Não se trata, nesta oportunidade, de somar aos milhares que escreveram que, finalmente, a humanidade parece ter levado a sério os riscos da mudança climática, que foram anunciados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) nem, tampouco, de reiterar que nenhuma dessas conclusões é novidade levando-se em conta que já foram anunciadas urbi et orbi muitas vezes, a cada ano, pelo menos durante duas décadas. Trata-se, agora, de especular se a aparente tomada de consciência sobre este perigo real e iminente vai mudar alguma coisa no comportamento das pessoas e da sociedade.
Cabe fazer um paralelo entre as evidências acumuladas pelo IPCC e as tão propaladas evidências de que o cigarro ocasiona enfermidades letais e socialmente custosas, sem que isso mude o comportamento de centenas de milhões de fumantes do mundo. No lado positivo está o fato que muitas nações decidiram pela proibição do fumo em locais públicos e tomaram medidas duras para desincentivar essa prática, tais como elevar desmesuradamente os impostos de seu consumo e obrigar os fabricantes a anunciar os danos à saúde que produzem. O exemplo do fumo inclui também, embora em mínima proporção, os elementos econômicos que as medidas para frear as mudanças climáticas imporão à sociedade. Com relação ao fumo, o balanço entre reações contrárias às evidências do tipo “de alguma coisa devo morrer”, “na minha família ninguém teve câncer” ou “já estou velho”, que dissimulam a fraqueza individual e, de outra, a pressão da maioria que, lutando também contra os interesses econômicos do fumo, consegue legislação restritiva, não oferece um resultado conclusivo. Como dito, grande parte da humanidade continua fumando, as plantações de tabaco, quando eficientes, não diminuíram significativamente e a indústria do cigarro ainda faz muito dinheiro.
Uma primeira questão, com relaçao à mudança climática, é saber até que ponto o anúncio parisiense do ICPP terá efeito duradouro e suficiente na sociedade e nos tomadores de decisão. Os câmbios de comportamento individual e social que se requer para abordar eficazmente o problema são imensos e, mais ainda, têm conseqüências econômicas além da imaginação. Obviamente, será muito pior não fazer nada ou fazer pouco agora e esperar as conseqüências. Mas, os riscos anunciados oferecem o perigo de serem percebidos como distantes (geleiras, ursos polares, desertos africanos) e graduais (“até o fim do século”) no tempo de vida das pessoas com idade de razão e, muito mais, no tempo de vida útil dos políticos. A tentação egoísta de “deixa pra lá” ou “não estou nem aí” é enorme. Só quem pensa muito seriamente no porvenir das futuras gerações, ou pelo menos no dos filhos e netos, apoiará medidas que mudem sua própria vida. E, para isso, têm que acreditar mesmo que o problema existe e que sua solução é urgente. E isso não é tão fácil como parece num mundo onde, até no país mais desenvolvido e rico do planeta, tem gente que não acredita que o ser humano tenha pisado na Lua e acha que a teoria da evolução é uma conspiração inspirada por Satanás. Mais improvável ainda é que a população dos paises mais pobres, onde o nível de compreensão da palavra escrita é próximo do zero, participe do esforço necessário e, isso, só se sua pobreza extrema lhes possibilitará fazê-lo.
É de supor que as evidências periódicas e cada vez mais próximas do cidadão comum do fenômeno da mudança climática consigam, com o tempo, vencer a resistência à mudança da sociedade e comoverão aos tomadores de decisão. Mas, quanto tempo? Como já foi anunciado, provavelmente muito mais que o disponível para se evitar o pior. As implicações das mudanças climáticas são tantas que elas podem, é verdade, ocupar primeiras páginas todos os dias do ano, mas, como os deslizamentos e inundações de cada estação chuvosa no Brasil, ou os massacres de cada dia no Iraque, podem se converter em primeira página que ninguém lê. Anos após anos de mortes e perdas econômicas por desastres “naturais” no Brasil, a sua publicidade não provocou, até hoje, nenhuma medida efetiva para evitá-los. Bem no contrário, a única ação concreta foi relaxar a proteção das áreas de preservação permanente o que, evidentemente, acelera e agrava o problema.
É possível imaginar que sejam, nesta oportunidade, os governantes os que tomem a decisão de “fazer alguma coisa a respeito”? A Comunidade Européia e o Presidente Chirac pareceriam mostrar o exemplo. A resposta implica uma possibilidade, mas, não uma segurança de que assim seja. O comportamento dos governantes europeus é, em grande medida, fruto da existência de uma sociedade mais informada e com mais educação e, também, da experiência recolhida através de milênios de erros ambientais cuja responsabilidade não pode ser trasladada a outros povos. Ademais, o comportamento europeu com relação a outros continentes sempre levanta a suspeita de protecionismo comercial. De qualquer modo, embora não necessariamente replicável o que acontece na Europa é alentador. É de se esperar que os EUA, cujos cientistas foram os primeiros no mundo em alertar sobre os riscos das mudanças climáticas, agora sob a estrela cadente do Presidente Bush e a ascensão dos democratas e do neoconservador Governador Schwatzernager, também adotem medidas mais concretas. Outros países, como Canadá e Japão já estão fazendo muito do que devem fazer e, Austrália, sob o impacto contínuo de desastres naturais variados, não deixará de tomar medidas sérias.
