Reportagens

Expansão cega

Governo panamenho quer ampliar canal que liga o Pacífico ao Atlântico sem realizar qualquer estudo de impacto ambiental. A obra tem potencial para produzir um desastre.

Adriana Maximiliano ·
6 de dezembro de 2006 · 18 anos atrás

O escritor inglês James Bryce conheceu o Canal do Panamá ainda em construção, no início do século XX, e num livro publicado em 1912 sobre suas andanças pela América do Sul e Central, o chamou de “a maior liberdade que o homem já tomou com a natureza”. Quase 100 anos depois, provavelmente existem outras centenas de obras que rivalizam, ou ultrapassam, os impactos ambientais provocados pela abertura do canal. O que não mudou foi o apetite de seus administradores de continuarem a tomar liberdade em excesso com a natureza. O governo panamenho, escorado nos resultados de um recente referendo popular, quer ampliar a mais movimentada via de ligação entre o Pacífico e o Atlântico. As obras devem terminar em 2014 e vão custar US$ 5,25 bilhões. Já a conta do meio ambiente, para alguns especialistas, não tem preço: aumento abusivo da salinidade da água do canal, escassez de água doce para a população panamenha e ameaça a bosques, animais silvestres e marinhos.

Para os defensores da expansão, vale pagar o preço com o crescimento econômico que o canal vai permitir ao Panamá. “Por lei, a ACP (Autoridade do Canal do Panamá, agência estatal autônoma que administra a via) deveria ter feito um grande e detalhado estudo de impacto ambiental, mas eles conseguiram mudar o regulamento da Anam (Autoridade Nacional de Meio Ambiente) três meses antes do referendo e, pelas novas regras, a própria ACP é quem deve aprovar ou reprovar seus estudos de impacto ambiental”, reclama o biólogo da Universidade do Panamá Ariel Rodríguez-Vargas, que criou com outros ambientalistas a organização Aliança para a Conservação e Desenvolvimento do Panamá (ACD Panamá) para cobrar as promessas da ACP. “A primeira coisa que eles fizeram foi adiar os estudos”.

Enquanto eles não são feitos, outros 11 trabalhos foram executados por cinco organizações diferentes para avaliar o impacto da provável salinização das águas doces do canal. Os resultados foram unânimes: a expansão – com a construção de um terceiro jogo de eclusas no canal – não tem viabilidade ambiental. O Panamá tem hoje mais de 1,2 mil espécies de árvores, 900 espécies de pássaros e 10 mil espécies de plantas, das quais 1.250 só existem dentro das suas fronteiras. O canal também. E o país só existe por causa dele. Sua construção começou em 1904 e ele levou dez anos para ser concluído. Os dois, o país e o canal, têm que agradecer o nascimento de ambos ao presidente americano Theodore Roosevelt, engajado em melhorar o fluxo do comércio mundial ligando por um atalho dois Oceanos, o Pacífico e o Atlântico.

Preço de banana

Até o início do século 20, a região onde hoje está o Panamá fazia parte da Colômbia. Roosevelt se dispunha a bancar a construção do canal desde que seu país tivesse absoluto controle militar sobre a área e sobre sua operação. Os colombianos até conversaram sobre o assunto, mas não dava mesmo para aceitar a proposta americana. Roosevelt incentivou um grupo rebelde no Norte colombiano a criar confusão e quando Bogotá pensou em reagir, mandou navios de guerra ancorarem na costa da zona de conflito – não por coincidência, a mesma onde seria construído o canal. A mensagem foi clara. Qualquer retaliação das tropas federais colombianas seria respondida à bala pelos americanos. Os rebeldes se transformaram rapidamente num movimento separatista, o governo colombiano não estava disposto a arranjar briga com Washington e no dia três de dezembro de 1903, eles declaram sua independência num país com território de 78 mil e 200 quilômetros quadrados, metade do nosso Acre.

Em troca, os Estados Unidos compraram o controle da zona do canal (tamanho 82km de extensão) por US$ 10 milhões e construíram a passagem ao custo de US$ 375 milhões. Noventa e seis anos depois, o comando de sua operação finalmente caiu nas mãos do governo panamenho. O Canal do Panamá tem 80 quilômetros de extensão e começou a funcionar em 15 de agosto de 1914, ligando o Golfo do Panamá, no Oceano Pacífico, ao Mar do Caribe, no Oceano Atlântico. Antes de sua construção, para passar de um lado a outro, Não havia mais que duas opções. Uma pela Norte, negociando uma perigosa passagem entre a Sibéria e o Alaska e que ficava fechada boa parte do ano. A outra era contornar a América do Sul pelo Cabo Horn.

