Há uns anos minha irmã contou que um amigo baiano havia se referido ao óleo de dendê como combustível e não comestível. O cara poderia estar prevendo o futuro da matriz energética mundial e não sabia. Antes de qualquer coisa é preciso esclarecer que todo o combustível fóssil (p.ex., petróleo, carvão) tem origem biológica. São e sempre foram biocombustíveis. Mas na forma em que se encontram na natureza, não são renováveis. São heranças da natureza paleolítica para as sociedades industrializadas do futuro. Um ouro negro repleto de átomos de carbono unidos pela energia química latente da fotossíntese pré-cambriana, prestes a explodir e se transformar na energia térmica, mecânica, cinética, elétrica e luminosa necessárias para manter a estrutura e o funcionamento do ecossistema urbano e industrial. Uma herança que até hoje provoca guerras e disputas na luta pela sobrevivência econômica e social do planeta.
Uma breve cronologia da tomada de consciência sobre a questão ambiental no mundo talvez tenha iniciado na década de 70. Eram os tempos em que ainda se considerava Gaia mais uma teoria esotérica. Mas a idéia de que era necessário proteger o meio ambiente já começava a ser consenso nos bate-papos de botequim. Só que ninguém sabia muito bem o porquê e pra quê, e as conversas se tornavam evasivas, às vezes ecochatas. Daí ou mudava de rumo ou fazia inimigos, como nas discussões sobre política e futebol. Até que surgiu o primeiro réu ambiental: o gás das geladeiras e ar-condicionado. Aquele produto com nome de filme de ficção científica da sessão da tarde, que esburaca a camada de Ozônio e torna os raios ultravioletas o culpado por todos os casos de câncer de pele do planeta. A indústria de eletrodomésticos entrou em pânico e a indústria cosmética festejou. O tempo passou, nada foi feito, parece que tudo continua do mesmo jeito e nos conformamos em incluir os protetores solares nos itens de consumo.
O vilão seguinte foi a emissão de gases do efeito estufa, tais como o Carbono e o Metano (nome genérico do pum), e a ameaça do aquecimento global que está deixando os russos radiantes de felicidade pela possibilidade da expansão agrícola nas terras do sub-ártico favorecida pelo degelo. O desmatamento da Amazônia, a poluição das águas, e a possibilidade, ainda que remota, do domínio das máquinas e de bebezinhos terem que usar máscaras de oxigênio no futuro nos fez repensar o modelo de desenvolvimento. Governos, empresas, cientistas e ambientalistas decidiram reverter o rumo da degradação ambiental do planeta, e partir para um novo paradigma do desenvolvimento sócio-econômico: o uso sustentável dos recursos naturais, preconizado na Agenda 21 Global. Um documento construído com a participação de diversos países durante a ECO 92. Parecia que as coisas iriam ser mais bem esclarecidas. Agora nós tínhamos um protótipo de diálogo entre os setores industriais produtivos e o movimento conservacionista. Um novo modelo de desenvolvimento econômico com responsabilidade sócio-ambiental. Palavras bonitas, porque na prática ainda há um desequilíbrio dinâmico entre a energia solar usada para manter a organização do meio ambiente global e a nossa capacidade de queimar, matar e demolir habitats naturais. O ciclo do carbono continua a ser alterado e ele se acumula cada vez mais na atmosfera.
Tudo é ecologia
Mas valeu a intenção do início dos anos 90. De uma hora pra outra os termos “meio ambiente” e “ecologia” invadiram a nomenclatura nacional e o cotidiano das pessoas. Nos demos conta de que somos vivos, orgânicos, feitos de Carbono e que dependemos da saúde dos ecossistemas para manter nossa própria saúde. As ONGs ambientalistas internacionais se fortaleceram cada vez mais, conseguindo credibilidade e apoio financeiro das multinacionais que se sentiam culpadas. Surgiu o Globo Ecologia e a novela Pantanal. Estávamos aos poucos nos educando para o próximo milênio e para o grande desafio final de resolver os conflitos entre desenvolvimento e conservação. E o dever de casa mais complicado era, e ainda é, desacelerar o aquecimento global.
Mas não sei bem o que aconteceu no meio do caminho. O marketing ambiental e a indústria do verde e do ecologicamente correto se meteram na frente. Começaram aqueles mandamentos marqueteiros do tipo “sabendo usar não vai faltar” ou “conservar é saber usar”. Nos últimos 10 anos, vulgarizou-se como nunca a palavra ecologia e seus conceitos termodinâmicos e biogeoquímicos que explicam a vida e o equilíbrio ambiental no planeta. Hoje em dia tudo o que supostamente não prejudica tanto o meio ambiente como sempre fez adquiriu automaticamente o título de “ecológico”. É couro ecológico, tijolo ecológico, bioinseticidas e repelentes ecológicos a base de ultra-som. Tem até um antilatido (e neurotizante de cachorro) ecológico com um nome nada ecológico: Dog Silencer-PRO!! E a coisa evoluiu para brindes ecológicos feitos com papel reciclado e uma infinidade de produtos de limpeza ecológicos tais como detergentes, desingordurantes, lava-louça em pó ecológico, limpa-vidros, limpa-banheiros e limpa-bundas ecológicos.
