Reportagens

No Norte do mundo

Três jovens americanos iniciam no Alasca viagem de bicicleta até a América do Sul. Na primeira perna da jornada, viram muito caminhão e foram atacados por mosquitos e um lobo.

Sean Monterastelli ·
29 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

“Podia muito bem ter pousado na Lua”, pensei durante a aproximação do Aeroporto Deadhorse, na extremidade Norte do mundo. Pelos buracos em meio à névoa cinzenta, conseguia identificar placas de gelo lisas boiando sobre as águas árticas de Prudhoe Bay, pedaços de turquesa brilhante das geleiras que contrastavam com aquela imensidão branca de neve. Mais tarde, ao me aventurar em uma comunidade de trabalhadores de campo petrolífero, tive a impressão de passear sobre detritos industriais espalhados por uma chuva de meteoros, talvez destroços de uma expedição abortada de colonização da Lua.

No entanto, tratava-se de instrumentos de uma poderosa empresa petrolífera; pontas de perfuradoras gigantescas, bobinas de cabos com espessura equivalente a de um tronco de árvore e equipamento hidráulico pontilhavam os espaços do terreno entre prédios de serviço e alojamentos de trabalhadores. A paisagem, onde tudo parecia ter levado um banho de pó de giz, dá a Deadhorse uma aura de cidade fantasma. Para três aspirantes a ciclistas viajantes, essa terra lúgubre representava o despertar de um sonho e o início de uma aventura incerta.

Desse ponto mais ao Norte, eu e meus dois companheiros ciclistas seguiríamos pela Dalton Highway – ou, como preferem os caminhoneiros do Alaska, “a estrada da carga” – por cerca de 800 km até a cidade de Fairbanks. Para iniciarmos nossa viagem, passamos quatro horas na pequena área de bagagem do aeroporto, onde montamos nossas mountain bikes, nos abastecemos com água da torneira e guardamos nossos pertences em bolsas secas. A temperatura do lado de fora era de cerca de 1 °C. Mesmo assim, esperávamos celebrar o início de nossa viagem, que vai terminar no extremo Sul da América do Sul, com um mergulho no Oceano Ártico.

Esse desejo desapareceu rapidamente quando descobrimos que as empresas petrolíferas controlavam toda a costa, cujo acesso só era possível por meio de um tour de ônibus, guiado por um segurança e com um ingresso de trinta dólares. Em vez de nos desanimarmos e nos sentirmos privados da oportunidade de pedalarmos por aquelas placas de gelo alienígenas, montamos nas bicicletas e começamos a pedalar para esquentarmos o corpo por causa do frio. Após apenas 32 km de pedaladas, sentimos cansaço. Nenhum de nós havia comido nada há pelo menos oito horas. Nós encostamos no que viria a ser nosso local natural para descanso durante os dez dias seguintes; pequenas ruas de cascalho que saíam como galhos da estrada principal e cortavam a tundra até um oleoduto.

Garfo quebrado

Cada um de nós tinha trazido as bugigangas e os equipamentos necessários para sobreviver em ambiente selvagem. Jacob carregava as panelas, eu os utensílios e o óleo de cozinhar e Goat o fogareiro . Ou pelo menos parte dele. Estava faltando a válvula que libera o gás do botijão. Teríamos que fazer fogo com galhos e papel. Foi relativamente fácil encontrar galhos secos em torno da tundra pantanosa e úmida que predomina sobre o Norte do círculo ártico. Dos dez dias que levamos viajando até Fairbanks, tivemos apenas uma refeição fria, mais por cansaço do que por falta de meios para cozinhá-la. Em um dia chuvoso, próximo à cordilheira Brooks, encontramos galhos secos e cozinhamos sob uma ponte que levava a uma estação de bombeamento para o oleoduto.

