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Medo do escuro

Ainda traumatizado pelo apagão de 2001, o Brasil destrói sua natureza a golpe de barragens. Assim, daqui a pouco, mesmo com luz, não teremos nada para ver.

13 de outubro de 2005 · 19 anos atrás

Quem se lembra do tão temido “apagão”, que assombrou a fase final do segundo governo FHC? Foi um susto que, aliando uma fase incomum de indisposição meteorológica a uma política energética absolutamente inadequada, levou os brasileiros a uma corrida aos supermercados e às lojas de eletrodomésticos para comprar lâmpadas e aparelhos mais eficientes e econômicos. Poucas vezes estivemos tão alertas quanto ao nosso próprio desperdício. Não só a população foi afetada. O governo também começou sua própria corrida, atrás de meios para impedir, custe o que custar, que aquela situação inaceitável volte a ocorrer. Nada mais justo. Mas as conseqüências ambientais desse desespero têm sido muito mais graves do que se poderia imaginar ou permitir.

Para provar isso, temos o caso de Barra Grande, muito alardeado aqui em O Eco. Naquele caso, Executivo, Judiciário, Ministério Público e grandes empresas não mediram esforços para criar e legitimar um empreendimento construído com base em um EIA-Rima fraudulento, que destruiu para sempre uma floresta de araucárias, ameaçadas de extinção e de valor inestimável. Agora, é chegada a vez do Estado de Goiás patrocinar a morte de seus rios e de seus últimos remanescentes de mata atlântica, em nome dos preciosos kilowatts.

Lá, estão em fase de audiências públicas quatro usinas hidrelétricas recém-licitadas pela Aneel, nos rios Claro e Verde, afluentes do Rio Paranaíba, que deságua no Rio Paraná. Além dessas, mais 12 usinas, nos mesmos rios e no seu vizinho, o Rio Correntes, aguaram licitação. Todas estas novas centrais hidrelétricas estarão a menos de 100Km das gigantescas represas de São Simão e Ilha Solteira. Além disso, segundo entidades ambientalistas da região, a convocação para estas audiências têm sido feita muito pouco tempo antes de sua realização e o Ibama não tem mandado nenhum representante para participar delas. Essas entidades denunciam, ainda, que não foi realizado um estudo do impacto ambiental integrado de todas as áreas afetadas, mas apenas estudos locais e isolados para cada uma das usinas. O Ministério Público já foi acionado, mas até agora sem resultados concretos.

As áreas a serem alagadas, além de diversas cataratas e quedas d’água de beleza cênica indiscutível, incluem quilômetros e mais quilômetros de mata atlântica ciliar, que compõe um importante corredor de biodiversidade ligando o pantanal mato-grossense ao cerrado. Em troca, as usuais medidas de mitigação, que incluem replantio e a recuperação de outras áreas e investimentos em parques e reservas já existentes. Tudo parece legal, ao menos no sentido estrito do termo.

Algumas perguntas, no entanto, ainda precisam ser respondidas, tanto para este caso quanto para o futuro, sobre a real necessidade e a localização de nossas usinas. A principal questão, no entanto, me parece ser sobre o hábito que se tem adquirido de passar por cima da legislação ambiental e constitucional vigente em nome das mais variadas justificativas. Será que o fato de a Constituição Federal definir a mata atlântica como patrimônio nacional, a ser utilizado apenas na forma da lei e de modo a preservar o meio ambiente não quer dizer absolutamente nada? Pelo visto, não. Como se costuma dizer no meio jurídico, “o legislador não usa palavras em vão”. Por isso mesmo, parece incoerente que se possa destruir o pouco — pouquíssimo — que nos resta de mata atlântica cada vez que se pretenda ampliar uma estrada, explorar uma jazida ou construir uma barragem.

Existe um motivo para que esses ecossistemas (pois, além da mata atlântica, a floresta amazônica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a zona costeira são classificadas como patrimônio nacional) recebam tratamento especial dentro da nossa Constituição, cujos artigos, pela sua relevância, só podem ser modificados através de procedimento específico. Talvez seja justamente por isso — por saber que não será possível flexibilizar ou alterar tais dispositivos — que o governo tenha decidido simplesmente ignorá-los.

Todos sabemos que medidas de mitigação só devem ser usadas em último caso, quando a degradação ambiental for inevitável, justamente porque não se prestam a restabelecer ou preservar o que se perde. Nesse caso específico, trocaremos todo um bioma, complexo e fundamental, por árvores, talvez em locais onde estas nem sejam tão importantes assim. Quando se olha por este ângulo, ficar no escuro pode não ser mau negócio, desde que, quando o rádio e a TV não estiverem funcionando por falta de energia, ainda se possa escutar os grilos e ver os vaga-lumes.

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