Durante os dias de novembro observo a movimentação das aves no meu jardim. Duas aves negras, um pouco menores que o sabiá piam alucinadamente. Ficam com o pescoço estendido para frente e para o alto, e batem as asas sem voar, com movimentos curtos e rápidos, como mamangabas afoitas presas dentro de um copo de vidro fechado. Estas aves negras fazem muito barulho e se deslocam ora para um galho baixo na vegetação, ora para o solo, ora para o telhado da garagem. Sempre piando alto e tremulando as asas incessantemente. De repente surge um sabiá-do-barranco (Turdus leucomelas) adulto com o bico recheado de criaturas vermiformes; larvas de insetos ou minhocas? Aproxima-se do pássaro preto que parece piar ainda mais alto e enfia-lhe a maçaroca suculenta dentro da sua enorme boca suplicante. Mas há a outra ave negra, também piando incessantemente. O sabiá desaparece, porém em poucos segundos volta, mais uma vez com o bico repleto. Aproxima-se do outro rebento deixando o alimento também na sua goela.
Esta cena me remete a um antigo relógio de parede que ornava a sala de estar da casa do meu tio quando eu era criança. Dois pesos de madeira em forma de pinhões, pendurados por uma corrente de metal, subiam e desciam conforme o pêndulo bailava lentamente sob uma caixa de madeira talhada com motivos primaveris; perfis de folhas e flores. Eu e meus primos e primas nos sentávamos em frente àquele totem apenas para observar, a cada hora exata, a saída de uma pequena ave, também de madeira, por uma portinhola que se abria na frente da caixa. Neste instante, a ave parecia abrir o bico e cantava: cuco-cuco-cuco. Êxtase e gargalhadas entre a criançada. Mal sabíamos que o cuco, assim chamada aquela ave, existia realmente, embora somente no hemisfério norte, e que se tratava do mais conhecido e estudado parasita de ninhos.
Mais que um relógio
As fêmeas dos cucos depositam seus ovos apenas nos ninhos de outras espécies de aves obrigatoriamente, pois elas não constroem os seus. Um ovo de cuco geralmente mimetiza o formato e o colorido dos ovos do hospedeiro. O anfitrião pode reconhecer o ovo e assim abandonar o ninho, ou pode, sem saber, incubar e chocar o ovo de cuco. Logo após a eclosão, o ninhego (assim é chamada a ave recém-eclodida) do cuco empurra instintivamente sobre a borda do ninho qualquer objeto sólido com o qual entra em contato, ou seja, outros ovos ou, eventualmente, os verdadeiros ninhegos do hospedeiro já nascidos, ejetando-os daquele lar aconchegante. Com o desaparecimento de seus ovos ou filhotes, os pais adotivos dedicam toda a sua atenção para o jovem cuco. Além disso, o piado do cuco imita aquele que seria dado por muitos filhotes do hospedeiro.
Dois pássaros-pretos sendo alimentados por um sabiá. É o exemplo mais notório de nidoparasitismo, ou parasitismo de ninho, na região Neotropical, que se estende do sul do México e toda a América Central e do Sul. Aqui não temos os cucos (Cuculus canoros), mas sim os pássaros-pretos chamados de chupins (Molothrus bonariensis). Os chupins são aparentados aos pássaros-pretos verdadeiros (Gnorimopsar chopi), da família Icteridae, que inclui mais de 110 espécies. Os icterídeos têm estratégias sociais e reprodutivas diversificadas. Há espécies, como o guaxe (Cacicus haemorrhous) e o xexéu (Cacicus cela) que constroem elaborados ninhos em forma de bolsa, feito com fibras vegetais trançadas habilmente por seus bicos cônicos, sempre próximos a outros ninhos e assim formam grandes colônias. Mas o chupim adota uma estratégia reprodutiva complexa e abominada pelos padrões culturais das sociedades humanas ocidentais: o parasitismo. Por isso, um sujeito aproveitador entre nós é, por vezes e em algumas regiões, apelidado de chupim.
Belos e eficientes malandros
Os chupins são aves belíssimas, cujo macho adulto chega a apresentar toda a plumagem negra, brilhante, quase azul petróleo. A fêmea é também preta, mas de tonalidade mais opaca. Vivem na maior parte do tempo associados a grandes bandos com outros chupins, ora de meia dúzia de indivíduos, ora de centenas. Durante o crepúsculo se deslocam para dormitórios comunitários, geralmente árvores de grande porte e de abundantes galhos e folhas, como por exemplo, o alecrim-de-campinas (Holocalyx balansae), ou a seringueira falsa (Ficus elastica). Juntam-se ali em bandos realmente grandes, numa algazarra insuspeita, até mesmo no centro de grandes cidades. Piam, voam de um galho para outro, cantam, se bicam, se perseguem, interagem, defecam, e depois de algum tempo, se arrefecem e dormem inocentemente.