Outros problemas com nosso equipamento de viagem não foram tão fáceis de resolver. No segundo dia de pedalada, o lacre do braço da suspensão da minha bicicleta se rompeu e descomprimiu. Sem ar no garfo dianteiro, meu guidão ficou cerca de 10 cm mais baixo. Meu quadro já estava baixo para começar e agora minha postura ia ficar curvada para frente de maneira dolorosa. Meus pulsos suportaram a violência de uma quantidade de trancos intolerável, não importava o ajuste do banco ou a proteção que eu usasse nas mãos. Em alguns dias, os dois dedos do lado externo de ambas as mãos ficaram dormentes. Quando se pedala de sete a oito horas por dia a mente pode ser uma corrente tranqüila de energia desinibida que permite às pernas fluírem graciosamente e aos olhos assimilarem a beleza serena do Alasca. Mas estava difícil para mim não me concentrar na possibilidade de lesão de algum nervo, de acabar ficando com “mãos de garra”.

Durante a maior parte do tempo, nossa experiência com outros viajantes da Dalton Highway se limitou aos motoristas de caminhão. Os caminhoneiros aceleravam em demasia pela estrada, algumas vezes levantando aquelas pedras que trincam pára-brisas e marcam a carroceria. A maior parte do prejuízo que tivemos resultou da poeira calcária que cobria a estrada, para apressar a secagem do asfalto após as chuvas. Remexida violentamente pela circulação dos veículos, a poeira nos cegava, acumulava nas correias e marchas e assentava em nossos pulmões. Quase todos os caminhoneiros reduziam a velocidade quando se aproximavam da gente em locais mais perigosos. Um caminhoneiro parou no topo de uma montanha para nos doar um saco de amendoim tostado e conversar conosco sobre nossa viagem. Começou a falar de maneira nostálgica sobre a própria juventude aventureira que tivera, pontuando cada flashback com um suspiro e uma exclamação: “eu invejo vocês.”

Ursos e lobos

Um dia encontramos alguns alunos da pós-graduação de Massachusetts que passavam o verão estudando o habitat ártico das águias. Eles tinham um telescópio montado na estrada e permitiram que déssemos uma olhada em um lobo preto enorme que tinha acabado de caçar um caribu. Ele estava sentado serenamente degustando sua refeição no topo de um morro, a uns 180 m de distância. Próximo a um pequeno lago na saída de uma parada de caminhões chamada Coldfoot, uma equipe de manutenção me disse para olhar para o oleoduto, na direção do lago. “É um pardo”, um deles gritou. O trio das bicicletas ficou em êxtase, largou o equipamento no acostamento e caminhou com dificuldade por um pântano esponjoso em direção à margem do lago para olhar mais de perto.

O urso pardo era gigante e eu manuseei a câmera de 35 mm durante alguns minutos, mas não consegui uma boa foto. Os ursos acima do círculo ártico muitas vezes parecem franzinos e esqueléticos, pois não encontram presas suficientes para manter a sua estatura impressionante. Esses ursos “esqueléticos” são os mais perigosos para os seres humanos e ataques ao longo da Dalton Highway não são incomuns. Mas não são os únicos riscos na estrada. Antes de chegarmos a Deadhorse, tínhamos lido sobre uma professora que havia sido atacada por um lobo perto do círculo ártico. Ela suportou algumas mordidas leves na perna após ter sido perseguida pelo lobo ao redor de sua área de acampamento de manhã cedo. Depois, perto de Coldfoot, ouvimos alguns caminhoneiros conversando sobre um urso que havia perseguido um motociclista em Sand Hill – alguns poucos quilômetros depois do primeiro ataque.

Continuamos ouvindo as pessoas nos pedindo para tomar cuidado, talvez achando que seríamos os próximos na seqüência de incidentes. Após um longo dia de quase cem quilômetros de montanhas cansativas, nós chegamos à área de acampamento do Círculo Ártico. Estava deserta e tinha um aviso colocado em um quadro num “monumento pouco inspirado” que tratava das notícias que já sabíamos. O aviso pedia às pessoas que ficassem próximas ou dentro de seus veículos. Jacob e eu estávamos exaustos e manifestamos a vontade de passar a noite ali e se possível furar o urso com nossas facas novas, terminando assim com a antecipação enervante do ataque. Goat tentou argumentar.

