Um governador recém-eleito promete drenar o que ele chamou de “abominável e pestilento pântano”. A maioria da população local vibra. A ideia é bem recebida pelos fazendeiros e especuladores de terra locais. Essa cena poderia estar acontecendo agora em diversos recantos do Brasil, mas retrata a colonização do sul da Flórida, Estados Unidos da América, na virada do século XX. Para os colonizadores do século XIX, as planícies alagadas da região eram um imenso pântano inútil. Em 1882, inicia-se um agressivo processo de drenagem e canalização da imensa planície, para transformação em plantações e assentamentos. Esse é o contexto de criação do Parque Nacional de Everglades.
O Parque Nacional de Everglades possui a maior área primitiva (wilderness) subtropical dos Estados Unidos. Ele é considerado Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera pela UNESCO. Com proporções de unidades de conservação amazônicas, possui 610 mil hectares. Os Everglades são uma rede de áreas alagadas e florestas, alimentadas pelo transbordamento de um lago chamado Okeechobee. As águas do lago fluem lentamente, à velocidade de 400 metros por dia, em direção ao mar no extremo sul da Flórida. Elas correm em um desnível de apenas 4,5 metros. Assim, forma-se uma imensa planície alagada, diversas formações florestais e o maior ecossistema de mangue do hemisfério ocidental. O parque é o lar de 36 espécies ameaçadas, como o crocodilo americano (Crocodylus acutus), uma espécie de suçuarana (Puma concolor coryi) e o peixe-boi marinho (Trichechus manatus).
Abriga também mais de 360 espécies de aves, 300 espécies de peixes de água doce e salgada, mais de 40 espécies de mamíferos e mais de 50 espécies de répteis.
História de luta popular
Diferentemente da maioria dos parques americanos, criados para preservar áreas de grande beleza cênica, o Parque Nacional de Everglades foi o primeiro caso visando proteger a fragilidade de um ecossistema. Sua criação está ligada ao crescimento da opinião pública a favor de um meio ambiente mais equilibrado. Nas primeiras décadas do século XX, parte do fluxo de água do lago Okeechobee foi sendo drenado através de barragens e canais, para permitir a implantação da agricultura na região. O acesso à área promoveu um processo rápido de crescimento populacional, que trouxe consigo a especulação imobiliária. Junto com a destruição de hábitats, iniciou-se uma agressiva exploração das áreas restantes, com a retirada de grandes quantidades de orquídeas, a morte de milhões de pássaros para o uso das penas em chapéus e caça sem controle.
Como acontece na física, onde “toda força impulsionada numa determinada direção, gera outra força, de igual intensidade, em sentido contrário” (Isaac Newton), em 1928, pela inconformação de alguns, foi criada a Associação do Parque Nacional Tropical de Everglades. Após muitas palestras em rádios, clubes e contatos com políticos, a Associação conseguiu suporte suficiente para, em 1934, fazer o Congresso Americano declarar a área como parque nacional. Diferente do modelo brasileiro, nos Estados Unidos, quando uma área é criada, a própria Lei já prevê o compromisso do governo com os recursos necessários para a aquisição das terras. Devido à Grande Depressão que assolava a economia americana na época, o caso do Everglades foi diferente.
Publicamente pressionado, o Congresso se comprometeu a criar o parque, mas repassou à Associação a responsabilidade de angariar os recursos necessários para a compra. Mais 13 anos se passaram até que todas as terras fossem doadas ou adquiridas. Em 1947, com a sua efetivação, o parque começou a funcionar.
Nas décadas que se seguiram após a criação do parque, o Governo da Flórida continuou com os projetos de drenagem fora dele, construindo mais de 1.600 km de canais, alterando e tornando agricultáveis mais 37% da área total original. No mesmo período, o sul da Flórida experimenta uma das maiores taxas de crescimento populacional do país, quando 6 milhões de pessoas se mudam para a região. Assim, boa parte das águas que antes corriam para o parque, foram desviadas para outros usos. A tensão se manteve, motivando o lançamento do livro “Os Everglades – O Rio de Grama”.
Resultado de uma pesquisa de 5 anos em história e ecologia, o livro chamou grande atenção da opinião pública para a destruição que estava ocorrendo e o lento colapso que se anunciava.
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Hoje só existem 2/5 do ecossistema original dentro do parque nacional e mais algumas áreas adjacentes. Durante sua existência, muitos problemas graves vieram à tona. Denúncias comprovaram grande perda da biodiversidade e graves casos de contaminantes na água, comprometendo inclusive o abastecimento da grande Miami.
Além disso, impactos começaram a ser sentidos em diversos ramos da economia, como o turismo e a pesca esportiva. A opinião pública passou a pressionar cada vez mais em favor do parque nacional. Na década de 1990 foi elaborado o Plano de Restauração Abrangente dos Everglades. Em 2000, o então Presidente Bill Clinton assinou o projeto. A conta da restauração parcial do ecossistema, para a conservação de seus serviços ecológicos, está avaliada atualmente em $10.5 bilhões de dólares.