O dia mal chega a nascer e os chupins já estão agitados naqueles galhos ainda escuros, e a vozearia volta a dar o tom da alvorada. Começam a deixar o dormitório em pequenos grupos, cada um tomando a sua direção. Às vezes um grupo segue o anterior deliberadamente. Em poucos minutos a alcova está vazia, desolada e intacta.
Os chupins se deslocam para suas áreas de alimentação. Eles adoram pastos ou locais próximos a manjedouras de bovinos e, nos centros urbanos, frequentam gramados recém-podados. Catam seu alimento sobre o solo, sobre as ervas, sobre o mato baixo; grãos, insetos, aranhas.
Durante a época reprodutiva, machos e fêmeas iniciam seus rituais de corte que desembocam numa eventual cópula fugaz que não dura mais do que três segundos. Mas aparentemente não há compromisso entre os casais, o que caracteriza um sistema social promíscuo. Enquanto os machos procuram por outra fêmea, estas, agora fecundadas, precisam comer muito, principalmente alimento rico em cálcio, como os pequenos caracóis de jardim, escargot de chupim. Durante as próximas 24 horas ela formará seu ovo. Ela também precisa saber onde botará tal ovo, uma vez que não construiu um ninho. A esta altura ela já deve saber o local do ninho de muitas espécies que aceitam o seu ovo sem questionar. Há dezenas destas espécies, ditas hospedeiras, que aparentemente não reconhecem o filhote do chupim como sendo um estranho no ninho. Assim, estes hospedeiros acabam tratando aquele filhote não como um bastardo, mas como um legítimo filho. Há detalhes ainda mais sórdidos nesta relação entre o parasita e seu hospedeiro. O ovo do chupim tem desenvolvimento mais rápido do que a maioria das aves. Enquanto ovos de passarinhos levam de 12 a 18 dias para que o embrião se transforme num ninhego e possa assim eclodir, o ovo do chupim é incubado em menos de dez dias. Isso significa que o ninhego do chupim eclode antes dos ninhegos dos hospedeiros. Assim, são alimentados primeiro e crescem mais rápido do que os filhos legítimos. Tendo o corpo maior, o filhote de chupim arremessa sua enorme cabeça com o bico aberto na frente de todos os outros filhotes menores, deslocando-os e recebendo toda a alimentação trazida pelos seus pais adotivos. Na maioria dos casos os ninhegos legítimos acabam morrendo de inanição. Resta então apenas o patinho feio, que não dispensa cerimônias para sugar todo o cuidado parental destes pais inocentes.
Entusiasmados pais de bastardos
Muitos me indagam ‘mas como os pais não reconhecem? Os chupins são tão diferentes dos hospedeiros’. Será? Dentro dos ninhos, sejam medíocres panelinhas de capim e palha, como os ninhos das avoantes (Zenaida auriculata), ou complexas estruturas de gravetos, como os ninhos do curutié (Certhiaxis cinnamomeus), o que os pais realmente observam quando alimentam seus filhotes são as enormes bocas suplicantes das pequenas criaturas ali pousadas. Em outras palavras, não há muita diferença entre bocas abertas entre filhotes de aves suplicando por comida. Uma sugestão para explicar o sucesso do filhote parasita em atrair o cuidado dos pais hospedeiros é que o seu grande tamanho, o interior da boca brilhante e a intensa súplica na forma de piados incessantes provocam um super estímulo sobre os pais hospedeiros, enganando-os, fazendo-os acreditar que ali existe uma prole de alta qualidade.
Desta maneira, populações grandes de chupins podem exercer grande pressão sobre as populações de hospedeiros. Já existem evidências fortes que mostram o declínio nas populações de aves florestais do leste dos Estados Unidos. Explicações possíveis para este declínio têm a ver com as mudanças na paisagem e uso do solo. Antes da colonização europeia, os chupins norte-americanos (Molothrus ater) estavam limitados a oeste do rio Mississipi, porque as florestas contínuas do leste dos Estados Unidos não lhes forneciam habitat adequado. À medida que as florestas foram desmatadas, os chupins iniciaram um processo de ocupação destes novos habitat, agora propícios. O aumento da oferta de alimentos durante o inverno, resultado da abundância crescente de resíduos de grãos em lavouras de arroz criou uma explosão populacional daquele chupim. Boa parte das aves que costumava habitar as bordas daquelas florestas provou ser vulnerável ao parasitismo do chupim, desconhecido por elas até então. Assim, a vulnerabilidade foi maior para os ninhos de aves que nidificavam nas bordas do habitat arborizado e, portanto, mais próximo ao campo aberto preferido pelos chupins.
