Acaba de ser apresentado um estudo de caso sobre a já famosa estrada Interoceânica, também conhecida como Transoceânica ou Bioceônica. Esta obra, na teoria, permitirá transportar produtos de qualquer lugar do Brasil até os portos peruanos do Pacífico. O estudo analisa os impactos sociais e ambientais que essa obra ocasionará na sua parte correspondente: a Amazônia peruana. Essa região, vizinha ao Acre, é um dos principais reservatórios mundiais de biodiversidade e é, ainda, o refúgio de muitos dos últimos povos indígenas isolados da Amazônia. Esta nota é um resumo do indicado estudo.
A IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-estrutura da América do Sul) foi subscrita no ano 2000 pelos governos dos 12 países da região com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Corporação Andina de Fomento (CAF) e do Fundo para o Desenvolvimento da Bacia do rio da Prata (Fonprata). Esta Iniciativa consiste na promoção de 10 eixos de integração que reúnem 335 projetos por um valor de 37,5 bilhões de dólares. Esses projetos são principalmente de transporte, mas incluem também obras de geração e condução de energia e de comunicações. Um dos projetos desta Iniciativa que se está executando é a estrada Interoceânica entre o Brasil e o Peru, que é justificada, de uma parte, para abrir os portos peruanos da costa do Pacífico Sul aos produtos brasileiros e, de outra, para promover o desenvolvimento econômico da região sul do Peru, que é notoriamente deprimida.
A obra, dentro do território peruano, consiste em asfaltar ou melhorar 2.586 quilômetros de estradas, entre a pequena cidade de Iñapari (Departamento de Madre de Dios), na fronteira com o estado brasileiro do Acre e os portos da costa sul desse país. O projeto tem um custo estimado de 892 milhões de dólares. A obra cruza o departamento de Madre de Dios e as partes amazônicas de Cuzco e Puno, subindo de apenas 200 metros acima do nível do mar para mais de 4 mil metros. A porção amazônica da obra será executada e logo administrada por duas companhias concessionárias lideradas por empresas brasileiras, pela modalidade conhecida como BOT (Build, operate and transfer ou constrói, opera e transfere). A obra foi estudada, leiloada, concedida, parcialmente financiada e iniciada entre 2003 e março de 2006. O financiamento parcial, um empréstimo ponte, foi concedido pela CAF com garantia da República do Peru. A obra no Peru estará interconectada com o sistema brasileiro de estradas permitindo viajar por estrada asfaltada desde os portos oceânicos do Atlântico até os do Pacífico.
Passivo ambiental
A região amazônica na que se construirá a estrada é a mais natural subsistente no território do Peru e mostra uma das maiores concentrações de biodiversidade do planeta, incluindo uma proporção elevada de endemismos, devido a seu bom estado de conservação geral e à diversidade de ecossistemas derivados do enorme gradiente altitudinal. Também é refúgio de um número considerável de grupos indígenas que ainda vivem em isolamento voluntário. Por essa razão o aprimoramento desta estrada tem uma importância crucial em termos de riscos que pode provocar para os esforços mundiais de conservação da biodiversidade e do respeito devido aos direitos das últimas populações humanas que vivem sem ou quase sem contato com a sociedade moderna. Também preocupa o provável agravamento de problemas ambientais e sociais característicos da construção e operação de estradas nas condições de floresta tropical úmida de regiões planas ou baixas e as que ostentam pendentes pronunciadas e que são de altitude.
De uma parte, o estudo confirma que na região existe um passivo ambiental e social considerável que é produto da acumulação gradual de problemas desde a construção, nas décadas de 1940 e de 1950, das primeiras vias de penetração a Amazônia de Cuzco e Puno e, em especial, a partir da primeira estrada de terra entre Porto Maldonado e a fronteira brasileira, que data dos anos 1980s. De outra parte, o estudo ratifica opiniões de diversos autores que alertaram do risco dos impactos ambientais e sociais piorarem muito, na sua amplitude e velocidade, após se pavimentar e se melhorar a estrada.
