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O coração da fazenda

A legislação federal obriga que fazendeiros protejam grandes parcelas das suas propriedades. Mas eles reclamam que o ônus dessa política deve ser de todos.

19 de novembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

A conservação de matas e florestas interessa a todos. Seja por seus efeitos locais, seja pelo planeta. Mas quando elas estão em terras privadas, é preciso cuidado ao tentar preservá-las jogando todo o custo sobre os proprietários rurais. Embora, em parte, eles próprios sejam beneficiados por protegerem suas matas, o maior benefício é coletivo. E o resultado de políticas mal direcionadas pode ser muito conflito e pouco resultado.

Durante os últimos 22 anos, um bem-sucedido executivo dedicou-se a recomprar a fazenda da família, aberta pelo avô em 1913 e que acabou sendo vendida. Essa terra fica no oeste de São Paulo, perto da fronteira com o Paraná. Depois que saiu da mão da família, a propriedade original, de cerca de 1.000 alqueires paulistas (ou 2.400 hectares) se fragmentou em pequenas propriedades. Por sorte, manteve muita mata, embora pouca nativa. Talvez porque os novos donos não tivessem recursos para explorá-la inteira.

É terra roxa, extremamente produtiva. A região foi colonizada com a abertura da estrada de ferro Sorocabana, inaugurada em 1875, ligando Sorocaba a São Paulo. No início do século XX, suas extensões cruzavam o estado de São Paulo, chegando às bordas do Paraná e Mato Grosso. Com ela avançaram os imigrantes italianos e a cultura do café. Mais tarde, a soja tomou o lugar do café e, recentemente, perdeu espaço para a cana-de-açúcar. Todas essas culturas incentivaram o desmatamento maciço das florestas nativas da região.

Sobrou pouca coisa original. Mas numa das múltiplas recompras para conseguir refazer a unidade da fazenda antiga, o executivo viu-se negociando a aquisição de 12 alqueires de mata intocada. Era como comprar um belo quadro, já que, mesmo que quisesse, o Ibama não permitiria a derrubada da mata. Ao dono desse pedaço foi oferecido em troca outro maior, de qualidade equivalente e a poucos quilômetros de distância. Mas a oferta encontrou resistência. Um dos argumentos foi que a área oferecida tinha menos mata e, portanto, recebia menos chuva.

O negócio acabou fechado e os 12 alqueires de mata original voltaram para a família. Um dia, o executivo percorria a fazenda com sua velha tia, que lúcida, aos 94 anos, é a memória viva e mais antiga da história local. Ao passar pela mata recomprada, ela lembrou que o pai costumava dizer: “aconteça o que acontecer, nunca toque nesse lugar. Isso aqui é o coração da fazenda”. Feliz descobriu, no fim dessa saga, que além de reunir em terras contíguas cerca da metade da área original, havia recuperado o seu coração verde.

Também ficou dentro da lei. Quem tem terra nas regiões Sul e Sudeste precisa proteger ou recompor 20% da área total com cobertura nativa. Essa legislação é federal e remonta à década de 40, mas só nos anos 80 começou a ser exigida pelo IBAMA. Mesmo assim, ela está sendo aplicada em ritmos muito diferentes, dependendo do estado e do município em questão. E as regras, por exemplo, para recompor uma área já desmatada, são pouco claras. A resistência dos proprietários combinada com a burocracia, pouca capacidade de fiscalização e, a boca pequena, a corrupção dentro do IBAMA e outros órgãos responsáveis tornam lenta a aplicação da lei.

As chamadas Áreas de Reserva Legal são diferentes para cada região do país. Os percentuais variam de acordo com o lugar e, em alguns trechos da Amazônia Legal, chegam a 80%. As legislações estaduais e municipais não podem mudar esses limites mínimos, mas podem sobrepor-se às normas federais quando aumentam o grau de proteção. Além dessa limitação, existem também as Áreas de Preservação Permanente, aquelas em torno de rios e nascentes. É comum, dependendo do estado, que elas sejam consideradas parte da Área de Reserva Legal.

Nessas terras roxas do oeste de São Paulo, o valor do alqueire flutua com o preço internacional da soja, cuja média dos últimos anos ficou em torno de US$10 por saco. Um alqueire costuma ser negociado pelo valor de 1.000 sacos de soja, ou cerca de US$10.000. Esse é o custo de oportunidade do proprietário de preservar cada alqueire de terra nessa região. No caso do protagonista da nossa história, ele mantém 80 alqueires, o equivalente a US$800.000. O objetivo é nobre, mas o custo é alto.