Mas, o comportamento dos governos dos países menos desenvolvidos é muito diferente. Eles, até o último minuto, fizeram tudo o que a imaginação de seus diplomatas permite para evitar que se diga toda a verdade sobre os riscos. China e Brasil foram os campeões dessa estratégia, usando até a saciedade o absurdo argumento de que “a culpa é dos outros” e que “não podem sacrificar seu desenvolvimento futuro pelos danos que os países ricos fizeram ao planeta no passado”. Assim resultam argumentos aberrantes como dizer que o desmatamento e queima das florestas tropicais, como a Amazônia, tem uma participação “mínima” sobre o efeito estufa, contrariando o que qualquer cientista não parametrado sabe de sobejo. O caso da China, claro, é bem pior, por não citar a Índia, países do sudeste asiático e a Rússia. Não é que não pretendam fazer nada (a China acaba de anunciar medidas drásticas para reduzir o consumo de carvão mineral), mas é evidente que a sua intenção é fazer muito menos que o necessário. Em suma, oferecem o suicídio coletivo como uma alternativa e, isso, apesar de saber que, em muitos casos, seus territórios serão os mais afetados.
O Governo do Brasil reitera como solução a aplicação de mudanças na matriz energética, sem ponderar que sua estratégia implica no desmatamento das últimas florestas para produzir bio-combustíveis e na destruição da vida nos últimos rios ainda não degradados. O discurso oficial diz que a produção de bio-combustíveis será feita em “terras já desmatadas ou degradadas”, atualmente usadas na pecuária, embora os sensores remotos não mintam e confirmam que as selvas a cada ano perdem milhões de hectares. Os cultivos de oleaginosos quiçá, em parte, ocupem terras antes dedicadas à pecuária, mas, é obvio que por isso a pecuária e outros cultivos avançam mais e mais sobre o mato. Para facilitar isso está a incessante construção de novas estradas na Amazônia e a participação tão ativa dos países da região na Iniciativa da Infra-estrutura de Integração Sul Americana (IIRSA) promovida por banqueiros e empreiteiras e que nunca foi submetida sequer a uma avaliação ambiental. Outra vez, se essas “soluções” são contrastadas com os problemas que provocam o efeito estufa, não cabe dúvida que estarão na parte vermelha do balanço.
Existem muitas medidas bem mais efetivas e baratas para combater seriamente as implicações do efeito estufa à disposição de países da América Latina. Podem-se mencionar a intensificação da produtividade agropecuária em terras já desmatadas (implicando também a melhoria da infra-estrutura existente de transporte público); o investimento em infra-estrutura de transporte marítimo, fluvial e ferroviário; a redução do mal gasto de energia (a nível doméstico e urbano, por exemplo, fomentando o transporte coletivo de boa qualidade); retirando populações de áreas de risco e revegetando as ladeiras de morros; evitando atividades de mineração com alto risco para a sociedade, etc. Tampouco cabe descartar opções como são a energia nuclear, eólica ou solar e, muito menos, as verdadeiras soluções de mais longo prazo, como as promessas do uso de hidrogênio. Mas, tampouco devem se deixar de lado múltiplas medidas elementares como, por exemplo, controlar o desperdício de telefones celulares praticamente novos e em perfeito estado de funcionamento, que devem ir ao lixo simplesmente porque a empresa decide que era tempo de vender um aparelho novo com tecnologia “mais avançada”. Alguém sabe quanta energia foi consumida para fabricar esses aparelhos que após um par de anos viram “inservíveis” unicamente para que uma empresa ganhe mais dinheiro? Será que a ANATEL alguma vez pensou nisso?
Ou seja, soluções para mitigar as conseqüências das mudanças climáticas existem e são muitas. Algumas são politicamente dolorosas e outras nem tanto. Elas requerem senso comum e, em especial, de governos independentes dos interesses econômicos privados dominantes como esses que venderam aos políticos da região que a IIRSA é a melhor ou a única solução para a integração da América do Sul ou que incentivam um consumismo desbragado, com seu alto custo energético, tanto para a fabricação como para a sua eventual reciclagem.
Todos os países da América Latina deveriam criar, urgentemente, uma comissão permanente de nível ministerial para discutir e propor aos governos as medidas integradas que permitiriam aliviar os impactos das mudanças climáticas, com o assessoramento das melhores cabeças pensantes disponíveis, sejam nacionais ou estrangeiras. Esses expertos deveriam abarcar todas as áreas do conhecimento e das atividades humanas e, em especial, não excluir os interesses empresariais, sindicais e outros que, na crise já instalada, terão que tomar ou aceitar decisões e, também, tirar proveito de oportunidades. Por exemplo, derivar o interesse de investidores em hidroelétricas faraônicas e em latifúndios de soja e orientá-lo ao transporte público de qualidade que tire centenas de milhares de automóveis particulares das ruas.
Detesto terminar, como de costume, sem muito otimismo. Duvido que a sociedade em geral reaja a tempo e por isso, possivelmente, assistamos progressivamente a um “salve-se quem puder” onde os ricos terão melhores oportunidades que os pobres, embora se salvar implique em convulsões sociais muito piores que as já vistas na história humana.
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