E recentemente surgiu mais um absurdo ecológico chamado “saco plástico oxi-biodegradável” no mercado consumidor varejista. Outra empurrada de sujeira pra debaixo do tapete, só que dessa vez com conseqüências mais graves. Enquanto o saco plástico era apenas mais um maldito saco plástico a chegar na praia ou nas margens dos rios, dava até pra remover e resolver o problema com educação ambiental e reciclagem. Mas se ele se esfarelar em milhões de pedacinhos invisíveis até o tamanho das moléculas, como polímeros venenosos, ai é que o bicho vai pegar! Quanta ignorância! Para o meio ambiente vai ser que nem uma doença fatal causada por um vírus incurável. Por fim não posso deixar de mencionar o supra-sumo das redundâncias gramaticais: a comida orgânica! Nunca se abusou tanto dos benefícios para a saúde e de toda essa indulgência ecológica pra se entrar no céu. Parece até réu-confesso se evangelizando na cadeia pra ver se a sociedade perdoa os crimes hediondos do passado.
E nesse clima de ignorância total sobre o que é e pra que serve a ecologia, a bola da vez é sem dúvida o combustível ecológico com destaque para o biodiesel. Sim, porque o álcool, nosso primeiro e bem sucedido biocombustível, foi responsável por tanto problema ambiental que se evita enaltecer suas qualidades como combustível renovável. O Pro-Álcool provocou a perda de grande parte da Mata Atlântica ciliar central e nordestina, com erosão de margens e transporte de excesso de sedimentos para os oceanos reduzindo drasticamente a extensão e a saúde dos recifes de coral. Portanto, todas as atenções estão voltadas para o biodiesel extraído de culturas terrestres. As chamadas oleaginosas. Destaca-se a soja, a mamona, o dendê e o girassol cujas sementes normalmente produzem de 20-50% de óleo em sua composição química, com alta rentabilidade na produção industrial de biodiesel. O dendê atendeu perfeitamente às previsões anedóticas do amigo da minha irmã. Produz até 4400 Kg/ha de óleo bruto, contra 600 Kg/ha produzido pela soja.
Microalgas como fonte
Agora vem minha maior preocupação. O receio de repetirmos os erros ambientais do Pro-Álcool. No Brasil a política de biocombustíveis já mostra defeitos congênitos. O pior deles é o uso do solo do Cerrado para a agroindústria da soja de modo a atender a demanda interna e de exportação de biocombustíveis. O outro é o consumo de água doce, que já começa a preocupar tendo em vista os problemas com o desequilíbrio do ciclo hidrológico Sabemos que são consumidas centenas de litros de água para cada quilo de grãos de culturas oleaginosas. O Dr. Paulo César Abreu, do Departamento de Oceanografia da Fundação Universidade do Rio Grande (RS), foi quem me familiarizou com o tema e com as vantagens da produção de biodiesel a partir de microalgas marinhas. São vegetais unicelulares que não usam água doce, podem ser cultivadas em tanques flutuantes no mar, sem conflitos agrários, e usar nutrientes de fontes oceânicas desde que as águas profundas ricas em nutrientes sejam bombeadas até a superfície. Nada que um pouco de tecnologia e vontade política não resolva. Para quem quiser saber um pouco mais sobre a importância ambiental, ecológica (mesmo!!) e sócio-econômica das microalgas marinhas veja o artigo “A natureza escondida”.
O conteúdo de lipídios das microalgas, substância precursora do biodiesel algal, varia entre 1 a 40% do peso seco, podendo alcançar até 85% se as condições nutricionais do cultivo for manipulada. Quer dizer, se a concentração de nutrientes for reduzida diminuindo os custos de produção, a concentração de lipídios intracelular aumenta ainda mais, o que aumenta o rendimento. Um paradoxo jamais encontrado no sistema produtivo industrial. As microalgas marinhas, sobretudo as diatomáceas, são mais promissoras ainda devido ao alto teor de lipídios em suas células. Claudia Maria Teixeira e Maria Elizabeth Morales, ambas pesquisadoras do Instituto Nacional de Tecnologia (RJ) publicaram o artigo “Microalga como matéria-prima para a produção de biodiesel” que comprova o potencial das microalgas como candidatas à matéria prima para a produção de biodiesel no Brasil sem conflitos ambientais.