Eventualmente, foi o incessante ataque sanguinário dos mosquitos à nossa volta que fez com que retornássemos à “segurança de nossos veículos”. Para mantermos uma paz de espírito satisfatória em relação à nossa segurança, passamos a hora seguinte subindo de bicicleta por uma estrada de cascalho escorregadia conhecida como Beaver Slide. Do pé desse morro parecia que estávamos escalando uma torre vertical. Entretanto, conseguimos pedalar com toda nossa bagagem até o topo, desmoronamos em nossas barracas e dormimos sem medo. No dia seguinte, estávamos pedalando tranqüilos por um terreno plano. Jacob liderava, talvez uns 300 m a nossa frente.

Sebo nos pedais

De repente ele parou, saltou da bicicleta e eu o vi começar a dançar e fingir que jogava pedras num casaco peludo caído na estrada. Quando me aproximei, reconheci o corpo de um lobo cinza, bem menor do que a fera negra que eu avistei com o telescópio. Ele estava caído sobre uma grande poça de sangue e um dos seus olhos estava pendurado para fora. Eu tentei abrir minha boca para perguntar a Jacob o que havia acontecido quando o lobo enrijeceu os músculos do corpo e abriu a boca, desesperado por ar. Ele ostentou os grandes dentes de carnívoro e bateu as patas no chão, mas não havia muito que ele pudesse fazer para se salvar. “Eu estava descendo feito um louco por essa estrada, a uns 30 ou 40 km/h, e não ouvi nada até o caminhoneiro desviar para sair do caminho”, Jacob começou a explicar.

“Então eu vi esse lobo me seguindo. Ele deve ter saído do mato. Eu na mesma hora comecei a pedalar o mais rápido que conseguia, enquanto abria a bolsa para pegar o spray contra urso”, continuou. Jacob não estava conseguindo pegar o spray porque estava tentando manter a coordenação para continuar “dando no pé”. Quando o lobo chegou bem perto dele, um caminhão acelerou para cima da criatura, atropelou-a e fez um desvio brusco para a esquerda para evitar atropelar Jacob. Nosso motorista salvador seguiu indiferente pela estrada enquanto Jacob levantava os braços loucamente como um gesto de agradecimento. O animal estava lá deitado em agonia enquanto o observávamos incrédulos. Jacob sacou sua faca e começou a cortar a garganta do lobo.

Ele permaneceu deitado passivamente enquanto Jacob tentava terminar com seu sofrimento. Porém, quando ele achou que havia acabado o serviço, a fera tentou erguer-se novamente, tremeu e arfou mais uma vez, um suspiro desesperado. Aquela cena trágica foi horrível de testemunhar. Jacob tentou cortar o pescoço mais uma vez e, finalmente, após várias outras contrações do corpo, o lobo ficou imóvel. Nós arrastamos o corpo para fora da estrada e seguimos nosso caminho em uma melancolia silenciosa. No dia seguinte chegamos a Yukon River e informamos um patrulheiro da Aleyeska que havíamos presenciado a morte de um lobo que pode ter sido o mesmo que havia atacado a professora.

Passamos a noite em um pântano infestado de mosquitos e moscas-do-estábulo cobertos por um pedaço de papelão e, na manhã seguinte, nos presenteamos com um café-da-manhã caro na parada dos caminhoneiros e um banho agradável nas águas do Yukon. Em dois dias chegaríamos a Fairbanks e tínhamos a esperança de conseguir substituir a suspensão do meu garfo dianteiro, cuidar das minhas mãos dormentes e colocar o nome de Jacob no jornal local por ter acabado com a fera enraivecida que havia sido a história dessa estrada remota rumo ao Norte, no meio daquela região selvagem e indomada.

* Americano recém-formado em letras que decidiu fazer sua pós-graduação percorrendo as Américas, do Ártico à Patagônia, de bicicleta.

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