Ao mesmo tempo, ele reconhece os benefícios privados da sua área protegida. Os fazendeiros acreditam que, perto de florestas, o clima é mais ameno e a incidência de chuva é maior. Um ecossistema rico em torno das plantações sustenta passarinhos, que ajudam a combater as pragas. Assim, reduz-se a necessidade de defensivos agrícolas, uma das maiores despesas da agricultura moderna. E a manutenção de matas ciliares serve como barreira para que as chuvas não lavem os defensivos para dentro dos rios e outros mananciais, melhorando a qualidade da água e preservando os peixes.

Mas os proprietários reclamam de terem de arcar sozinhos com uma medida que gera, na maior parte, benefícios coletivos. É verdade? O que dizem os economistas sobre o assunto e sobre medidas que possam incentivar a proteção sem onerar excessivamente os proprietários?

Ronaldo Serôa, economista ambiental do Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (IPEA), faz as seguintes considerações. Não necessariamente a Área de Reserva Legal é um imposto sobre a riqueza do proprietário. À primeira vista, impedir o uso de 20% da propriedade seria equivalente a confiscar igual parcela do seu valor. Mas a terra é um recurso finito. Se essa regra é aplicada a todos, resta menos disponível para a agricultura e, mais escassa, seu preço subirá, compensando, pelo menos parcialmente, a perda da área protegida. Isso, provavelmente, vai bater no consumidor, na forma de comida mais cara.

Existe outro problema que se aplica bem a nossa história. Em terras de alta qualidade agrícola, pode fazer pouco sentido manter grandes áreas protegidas. Nesse caso, por que não deixar que o proprietário compre um pedaço de terra, de menor valor mas de mesmo tamanho, em outro lugar, e o registre como sua área de reserva? Essa solução reduz custos de preservação e, limitando-se essas trocas dentro da mesma bacia hidrográfica, também é ecológica. Em alguns estados, como Goiás, já está sendo implantada. Há outra sugestão interessante. Ao invés de preservar pequenas áreas descontínuas, em cada fazenda, poderiam ser formados longos corredores ecológicos. Isso agregaria benefícios, como áreas grandes de circulação da fauna. Nesse caso, esse corredor poderia ser composto com contribuições dos fazendeiros, equivalentes à área de proteção legal que deveriam ter em suas terras.

E os impostos e outros incentivos? Desde a gestão Fernando Henrique, as áreas protegidas são isentas de Imposto Territorial Rural (ITR). Os proprietários gostam dessa medida, mas alguns reclamam que esse não é o imposto mais pesado e sua redução traz pouco alívio. Já foi proposto por um ex-deputado de São Paulo, Antônio Cunha Bueno, a isenção do ICMS sobre a compra de insumos e máquinas agrícolas. “Não tem grandes efeitos”, registra Serôa. O ICMS é um imposto sobre valor agregado. Reduzir sua incidência sobre uma etapa da produção aumenta a cobrança sobre o elo seguinte. Nesse caso, os fazendeiros pagariam menos imposto, mas os compradores dos seus produtos pagariam mais. Como a incidência do imposto é decidida pelo poder de barganha de cada parte, esses compradores poderiam forçar uma queda dos preços agrícolas para compensar o pagamento do imposto, anulando a intenção da medida. Só uma redução do ICMS sobre toda a cadeia faria sentido.

Gabriel Carvalho Dias, cafeicultor de Poços de Caldas, Minas Gerais, pondera que seria melhor que o ITR fosse alto e o ICMS da cadeia agrícola fosse baixo. Assim, a isenção do ITR nas áreas protegidas seria mais atraente. Talvez sem saber, repete a proposta feita pelo famoso Stuart Mill, economista do século XIX. Mill propôs um sistema de taxação agrícola inspirado nas práticas da época na Alemanha e Suíça. Ao invés de taxar a produção, ele propunha cobrar um imposto fixo por hectare, como é o ITR. Dessa forma, o proprietário teria um incentivo permanente a preservar e melhorar a qualidade da terra. Quanto mais produtiva ela for, menor o peso do imposto. É uma boa idéia.

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