Essa rota, para um navio que saísse de São Francisco para Nova York, significava viajar 22 mil e 500 km. O canal encurtou a distância para 9 mil e 500 km. O impacto ambiental da obra no local foi devastador. Vinte e nove vilas foram inundadas, forçando 50 mil pessoas a se mudarem para outras áreas do país, e 27,5 mil trabalhadores morreram. A movimentação de terra provocada pela obra foi monumental. Escavou-se cerca de 7, 6 milhões de metros cúbicos para abrir o canal, 4 vezes mais do que as estimativas feitas inicialmente.

Corredor de espécies

Os críticos da expansão alertam que o meio ambiente mais uma vez não parece ser uma questão importante. A maior preocupação é a salinização do Miraflores e Gatún, os dois lagos artificiais de água doce cuja função primordial é encher as comportas do canal para a passagem dos navios. Mas é essa água também que as populações das duas maiores cidades panamenhas, Cidade do Panamá e Colón, usam para beber, tomar banho e lavar suas roupas e carros. Canal mais largo significa maior volume de água do mar entrando nos lagos. “De todos os impactos ambientais, o mais crítico é o aumento da salinidade no Gatún e Miraflores e nos canais de acesso e trânsito do canal. Se a quantidade nessas áreas for maior do que 0.45 a 0.50 mg de sal por litro, a água não terá qualidade para purificação”, avalia Rodriguez Vargas.

Infelizmente, não são apenas os humanos que estão sob risco. A baixa salinidade atual da água consegue impedir uma avalanche de espécies de um oceano para dentro do outro. Se ela subir, é muito provável que o canal forneça o caminho para a criação de um novo corredor migratório, que afetaria o ecossistema dos recifes do Caribe panamenho. E ela vai subir.

Os lagos Gatún e Miraflores já estão bem mais salgados do que nos anos 70, mas ainda num nível tolerável, o que impede que as espécies de um oceano passem para outro. Mas segundo Rodríguez-Vargas, no projeto de ampliação, a ACP já colocou uma salinidade maior do que a verdadeira para quando ela subir muito, eles poderem dizer que não subiu tanto assim, que já era alta antes das obras.”Descobri que o nível de salinidade que eles esperam atingir depois da ampliação no lago Gatún é menor do que o atual”, revela.

Atualmente, o canal consegue receber navios que carregam até 4 mil contêineres. Como os navios maiores, chamados de pós-Panamax e que carregam até 12 mil contêineres, serão 30% da frota mundial em 2020, o presidente Martín Torrijos acredita que sem a ampliação, o canal se tornaria obsoleto em menos de duas décadas. As obras de expansão vão aumentar a profundidade do canal e alargá-lo. Para fazê-lo funcionar, os dois lagos de água doce terão que ter seus níveis elevados e será instalada uma nova unidade de eclusas.

A ampliação inclui a construção de uma terceira linha, mais larga e profunda, capaz de suportar o tráfego dos pós-Panamax a partir de 2014. A ACP promete gerar sete mil empregos diretos, mais de 30 mil indiretos e, em 15 anos, multiplicar por seis a receita da faixa interoceânica, que atualmente é de cerca de US$ 1 bilhão por ano. De um ponto de vista estritamente mercadológico, Torrijos tem lá sua razão. Além de estar ficando pequeno para os navios atuais, as perspectivas futuras dão conta que o canal finalmente vai encarar competição pelo dinheiro de quem quer passar mais rápido do Atlântico ao Pacífico. México e Colômbia trabalham na criação de rotas de ligação dedicadas, só que por terra, com caminhos levando para navios no Atlântico mercadorias desembarcadas de embarcações no Pacífico. A Nicarágua sonha mais alto. Quer fazer um canal alternativo em seu território.