Graças à dedicação de algumas pessoas, entidades e da opinião pública em geral, os Everglades não foram inteiramente destruídos. Mas a conta pelo descaso com o ecossistema está custando caro aos cofres públicos e ao bolso do contribuinte americano.
Conhecer casos como o do Parque Nacional de Everglades, nos permite prever o que vai acontecer em muitos lugares do Brasil, em quanto vai ficar a conta e quem irá pagá-la. Uma situação que ocorreu há mais de 100 anos lá, ainda se reproduz hoje em dia no Brasil. Continuamos a desvalorizar nossas áreas naturais, suas funções ecológicas e serviços ambientais, mas temos a oportunidade de ver o futuro através dos erros cometidos em outros lugares. Diferente do caso americano, o Brasil, internamente, vem mostrando que ainda tem pouca massa crítica e força política para resistir com a “mesma intensidade, em sentido contrário” ao crescimento desenfreado e irresponsável.
Mas mesmo aqui existem casos onde a sociedade civil vem demonstrando que tem poder frente a grandes corporações, como mineradoras. Um dos casos interessantes nesse sentido é a luta pela criação do Parque Nacional da Gandarela.
Visitação como instrumento de formação da opinião pública
A visitação no Parque Nacional de Everglades foi uma ação que se mostrou eficiente para a formação da opinião pública e o convencimento do governo para com a conservação. Em 1930, a Associação do Parque Nacional Tropical de Everglades trouxe a primeira delegação de políticos para a região. Até a regularização fundiária e liberação da área em 1947, divulgações, movimentações públicas e excursões continuaram acontecendo.
A visitação começou a ser monitorada em 1948, quando o parque recebeu em torno de 7 mil visitantes. Dois anos depois esse número já chegava a mais de 100 mil. Em 10 anos, Everglades recebeu perto de 450 mil visitantes. Com 18 anos, em 1966, a unidade de conservação chegou a marca de 1 milhão de visitantes. Desde então, o número oscila dentro dessa grandeza. Em 2012, por exemplo, a visitação chegou a mais de 1 milhão e 100 mil visitantes. Toda essa visitação é um ponto determinante na pressão pública para a conservação.
Áreas de Uso Público
A administração do parque aproveita três áreas distintas para o uso público. A entrada principal oferece um passeio de carro de 120 km (ida e volta) por dentro do parque. Na entrada, um bem estruturado centro de visitantes orienta quanto às regras de segurança e às paradas ao longo do caminho, para conhecer diferentes formações vegetais. Durante o passeio, o visitante de qualquer idade e condição física pode vivenciar a exuberância da área. No final da estrada existe outro centro de visitantes e uma marina onde se pode realizar passeios de barco e caiaque. Lugares para acampamentos também são oferecidos. Essa é uma estrada que é usada exclusivamente para a visitação e pesquisa, pois leva a lugar nenhum. Bem diferente da Estrada do Colono, que recorrentemente tentam reabrir dentro Parque Nacional de Iguaçu.
Nos EUA as leis são respeitadas, como o limite de velocidade, e praticamente não existe ameaça de caça, coleta ou contrabando, bem diferente da Estrada do Colono que é uma verdadeira ameaça à conservação. No Everglades, a estrada oferece um passeio interessante a ser feito pelo público em geral, que mora ou visita Miami. A facilidade de acesso tem despertado o interesse e proporcionado a visita de mais de um milhão de pessoas por ano, que de outra forma iriam procurar ainda mais atrações artificiais, como parques temáticos.
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A segunda opção de visitação se encontra ao norte do parque, na área conhecida como Vale do Tubarão. A área oferece uma trilha circular pavimentada de 24km (ida e volta) até uma torre de observação de 13 metros. O percurso pode ser feito a pé, de bicicleta ou em um pequeno ônibus-trem aberto. Uma concessão de pequeno porte oferece o passeio motorizado ou o aluguel de bicicletas. O ônibus-trem favorece a visita para pessoas na terceira idade ou com dificuldade de locomoção, famílias com crianças pequenas ou turistas que não querem suar. Dentro, um guia vai interpretando o ambiente. As opções a pé e de bicicleta oferecem um passeio mais saudável e com mais contato com o ambiente ao redor. Opção ideal para famílias com filhos maiores, casais, grupos e indivíduos com mais disponibilidade de tempo. Algumas pequenas trilhas no caminho oferecem acesso a diferentes formações vegetais.
No passeio, independentemente do transporte, é possível encontrar grande variedade de animais, principalmente aves aquáticas e migratórias, assim como o jacaré americano (Alligator mississippiensis) (ilustre personagem nos desenhos do Pica-Pau). Num simples passeio, encontrei mais de 30 espécimes tomando banho de sol no meio da trilha. Apesar dos alertas de perigo, diversos turistas se arriscavam para tirar fotos o mais perto possível dos animais. Um risco considerável, já que, mesmo parecendo letárgicos, num bote eles podem chegar a 18 km por hora.
