetuação da espécie. A região onde foi encontrada, acima do rio São Francisco, sofre processo intenso de degradação. A área tem menos de 4% de florestas originais em estado de conservação razoável, distribuídos em pequenos fragmentos. “O que interessa agora não é a discussão se a espécie chama A ou B. A prioridade é lutar para mantê-la viva”, destaca o presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia, Fabiano Melo.

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