Impactos ambientais e sociais que a poucos importam
Os impactos ambientais mais prováveis, num horizonte de mais de 10 anos, incluem aumento rápido do desmatamento, degradação das florestas naturais, invasão de áreas protegidas, incidência maior dos incêndios florestais, expansão da cultura da cocaína, operação anárquica do ouro, degradação ambiental urbana, perda de biodiversidade, aumento da caça e pesca e, redução da amplitude e qualidade dos serviços ambientais, especialmente os referentes ao recurso hídrico com maior incidência de inundações, aluviões e com redução da qualidade e disponibilidade de água para o uso humano. Os impactos sociais mais graves serão os relativos aos nativos em isolamento voluntário, o aumento da migração andina para a região, a invasão de terras indígenas tituladas, de comunidades tradicionais e de outras propriedades; o incremento dos conflitos pela terra, desenvolvimento de favelas, aumento da pobreza urbana e redução da disponibilidade de serviços públicos, aumento das atividades ilegais e diminuição da qualidade da segurança pública e, diluição e perda de valores culturais tradicionais, entre outros.
A opinião pública, regional, nacional e local, que já é tradicionalmente a favor da construção e melhoria das estradas, influenciada fortemente pela pesada propaganda governamental, considera quase unanimemente que a obra aportará grandes benefícios econômicos e não demonstra nenhuma preocupação para com os impactos ambientais e sociais. Estes, de outra parte, foram sistematicamente diminuídos pelos atores oficiais. O governo sempre informou à opinião pública que os impactos negativos serão mínimos porque a estrada não é nova e que estão sendo adotadas todas as precauções ambientais e sociais cabíveis. Apenas um segmento pequeno da sociedade civil, principalmente as organizações não governamentais e alguns grupos de intelectuais, levantaram objeções, essencialmente visando à ausência de um programa que limite os danos mais prováveis e que permita aproveitar as vantagens econômicas que a estrada poderia oferecer. As objeções principais provieram das organizações sociais de base.
Mas, quando se consulta diretamente a população que será afetada, apesar do entusiasmo geral, levantam-se numerosas dúvidas. Estas dúvidas são de nível pessoal familiar, municipal e regional. Elas incluem temas como novos riscos econômicos para a família, conflitos pela propriedade da terra na faixa de domínio da estrada, segurança da família e dos animais, custo do pedágio, invasões da terra, oportunidades de emprego na construção, riscos de acidentes, elevação do preço da terra, modificações do trânsito nas áreas urbanas, dentre muitas outras. A esses se somam os antes mencionados, ao falar de impactos ambientais e sociais. Evidentemente, grande parte dos atores locais e regionais está muito satisfeita com as previsões, em especial os extratores e industriais florestais, aqueles que tentam se dedicar à agricultura e à pecuária sob modalidades mais intensivas, mineradores, empresários hoteleiros e de restauração, assim como uma parte dos que se dedicam ao ecoturismo. De outro lado, todos unanimemente protestam da precariedade da informação sobre a obra e da falta de consultas públicas eficazes.
O que o governo pretende e não pode
A análise do desempenho do governo peruano e da CAF com relação ao trabalho, revela que ambos prestaram pouca atenção aos princípios e às normas que, formalmente, prevalecem para a aprovação deste tipo de projetos. A omissão principal é que a obra foi aprovada, financiada e iniciada sem dispor de um estudo de impacto ambiental e social (EIA). Existe, entretanto, um capítulo ambiental amplo dentro do estudo de pré-factibilidade e também, estudos parciais (por trechos) do impacto ambiental direto, permitindo que o trabalho seja iniciado. Mas esses estudos estão baseados em informação de segunda mão, apenas abordando os impactos diretos da obra, carecem de uma análise geral e, finalmente, não cumpriram com o complemento indispensável de providenciar ampla informação pública e de fazer consulta consistente com a população afetada. A pretensão de que a soma dos estudos de impacto ambiental parciais resulte num documento que seja equivalente a uma verdadeira avaliação ambiental não é tecnicamente aceitável e, de qualquer maneira, seria aprovada muito tarde para se poderem aplicar as medidas requeridas. Grande parte do problema descrito deve-se à fraqueza da legislação ambiental peruana sobre licenciamento ambiental, que deixa a decisão final dentro do setor que promove o projeto avaliado e, no geral, à debilidade institucional ambiental do país. Existem outras objeções ao procedimento seguido para a aprovação da Interoceânica pelo governo e pela CAF. Esta última, em especial, evidentemente não cumpriu diversos de seus delineamentos de política ambiental e social.
A CAF teve consciência do problema criado pela rapidez incomum que o governo imprimiu para processar o projeto, resultando na sua aprovação sem avaliação de impacto ambiental e social e, por essa razão, adotou medidas paliativas, como o financiamento da melhoria de capacidade de avaliação ambiental no Ministério dos Transportes e Comunicações, o financiamento de consultas com a sociedade civil e, em particular, pressionando o Governo para aceitar um programa para o gerenciamento ambiental e social da região afetada pela obra. Este programa, cujo executor principal será o Inrena (Ministério da Agricultura), terá um custo de 17 milhões de dólares (10 milhões serão de um empréstimo da CAF e os outros 7 milhões serão do aporte local). O programa está orientado a resolver muitos dos problemas que a estrada agravará. Mas o montante de dinheiro destinado ao mesmo e seu lapso de execução são claramente insuficientes para pretender resolver o problema. Além do mais, este programa não foi aprovado ainda pelo Peru nem pela CAF.