A terceira área de uso público, voltada para o Golfo do México, visa à visitação na água. Lá se pode alugar barcos ou caiaque e fazer diversos passeios de um dia ou mais pelas rasas águas que circundam a parte terrestre do parque. Essa área é conhecida como Dez Mil Ilhas, pelo volume de pequenas ilhotas que formam o seu ecossistema. Caiaque é uma atividade muito popular nos Estados Unidos. A Flórida leva muito a sério essa atividade, tendo mais de 4.300 km de trilhas aquáticas entre rios e a costa marítima. Em Dez Mil Ilhas existem trilhas de até cinco dias. No caminho se pode acampar nas praias ou em pequenas palafitas conhecidas como Chickees. Os Chickees são telhados e oferecem água potável e energia solar para o pernoite.
Democratização da Visitação
Passeios de carro ou trilhas pavimentadas, como algumas opções em Everglades, não são a melhor opção para um ecoturista mais exigente. Por outro lado, democratizam a unidade de conservação, ampliando o acesso a um público maior, que de outra forma não visitaria o local. Áreas voltadas ao uso intensivo devem proporcionar acesso e facilidades, para que um leque maior de diferentes públicos possam realmente visitar a unidade. Locais de uso intensivo, bem planejados, concentram boa parte da visitação, favorecendo um crescimento do número de visitantes, sem o mesmo crescimento nos impactos causados. Por via de regra, tanto no Brasil como nos EUA, as zonas de uso intensivo dos planos de manejo representam menos de 5% da unidade, muitas vezes até menos de 1%. Ampliar o acesso e número de opções mais “urbanas” de uso, além de aumentar a visitação de diferentes públicos, favorece a formação de opinião pública. Como diz o mantra “quem não conhece, não dá valor”. E o brasileiro não conhece seus parques. O orçamento para a área ambiental está ai para comprovar.
Outro público importante, muitas vezes demonizado nas unidades de conservação, é o esportista. Atividades esportivas como o passeio de bicicleta e caiaque podem ser implementadas em diversas unidades do Brasil e não significam, por si só, aumento no impacto da visitação. Se bem manejadas, elas podem oferecer boas opções e também aumentar os públicos interessados em utilizar a área.
Além dos diferentes perfis de visitantes descritos acima, o tradicional ecoturista também possui uma liberdade maior dentro dos parques americanos. Áreas intangíveis em planos de manejos americanos, apesar de existirem sim, são bem mais raras que no Brasil e realmente usadas para casos de extrema e comprovada fragilidade. Na maioria das unidades, as zonas mais restritas são as áreas “wilderness” (selvagens), equivalentes às zonas primitivas das nossas unidades de conservação. Nos EUA elas existem para preservar, mas, por Lei, também são destinadas ao uso dos ecoturistas natos. A Lei que cria o Sistema de Áreas Selvagens americano de 1964 diz na sessão 2.c: “área que tem excelentes oportunidades para a solidão ou um tipo primitivo e não confinado de recreação.” Décadas de pesquisas vêm monitorando processos ecológicos, comportamentos de fauna e comprovando que esse tipo de visitação de baixa intensidade, quando bem manejada, produz impactos mínimos. O ICMBio já possui um Roteiro Metodológico para Monitoramento de Impactos da Visitação, que tem condição de orientar o manejo da atividade.
Nos EUA, o princípio da precaução não é aplicado indiscriminadamente a toda atividade de visitação. As atividades são monitoradas, os impactos avaliados e as ações corretivas tomadas. Dessa forma, o “bom” visitante, dentro das regras de mínimo impacto, tem liberdade para percorrer, se apaixonar e até se arriscar, se assim desejar.
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Mobilização social e abertura das unidades à visitação são ações importantes para aumentar e fortalecer a opinião pública em favor da conservação de nossas áreas protegidas. O Serviço de Parques Americano, que cuida dos parques entre outras categorias, recebeu mais de 280 milhões de visitantes em 2012. O Serviço Florestal, que cuida das florestas nacionais, mais 200 milhões. Nesse mesmo ano, as unidades de conservação federais do Brasil receberam por volta de 6 milhões. No Brasil, ano a ano tem havido um crescimento na visitação, mas o número ainda é muito pequeno para o tamanho do país e pelo potencial que temos. O ICMBio vem promovendo avanços nesse sentido, capacitando seus servidores e organizando a atividade. Alguns estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, vem promovendo grandes avanços. Aos poucos, os resultados têm aparecido. Cabe aos órgãos gestores o dever de continuar a organizar o setor. Cabe aos órgãos de imprensa continuarem vigilantes, denunciando as ameaças e divulgando bons resultados e exemplos. Cabe ao cidadão, ao visitante, demandar mais acesso e bons serviços, para que possamos, todos juntos, continuar a caminhar em direção a um futuro de unidades conservadas, com amplo acesso a todos. Nesse sentido, conhecer as experiências de outros países, como os Estados Unidos, que já contabilizavam 6 milhões de visitantes em 1934, pode nos poupar de uma série de erros e, de forma planejada, nos auxiliar a acelerar o processo.
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