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A morte não é banal

Um atropelamento pelas costas com fuga tirou a vida do biólogo Eduardo Veado e de sua mulher Simone. Morte violenta acontece todo dia no Brasil, não é normal, nem aceitável.

13 de outubro de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Encontrei Eduardo Veado na sede da Estação Biológica de Caratinga, porta de entrada de uma das mais importantes reservas de Mata Atlântica dedicadas à pesquisa científica, hoje RPPN Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, na fronteira com o município de Ipanema, em Minas Gerais. Era o começo de O Eco e estávamos fazendo uma visita para preparar uma matéria sobre a reserva, que só seria feita muito tempo depois, por Aline Ribeiro. A visita nos ajudaria, também, na organização de uma entrevista com Karen Strier, antropóloga da universidade de Wisconsin, responsável por um importante projeto de pesquisa sobre primatas, com base nos muriquis do Brasil, e de quem Eduardo foi o primeiro assistente. A entrevista, prevista para alguns meses depois, só foi feita anos depois, por mim e por Míriam Leitão, quando Eduardo já havia deixado a Estação Ecológica de Caratinga para outros projetos.

Combinei tudo com ele por telefone, ainda era o chefe da Estação Biológica, que foi nos encontrar quando chegamos. Mas não nos acompanhou na visita à reserva. Tinha tarefa mais importante: receber um ônibus cheio de estudantes, conversar com eles sobre os muriquis, o maior primata das Américas, sobre a importância da Mata Atlântica, sem a qual os muriquis não vivem, pois têm hábitos alimentares muito especializados. Eduardo tinha absoluta noção do que era importante e um compromisso de vida inteira com os muriquis e seu habitat, a Mata Atlântica.

Usei o verbo ter no passado, porque Eduardo não está mais entre nós. Morreu de morte violenta, numa estrada de Ipanema, no interior de Minas Gerais, aos 41 anos de idade. Ele e sua mulher, Simone, que não conheci, da mesma idade, foram atropelados pelas costas, por uma picape branca, que saiu de uma curva em alta velocidade, pela contramão, atingiu os dois e fugiu. Acabo de escrever essa frase e penso o seguinte: para o leitor que não está inteiramente envolvido com a questão ambiental, é mais uma morte lamentável. Basta pensar na chacina de Vigário Geral, que tirou, com violência, a vida de 21 pessoas. Depois dessas, tantas outras mortes aconteceram. A morte se tornou banal para os brasileiros de qualquer cidade grande ou das áreas conflagradas, do Norte, onde se grila e se mata, do cerrado, onde se queima para fazer carvão ilegal e se mata. No Brasil, morrem de morte violenta, homicídio ou acidente de trânsito, 71 pessoas por 100 mil habitantes. No Rio de Janeiro, são 99:100 mil. Entre os homens, a média nacional bate em 122:100 mil e, no Rio de Janeiro, 173. Homens, jovens e negros vão a 194 na média nacional e no Rio chegam à inimaginável proporção de 498:100 mil. Quem quiser conhecer melhor a face horrenda da violência brasileira, essa Nação que se julga cordial, deve visitar o excelente blog do sociólogo Gláucio Soares, Conjuntura Criminal.

Mas esses números macabros não podem significar que a morte, por violência ou acidente, se tenha tornado banal. Mortes desse tipo não são banais, nem toleráveis. Na maioria dessas chacinas só se sabe das flores da saudade e da impunidade. De algumas poucas, nascem flores de esperança, críticas da complacência e do conformismo. Foi assim com Vigário Geral. A flor que se multiplicou, transformando jovens tiranizados pela violência e discriminados pela sociedade em cidadãos orgulhosos e criativos se chama Afro Reggae.

Eduardo também era um plantador de flores do bem. Dedicou sua vida adulta à pesquisa e à conservação da natureza. Foi o mais jovem fundador da Estação Biológica de Caratinga, o principal refúgio da maior população conhecida do muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), parte de um grupo seleto de cientistas, como Célio Valle, Ney Carnevalli, da UFMG, Gustavo Fonseca, Russel Mittermeier e Anthony Rylands, da Conservação Internacional. A estação foi uma parceria bem sucedida, que parecia improvável, entre um cafeicultor pragmático meticuloso e arredio e cientistas. Por isso Eduardo se mudou para Ipanema, essa pequena cidade, onde ele e Simone foram mortos.