O governo afirma que a situação da ocupação da terra em Madre de Dios está consolidada pela existência de amplas áreas protegidas, de terra indígena titulada e pelo sistema de concessões florestais (de diversos tipos) já concedido. Também por se estar preparando um exercício de zoneamento ecológico – econômico da porção amazônica, um plano de desenvolvimento do espaço afetado pela Interoceânica no sul do Peru, e um plano de desenvolvimento fronteiriço. A realidade demonstra que a suposta estabilização da ocupação da terra é muito frágil, primeiramente porque não existe a capacidade para evitar invasões e, em especial, porque as concessões florestais, do mesmo modo que o processo de titulação da terra e cadastro rural, em vez de evitar ou resolver conflitos, multiplicou-os devido à baixa qualidade do trabalho de campo. De uma outra parte, a probabilidade que os planos em execução sejam realmente executados é extremamente remota devido a seu custo elevado e à falta de capacidade institucional dos governos nacional, regional e municipal.
O problema de fundo não é a Interoceânica
Em conclusão, a objeção principal ao projeto da Interoceânica não é diretamente a ela, mas à falta dos mecanismos públicos que permitam, de uma parte, resolver o passivo ambiental e evitar os impactos ambientais e sociais previsíveis e, de outra, a ausência de uma estratégia e dos investimentos necessários para aproveitar as vantagens e oportunidades da obra para impelir um desenvolvimento econômico e social sustentável. Por essa razão, a primeira e mais importante recomendação do estudo é a elaboração, financiamento e execução de um programa de desenvolvimento regional que cubra com profundidade os assuntos superficialmente abordados pelo mencionado programa Inrena/CAF e que inclua o que falta neste. Estima-se que o custo deste programa deveria ser da ordem de 100 a 150 milhões de dólares. Mas, para que um projeto como aquele seja bem sucedido nas condições da região afetada é indispensável que o governo previamente defina uma autoridade clara para a sua execução, obtendo a partição efetiva e organizada dos diversos setores que teriam que executá-lo. A principal dificuldade atual da sociedade civil com relação à Interoceânica é a falta de um interlocutor válido no governo. Também é condição para o sucesso que se estabeleça um mecanismo de informação e de participação eficaz, como é previsto pela legislação sobre regionalização, assim como aqueles mecanismos de solução de conflitos que são necessários especificamente para executar o programa.
O estudo apresenta muitas outras recomendações, algumas do tipo conjuntural ou urgente, como é o estabelecimento de um mecanismo de monitoramento, seguimento e avaliação independente, mecanismos locais de solução de conflitos e para assegurar que os estudos de impacto ambiental faltantes sejam de qualidade melhor dos que já foram feitos. O problema de fundo, no caso analisado, é a debilidade da legislação ambiental e da institucionalidade ambiental peruana. Os bancos multilaterais para o desenvolvimento demonstraram pouca eficiência nas suas discussões com o governo peruano com relação ao assunto ambiental, sendo indispensável que adotem medidas concretas nas suas futuras relações com o país. No caso especifico da CAF e da Interoceânica, esta instituição deve se preparar para exercer uma supervisão muito severa deste empréstimo.
A sociedade civil organizada peruana e regional, respectivamente através do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil Peruana (GTSCP) e do MAP, que agrupa Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia) fez um trabalho excelente e eficaz com a relação ao projeto da Interoceânica, mas deve ser preparada para continuar o esforço com a maior intensidade.
Em conclusão, este é outro exemplo de uma obra que provavelmente é necessária, mas que foi decidida sem fazer os estudos prévios requeridos e, em especial, sem os investimentos complementares que fariam dela o que se pretende. Trata-se de uma obra promovida com uma aceleração fortemente influenciada por interesses políticos subalternos e, lamentavelmente, por isso não cabe esperar que aporte os benefícios desejados.
Leia também
Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial
Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa →
Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia
Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local →
Governo lança plataforma de monitoramento ambiental da pecuária
AgroBrasil+Sustentável pretende reunir em um só lugar várias informações ambientais de produtores, até então esparsas em diferentes bases. Adesão é voluntária →