The Dawn of the Motor Age in the American City Peter D. Norton Massachussetts Institute of Technology Esse livro é chato, mas fundamental. Talvez o mais importante dos indicados até agora aqui na biblioteca do Outras Vias para quem tem interesse em aprender e entender como se dá a formatação de cidades voltadas para automóveis, e não pessoas. É chato por ser um livro acadêmico, repleto de referências teóricas detalhadas, notas de rodapé e, até agora, versão só disponível em um inglês cheio de termos técnicos e expressões específicas. Mas é fundamental por ser estudo aprofundado que mistura teoria com pesquisa empírica. Propondo-se a dissecar a “tecnologia da rua”, este pesquisador mergulhou em jornais e documentos principalmente das décadas de 1910, 1920 e 1930 para detalhar como o discurso sobre a ocupação do espaço público foi se alterando gradualmente no último século nos Estados Unidos. Trata-se de um panorama geral que ajuda a entender a transição da época em que os motoristas eram considerados responsáveis por todo atropelamento e em que era impensável pensar em culpar uma criança (ou seus pais) por ser morta ao brincar ou atravessar distraída uma rua, ao momento em que se tornou aceitável limitar a presença de pedestres em faixas específicas. Peter D. Norton vai fundo, apresenta personagens, discursos e campanhas publicitárias, reproduzindo cartazes da época, trechos de artigos de jornal e de cartas de leitores indignados. O livro tem paixão, mas Norton não cai na tentação de se limitar a uma visão maniqueísta, que coloca como malvado quem tem carro e bonzinho quem não tem. Ele vai além e apresenta rico material para reflexão sobre conceitos como “segurança no trânsito”, “educação de pedestres” e “liberdade de ir e vir”. Elencando fatos, dados e ideias, ele demonstra, por exemplo, como, se apoiando em conceitos como respeito absoluto pelas liberdades individuais, bastante fortes nos Estados Unidos, os rodoviaristas literalmente atropelaram os argumentos das empresas de transporte coletivo em favor de sistemas de deslocamento de massa, ainda que pesquisas e análises científicas indicassem que estes fossem mais eficientes e beneficiassem mais gente. Deixa claro como se deu a ridicularização dos pedestres que resistiam em aceitar as nascentes limitações na ocupação da rua, cuja prioridade passou a ser do automóvel. Campanhadas coroadas com o termo jaywalker (ou algo como “o caipira que não sabe atravessar as ruas”) serviram para disciplinar o trânsito abrindo espaço para o aumento da velocidade dos carros, e conseguiram mudar a maneira como as ruas foram entendidas e organizadas por séculos. Norton detalha como as montadoras de automóveis, os nascentes clubes de motoristas e as concessionárias se apropriaram de alguns destes conceitos e distorceram outros para obter mudanças fundamentais para o avanço da sociedade motorizada. O livro ajuda a entender como foi erguido um dos pilares da economia e do sistema de poder dos Estados Unidos, com detalhes inclusive sobre as articulações políticas em plano federal. Trata-se de rica fonte de informações para quem tem interesse em pensar o trânsito e se aprofundar não só sobre como se deu a mudança nas cidades americanas, mas também sobre como estes discursos e conceitos são apropriados e utilziados ainda nas metrópoles brasileiras hoje. É material de base para entender o passado, conseguir contextualizar o presente e propor mudanças futuras. O livro, só disponível em inglês por enquanto, pode ser comprado diretamente na página da editora ou importado pela Amazon.com. É possível folhear alguns trechos na Amazon ou no Google Books.
“The automotive city arose in part from an attack on the old customs of street use and an effort to let individual liberty and free markets rule there too. From Americans ideals of political and economic freedom, motordom fashioned the rhetorical lever it needed. In these terms, motorists, though a minority, had rights that protected their choice of mode from intrusive restrictions. Their driving also constituted a demand for street space, which, like other demands in a free market, was not a matter for expert scrutiny. The struggle was difficult and sometimes fierce. In motordom´s way were street railways, city people afraid for the safety of their children in the streets, and most of the stablished traffic enginnering principles of the 1920s. Motordom, however, had effective rethorical weapons, growing national organization, a favorable political climate, substantial wealth, and the sympathy of a growing minority of city motorists. By 1930, with these assets, motordom had redefined the city street. In the new model, some users of once unquestioned legitimacy (notably pedestrians) were restricted. Traffic engineers no longer burdened motorists with the responsibility for congestion; their coal now was to ease the flow of motor vehicles, either by restricting other users or by rebuilding city thoroughfares for cars. New urban roads were treated as consumer commodities bough and paid for by their users and to be supplied as demanded. On this basis, over the following four decades, the city was transformed to accommodate automobilies.” “A cidade para automóveis surgiu em parte a partir de um ataque aos antigos hábitos do uso das ruas e de um esforço para permitir que a liberdade individual e os livres mercados ordenassem sua ocupação também. De ideias americanos de liberdade política e econômica, o rodoviarismo obteve a alavanca que precisava. Nestes termos, motoristas, apesar de em minoria, conseguiram garantir direitos que protegiam sua escolha de deslocamento de restrições intrusivas. O dirigir também constituiu uma demanda por espaço na rua, o que, como outras demandas no livre mercado, não deveria ser uma questão para o escrutínio de especialistas. A luta foi difícil e às vezes feroz. No caminho do rodoviarismo havia os trens urbanos, pessoas apreensivas com a segurança de suas crianças nas ruas, e a maioria dos princípios de engenharia de trânsito estabelecidos em 1920. O rodoviarismo, no entanto, tinha armas retóricas, crescente organização nacional, um clima político favorável, riqueza substancial, e a simpatia de uma crescente minoria de motoristas urbanos. Em 1930, com estes ativos, o rodoviarismo tinha redefinido a rua na cidade. Neste novo modelo, alguns usuários que antes tinham legitimidade inquestionável (notadamente pedestres) foram restringidos. Engenheiros de tráfico não mais responsabilizavam os motoristas pelos congestionamentos; seu foco passou a ser como melhorar o fluxo de veículos motorizados, fosse restringindo outros usuários, fosse reconstruindo as vias para os carros. Novas avenidas nas cidades foram tratadas como bens para consumidores construídas e pagas por seus usuários e que deveriam ser fornecidas conforme a demanda. Nestas bases, durante as quatro décadas seguintes, a cidade foi transformada para acomodar automóveis”. (original e tradução livre do texto da página 17 do livro; a foto é reprodução de uma das ilustrações que indicam como era a ocupação das ruas antes da década de 1920 nos Estados Unidos)
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