Em Portugal, empresas européias (Alga Fuel, Green Cybe & Espírito Santo Ventures) estão investindo em uma refinaria de produção em massa de microalgas. É um novo conceito de rendimento de óleo por biomassa vegetal. O “single cell oil” (SCO) que visa desenvolver tecnologia para extração de óleo de organismos unicelulares, como as microalgas.
Nossos pioneiros
No Brasil existem iniciativas pioneiras do uso de microalgas para produção de biodiesel e fixação de carbono como forma de diminuir emissões industriais. O Dr. Marcelo Montes D’Oca, coordena atualmente o Projeto “Biodiesel a partir de microalgas”, a ser desenvolvido no Departamento de Química da FURG, no Rio Grande do Sul. Resumindo, as principais vantagens do uso de microalgas como matéria-prima para a produção de biodiesel são:
- Gasta pouca água. A maior parte da água é usada como habitat dos organismos que vivem em suspensão. Os cultivos em bioreatores mantêm a água em sistema fechados ou em piscinas abertas, onde pode ser reutilizada indefinidamente após cada colheita.
- Cultivos em massa podem ser feitos em qualquer lugar. Não utiliza o solo como habitat de sustentação. Portanto nossos solos podem continuar a produzir a agricultura tradicional, sem haver a necessidade de impactar o Cerrado ou Amazônia no processo produtivo.
- Cultivos em massa de microalgas ocupam o espaço em três dimensões. Ou seja, 1 metro quadrado de área usada para cultivos de microalgas pode ser estendido verticalmente produzindo centenas de vezes mais óleo vegetal do que culturas oleaginosas no mesmo espaço. Veja bem as vantagens disso! Não precisa derrubar mata nativa nenhuma. Em escala experimental, estima-se que as microalgas possam produzir de 200 a 300 vezes mais óleo vegetal do que a maioria das oleaginosas em uma área 100 vezes menor. Isto é, para produzir 250 mil toneladas de biodiesel vegetal a partir de microalgas são necessários 2.500 hectares de espaço em terra. Para produzir as mesmas 250 mil toneladas a partir da soja são necessários 500 mil hectares.
- A questão do espaço é ainda mais vantajosa se os cultivos em massa forem desenvolvidos no mar, depois que o Ibama licenciar, é claro. As medidas compensatórias são várias!
- Microalgas têm eficiência fotossintética muito maior do que os vegetais terrestres, com crescimento e acumulo rápido de biomassa vegetal. Ou seja, produzem mais biomassa por hectare em menos tempo.
- Outra vantagem de usar microalgas marinhas, é que elas NÃO NECESSITAM ÁGUA DOCE!! Crescem na água salgada. Um problema ambiental a menos.
- Microalgas são fixadoras eficientes de Carbono atmosférico. Fixam mais Carbono através da fotossíntese em muito menos tempo. Estima-se que cada tonelada de biomassa algal produzida em determinado tempo consome duas toneladas de CO2 através da fotossíntese. Isso representa dez a vinte vezes mais do que o absorvido pelas culturas oleaginosas.
- A natureza unicelular assegura uma biomassa com mais pureza bioquímica, ao contrário das plantas terrestres que tem compostos diferentes em diferentes partes do vegetal (p.ex., frutos, folhas, sementes ou raízes)
Entre 1978 a 1996 foi desenvolvido o “Programa de Espécies Aquáticas” no Laboratório Nacional de Energia Renovável (NREL), financiado pelo Office of Fuels Development, da Division of the US Department of Energy. O programa testou várias espécies de microalgas marinhas e de água doce, concluindo que as diatomáceas e as Clorofíceas unicelulares (p.ex., Neochloris oleoabundans, Scenedesmus dimorphus e Botryo-coccus braunii) são os grupos mais promissores. Espécies do gênero Botryococcus podem produzir até 86% de seu peso seco em hidrocarbonetos de cadeia longa (quer mais!?). Alguns cientistas acreditam que foi um antepassado fóssil desse gênero de microalga o responsável por vários depósitos de petróleo explorados atualmente.
Ou seja, as vantagens de usar microalgas, sobretudo marinhas, como matéria-prima para a produção de biodiesel são óbvias. E os números em relação à eficiência e vantagens sobre as culturas de oleaginosas estão aí para comprovar. Estamos mais uma vez diante de uma bifurcação na corrida pelo desenvolvimento com responsabilidade ambiental. Podemos seguir o caminho da tecnologia inovadora, criativa e alternativa, que usa a biotecnologia em benefício da própria humanidade. Ou continuamos no caminho da agroindústria tradicional, que até agora usou a biotecnologia para o benefício próprio além do ônus futuro de mais problemas ambientais.
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Otimo texto, vou somar aos outros dois títulos que separei para estudar mais profundamente.
parabéns..