Ignorância

Atravessam o canal diariamente cerca de 40 navios. E, cada vez que um navio passa por ali, 208 milhões de litros de água doce são despejados no oceano. O terceiro jogo de eclusas terá 18 bacias que vão servir para reciclar 60% da água necessária para erguer os navios. “A ACP optou por uma tecnologia de reciclagem que vem sendo usada por décadas na Alemanha. Economiza água, dinheiro e não requer construir represas ou inundar nenhuma vila”, garante a porta-voz da ACP, Teresa Arosemena, que indicou a O ECO uma consultora da ACP, Cookie Domingo, para falar sobre o impacto ambiental do projeto. Ao ser perguntada sobre o assunto, a consultora contou que não é especialista em meio ambiente e repetiu apenas que “todo cuidado será tomado para não causar danos à natureza”. Só não está muito claro como.

Ela diz basicamente que a fauna e a flora da região foram monitoradas de perto nos últimos anos e este trabalho será utilizado num estudo maior sobre o impacto, ainda sem data determinada para acontecer. Se o estudo ficou em último plano, os eleitores ganharam mais atenção. Antes do referendo, a Secretaria do Meio Ambiente do Panamá enviou técnicos para as vilas próximas ao canal para explicar aos moradores que suas casas não serão afetadas pelas obras. Mas a questão é polêmica. Ambientalistas acusam a ACP de usar um discurso dúbio sobre a não utilização das águas do rio Índio para encher o canal. No projeto, o rio Índio aparece como última opção de recurso, depois das bacias de água reciclável, da elevação do nível do Lago Gatún e da complicada operação de baixar o fundo dos canais de navegação.

Rodríguez-Vargas alerta que, se o Rio Índio for utilizado, uma represa será construída, o projeto ficará mais caro, bosques serão inundados e milhares de moradores precisarão deixar suas casas. “E a ACP vai colocar a culpa no povo, argumentando que a quantidade de água necessária para consumo humano foi além do previsto”, prevê ele. Cerca de 190 mil pessoas moram na região interoceânica. “Eu não vejo isso como um ponto negativo”, diz o biólogo do Smithsonian Tropical Research Institute (STRI) Richard Condit, que trabalha no Panamá: “Alguns bosques serão inundados e muitas pessoas serão forçadas a deixar a região, mas isso no fim das contas será bom para o meio ambiente”.

Discurso e lei

Apontado pela ACP como um defensor do projeto, o cientista Stanley Heckadon-Moreno, que também trabalha para o Smithsonian Tropical Research Institute como diretor de comunicações no Panamá, começou seus comentários sobre o impacto ambiental com um elogio relativo: “O projeto atual da ACP é muito melhor do que o projeto original, apresentado em 2000, que ameaçava represar três rios”. Depois, lembrou que o Panamá perde 40 mil hectares de florestas tropicais por ano devido a queimadas na agricultura, criação extensiva de gado e atividade madeireira. “A modernização do canal vai afetar apenas 427 hectares de floresta secundária”, pondera Heckadon-Moreno. Sobre outras ameaças, o cientista foi mais otimista ao dizer que o hidrólogo do STRI Dr. Robert Stallard trabalha na região há 20 anos e considera improvável que o Lago Gatún sofra salinização.

Pior são as perspectivas do Miraflores. “É possível que a salinidade do lago Miraflores aumente um pouco. Já a alta qualidade das águas do Gatún será mantida pelas novas comportas, que são tão boas quanto as antigas. Acho que a maior ameaça a este lago não é a operação do canal, mas a incontrolável urbanização e industrialização da região”, diz Heckadon-Moreno, que concorda que o estudo de impacto ambiental devia ser uma prioridade: “Existem muitos dados sobre o meio ambiente do canal. O STRI, por exemplo, estuda a floresta desde 1910 e eu coordenei um time de 40 pesquisadores num projeto sobre os recursos naturais da região do canal, de 1996 a 2000. A ACP pode aproveitar toda essa informação para fazer o melhor estudo de impacto ambiental possível e obedecer estritamente as medidas de redução de risco para preservar a região”.

Rodríguez-Vargas concorda com o cientista, mas não acredita que isso vai acontecer: “As conseqüências dessa expansão serão graves e um estudo que contemple as dimensões dos impactos diretos, indiretos e sinérgicos é fundamental, mas também custoso. E, por ser custoso, tem sido ignorado. Assim que funcionam nossas repúblicas das Bananas, propensas a muitos discursos ambientais e poucas práticas reais”.

*Adriana Maximiliano é freelancer em Washington.

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