Contendo o estrago
Hoje, na América do Norte, existem programas voltados para remoção de ovos de chupim encontrados em ninhos de algumas espécies, sendo o pula-pula de Kirtland (Setophaga kirtlandii) o exemplo de hospedeiro mais emblemático por se tratar de uma espécie ameaçada de extinção. Quando o declínio das populações desse pula-pula foi observado, o U.S. Fish and Wildlife Service (agência governamental norte americana responsável pelo manejo do meio ambiente) iniciou um programa de captura e remoção de chupins. Por volta de 1980 mais de 40.000 chupins tinham sido removidos e, como resultado, o nível de parasitismo dos ninhos de pula-pulas tornou-se insignificante. As taxas de sucesso reprodutivo do pula-pula de Kirtland triplicaram e é agora maior do que a de muitas outras espécies hospedeiras do chupim.
No Brasil, e provavelmente em toda a América do Sul, não sabemos o real impacto do parasitismo do chupim. Mas sabemos que pelo menos uma espécie vem sofrendo perdas significativas dos seus ninhos como resultado deste parasitismo, o joão-cipó ou lenheiro-da-serra-do-cipó, Asthenes luizae.
O joão-cipó é uma ave da mesma família a que pertence o joão-de-barro (Furnarius rufus), que inclui mais de 241 espécies, todas elas exclusividade da região Neotropical. Esta ave é endêmica da Cadeia do Espinhaço, aquelas íngremes montanhas que cortam de sul a norte os estados de Minas Gerais e Bahia e que abrigam, além dos cenários mais esplêndidos do país, uma fauna e uma flora quase exclusiva. O joão-cipó vive apenas sobre a rala e baixa vegetação que cresce sobre os afloramentos de rocha no cume daquelas montanhas; apenas em locais acima de 1.000 metros de altitude. Isso faz que tenha uma distribuição geográfica restrita. A densidade de casais de joão-cipó é também baixa, e cerca de 60% de ninhos monitorados desde 2009 vêm sendo parasitados pelo chupim. Aparentemente, a presença de grandes bandos de chupins na região da Cadeia do Espinhaço é recente, e pode ter sido provocada pelo desmatamento, nos mesmos moldes daqueles ocorridos nos Estados Unidos. Mas as evidências ainda são fracas e controversas.
O futuro do joão-cipó é incerto, pois a nossa capacidade e velocidade de entender o impacto provocado pelos chupins é baixa em relação à infestação deste poderoso e belo parasita.
Este ano, os sabiás do meu jardim não deixaram descendentes e foram manipulados pelas adaptações naturais dos chupins. Será que cometerão o mesmo erro no próximo ano? Será que desaparecerão do meu jardim um dia?
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Aqui em volta de mim muitos sabiás q fazem ninhos na minha samambaia. Porém hoje fiquei surpresa pq tinha um filhote de chupim. Fiquei c/ dó dele tão filhote e tbem com raiva, pq amo os sabiás. Agora tô preocupada c/ esse intruso q pode exterminar os sabiás.
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Aqui no meu sítio quando vejo desse bicho eu extermino, como tem que ser feito com todo e qualquer parasita. Aqui não vão predar ninguém.
Adorei o artigo. Muito bem elaborado e rico em informações. Parabéns.
Conheço pessoas q agem assim . Parasitas
Quis dizer qualquer dicas são bem vindas
Maravilhoso artigo, venho lendo e aprendendo sobre o brown head cow bird e pássaros do sul dos Estados Unidos. Hoje estou observando os pássaros do nordeste extremo da Bahia, e reparei em um lindo estranho passarinho preto onde meus tios disseram que apareceu por ai e que era o conhecido como pássaro preto i( coisa de roça ) como se fosse um visitante mas rodeando a lavandeira fazendo ninho. Senti em minha intuição que talvez fosse um pássaro de parasitismo. Agora vou continuar pesquisando e ver se acho algo mais. Qualquer fica é bem vinda.ahhhh eu já presenciei o cardinal americano cuidando de um brown head cow bird. Masssss por incrível que parece na outra época de cuidados, a fêmea vou selvagemente assustando o filhote desta outra raça pedindo comida ao cardinal macho. Enviei essas informações a um professor americano o de sua assistente me confirmou que certas observações em apenas alguns pássaros foi visto que eles entenderam que tinham um intruso no ninho / chão aprendendo voar.
Prezado Marcos Rodrigues.
Parabéns pelo seu artigo. Há tempo venho procurando algo relacionado com a questão do parasitismo entre algumas espécies de pássaros e aí encontrei seu artigo, que foi ótimo. Eu venho acompanhando com preocupação a queda cada vez maior do número de tico-ticos (Zonotrichia capensis) aqui no Sul de Minas Gerais e Norte do Estado de São Paulo.
Você teria alguma sugestão para tentar evitar o desparecimento daqueles hospedeiros. Tenho notado que a cada ano que passa aumenta de forma assustadora as revoadas de chupins e os tico-ticos estão desaparecendo.
Desde já, muito obrigado pela atenção.
Atenciosamente.
José R. Bueno