Karen Strier, da Universidade de Wisconsin, que dedicou mais de 20 anos de sua carreira ao estudo dos muriquis, conta o papel decisivo de Eduardo Veado para o sucesso do programa de pesquisas sobre os muriquis em seu livro Faces in the Forest: The Endangered Muriqui Monkeys of Brazil, que tem ilustrações desenhadas por Eduardo. Ficaram amigos, depois de trabalharem juntos. Eduardo trabalhava agora em um projeto que Karen considerava decisivo para a sobrevivência dos muriquis: os corredores ecológicos para ligar os fragmentos de Mata Atlântica da região. Os muriquis têm hábitos alimentares muito especializados. Se os projetos de conservação dão certo, como aconteceu em Caratinga, interrompe-se a mortalidade, a população cresce, os grupos aumentados precisam mais espaço e mais alimento. Se não houver, reverte-se a trajetória demográfica e aumenta o risco de extinção da espécie. Eduardo Veado compreendia isso e sua luta pela preservação da Mata Atlântica e pelos corredores, era, sobretudo, uma luta pela preservação dos muriquis.

Os esforços pela conservação não raro encontram resistência em interesses econômicos menores e atrasados. Tem aumentado o número de ambientalistas que são ameaçados por pessoas ou grupos que se opõem aos esforços conservacionistas. Eduardo já havia sofrido ameaças no passado que, inclusive, o levaram a se afastar por um período da região mineira onde, desde 1985, havia se instalado para estudar os muriquis e seu habitat e para trabalhar por sua conservação. É preciso que se dissipem todas as dúvidas sobre a violência que matou Eduardo e Simone. Um atropelamento com fuga é um ato criminoso, que mostra falta de solidariedade e desprezo pela vida humana. Um homicídio por razão torpe, como reação a um trabalho de conservação, a favor do meio ambiente e da ciência, é um crime horrendo. Nesse caso, todas as hipóteses são de atitude criminosa. Apenas o grau de gravidade do crime é que está em tela de juízo.

O delegado de Ipanema se apressa em dizer que foi um caso de atropelamento com fuga. A forma pela qual ele trata esse tipo de comportamento de motoristas que fogem dos acidentes que provocam é típico da banalização inadmissível de comportamentos desviantes. Se tiver sido atropelamento e fuga, hit and run, como é conhecido esse crime no EUA, ainda assim é intolerável e deve ser punido com exemplaridade.

Mas a morte do jovem casal se deu em contexto de tensão, há uma história de ameaças, porque Eduardo defendia os fragmentos remanescentes de Mata Atlântica. Independentemente das circunstâncias efetivas em que se tenha dado a morte de Eduardo e Simone, é preciso que essa névoa espessa de suspeitas seja inteiramente dissipada. Não se trata de uma questão apenas do ambientalismo. Atinge também o coração da ciência brasileira. Mas não é um caso apenas, restrito à ecologia e da ciência. É, também, sintoma da violência que se generaliza no Brasil, ceifando vidas, em ações criminosas, em confrontos entre facções do banditismo impune de Norte a Sul do país, no trânsito desgovernado, enquanto os governantes se perdem em discussões irresponsáveis sobre quem tem responsabilidade.

Todos têm, todos temos. O governador Aécio Neves tem a obrigação política e moral de garantir que as autoridades policiais do Estado de Minas Gerais ajam com isenção, competência e rapidez, na identificação dos autores desse crime e sua punição exemplar. O Governo Federal tem a obrigação política e moral de assegurar condições para que a Polícia Federal intensifique a repressão ao crime organizado que devasta as matas brasileiras, que espalha drogas pelo país inteiro, que arma os bandos com armas a que frequentemente nem a polícia, nem as Forças Armadas têm acesso tão irrestrito.

Nós brasileiros temos a obrigação moral e política de parar de tolerar o intolerável, aceitar como normal e banal essa onda inadmissível de violência, ilegalidade e corrupção que tem marcado a vida nacional. Quando eu soube da morte de Eduardo, ouvia o espoco metódico de armas automáticas em mais um tiroteio na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Eu não podia estar ouvindo tiroteio, ainda mais recorrente, em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro ou, de resto, em qualquer outro bairro de qualquer cidade do país. Eduardo e Simone não podiam ter morrido naquela estrada de Ipanema, da forma como morreram. Isso não é normal, não é aceitável e não pode continuar acontecendo.

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