Conheço setenta países. Em quase todos visitei Parques Nacionais e outras categorias de unidades de conservação. Salvo pouquíssimas exceções que confirmam a regra, em todos os lugares em que as áreas protegidas são bem manejadas há um instituto ou agência exclusivamente dedicada a isso. Assim é preciso parabenizar a Ministra Marina Silva pelo ato corajoso de criar também no Brasil um órgão voltado para a gestão de nossos Parques. Como a própria Ministra declarou, é hora de termos um órgão que possa efetivamente implantar as Unidades de Conservação brasileiras tirando-as efetivamente do papel.
Poderia comentar a bem-vinda criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade por vários ângulos: cuidará também das APAS e das Florestas Nacionais? Terá autonomia administrativa? Manterá em seus cofres o que arrecadar ou recolherá tudo ao caixa único do Estado? Vou me ater, contudo, a questão que considero primordial: quem vai tocar o instituto?
Para que o manejo das Áreas Protegidas brasileiras seja saudável seria ideal que o Instituto já nascesse com um plano de carreira definido que sirva para disciplinar a formação dos guardas-parques, normatizar a progressão funcional e estimular o trabalho no campo. Não faltam exemplos bem sucedidos em países mais pobres do que o Brasil que poderiam ser adaptados à nossa realidade.
Como bem defendeu Marc Dourojeanni aqui em O Eco, coisas simples, como uniformes, hierarquia e escalas de trabalho nos fins de semana são fundamentais em uma atividade que pede certa disciplina e que envolve fiscalização e a imposição da lei. Nesse sentido faz sentido, desde sua incepção, avaliar se vale a pena que o Instituto Chico Mendes seja uma agência fardada e hierarquizada, como são os serviços de Parques do Quênia, Estados Unidos, Austrália, África do Sul, Tanzânia e tantos outros lugares onde as Unidades de Conservação são manejadas a sério. Não se pede aqui uma militarização do Instituto, mas sim um perfil organizacional adequado à sua atividade fim. Mesmo no Brasil há diversas profissões que, apesar de civis, têm esse perfil porque é o que melhor se presta ao desempenho de suas funções. Para citar apenas alguns casos, assim são estruturadas as Guardas Municipais, a Aviação Civil e a Marinha Mercante. Já ao Itamaraty, só falta o uniforme, mas a hierarquia rígida e a disciplina estão lá.
Idealmente, o Instituto Chico Mendes terá duas carreiras com fluxos próprios. Uma de nível básico, cujo requisito para admissão deve ser o segundo grau completo, vigor físico e conhecimento prático de mato. Não se pode pensar em um guarda-parque que não saiba montar uma barraca, encontrar seu caminho em uma trilha ou que tenha medo de caminhar ao ar-livre embaixo de uma chuvarada. Essa gente constituirá o grosso da força de guardas parques, fiscais, brigadistas de incêndio, mantenedores de trilhas e motoristas e poderia ter de três a cinco níveis hierárquicos diferentes. A segunda carreira, de nível superior, deve exigir curso universitário completo, vigor físico e também conhecimento prático de mato.
Essa última carreira, em países sérios, constitui a massa pensante e os gestores dos serviços de parques. Após concurso de admissão, a exemplo das academias das Forças Armadas e de Bombeiros, mas também de órgãos civis com excelência comprovada como a Polícia Federal e o Ministério das Relações Exteriores, os novos técnicos ambientais freqüentariam uma academia a ser criada em alguma cidade grande onde haja unidades de conservação que possam servir como parque-escola.
Na salas de aula, durante dois anos, estudariam disciplinas como manejo, pesquisa, relações com a comunidade, implantação e manutenção de trilhas, controle e mitigação de impactos ambientais, prevenção e combate a incêndios florestais, legislação ambiental e administração pública. No parque-escola poriam em execução o que foi ensinado, adequando o aprendizado teórico à experiência prática.
Ao graduarem-se como “inspetores guarda-parque”, escolheriam sua primeira lotação em Unidade de Conservação de sua preferência de acordo com a classificação obtida no curso. Assim como nas Forças Armadas ou no Itamaraty, ficariam no máximo três anos em cada unidade, salvo por vontade própria. Os parques poderiam ser classificados em categorias “A” , “B” e “C”.
Após servir em um Parque “C” o funcionário teria direito a servir em um “B” e depois um “A”, só sendo obrigado a voltar a um “C” depois de servir em “A” . Trabalhar em postos de sacrifício também deveria ser requisito para as promoções.
Analogamente, entre cada promoção, o funcionário deveria voltar a Academia para fazer cursos de aperfeiçoamento, reciclagem ou especialização em áreas tais como manejo de mosaicos, administração de Parques Transfronteiriços, manejo de Parques Marinhos, manejo de Parques de Cerrado e assim por diante.
Após cerca de dez anos na instituição e duas ou três promoções o já então “inspetor guarda-parque graduado” poderá ser promovido a “Chefe de Parque C”, cargo para o qual, além da experiência acumulada e de critérios de merecimento a serem estabelecidos será exigido também a preparação e posterior aprovação de uma monografia sobre tema de interesse do Instituto Chico Mendes. Após ser “Chefe de Parque C”, seguir-se-ão os postos de “Chefe e Parque B e A” e finalmente os cargos de diretor a serem desempenhados na capital federal e demais escritórios do Instituto.
A Academia poderia ser no Rio de Janeiro ou em Brasília, duas cidades com ampla oferta de acomodação, diversos professores e com Parques Nacionais na própria área urbana. O exemplo do Rio de Janeiro é paradigmático. Há no Alto da Boa Vista, junto à Floresta da Tijuca, vários prédios vazios com proporções suficientes para abrigar a Academia, entre eles o Hotel das Paineiras, de propriedade da União e hoje desativado. Os professores poderiam ser recrutados no Grupamento Florestal do Corpo de Bombeiros, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, na Faculdade de Turismo da Cidade, na Universidade Rural, na UFRJ, na UERJ e na PUC-Rio para citar apenas algumas instituições de um vasto naipe que a cidade provê.
Por outro lado, o Parque Nacional da Tijuc, com uma freqüência de mais de um milhão de visitantes por ano, seria um excelente campo prático para o aprendizado dos futuros gestores de Parques do Brasil. Ali aprenderiam a manejar trilhas, gerir locais de visitação de massa como o Corcovado, mediar conflitos com a iniciativa privada, as comunidades do entorno, administrar mosaicos como o que a Tijuca forma com a Pedra Branca e o Parque Estadual do Grajau, apagar os repetidos incêndios provocados pelos balões de São João e cooperar com o Município e com o Estado em questões como as captações ilegais de água, o recolhimento de lixo, a administração das estradas que cortam o Parque e o planejamento das atividades de segurança pública. Junto aos pesquisadores das universidades da antiga capital, poderiam desenvolver planos de reflorestamento, de pesquisa botânica, de erradicação de exóticas invasoras e de reintrodução de espécies.
Bem administrada essa academia serviria para formar não apenas os funcionários do Instituto Chico Mendes, mas também poderia capacitar técnicos dos Institutos e Fundações Florestais dos Estados e Secretarias Municipais de Meio Ambiente bem como oficiais das polícias ambientais e bombeiros florestais. Tendo funcionários bem treinados e com um fluxo de carreira que possa permitir o vislumbre de uma ascensão funcional baseada na antigüidade e no merecimento, é lícito sonhar com um Brasil em que cada um dos parques seja muito mais que um mero decreto publicado em um pedaço de papel.
* Pedro da Cunha e Menezes enviou esta coluna para O Eco em 27 de abril, pouco antes de entrar de férias.
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