Reportagens

A saga da ararinha-azul para voar novamente em liberdade

Como andam as ações para a reintrodução da Cyanopsitta spixii na Caatinga de Curaçá, Bahia, e o que ainda precisa ser feito para concretizar sua volta à natureza

Carolina Lisboa ·
29 de abril de 2018 · 7 anos atrás
Ararinha-azul-de-Spix mantidas na Fazenda Cachoeira, um dos três criadores da ararinha-azul que existem no mundo. Foto: Marcus Romero.

Quem já se emocionou com o documentário O Sobrevivente Solitário (1999), do jornalista Francisco Pontual, ou já vibrou com as aventuras de Blu, protagonista da animação Rio (2011), sob direção de Carlos Saldanha, conhece um pouco do drama da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), possivelmente extinta na natureza desde o ano 2000. Graças aos esforços para sua conservação em cativeiro (ex situ), a espécie não foi extinta. Hoje, há uma esperança de que a ararinha volte a habitar a Caatinga de Curaçá, na Bahia, por meio do Projeto Ararinha na Natureza, que trabalha na implementação das ações do Plano de Ação Nacional para a Conservação da espécie.

A ararinha-azul, única espécie do gênero Cyanopsitta, foi descoberta há exatos 199 anos, em abril de 1819, em Juazeiro (BA), pelo naturalista alemão Johann Baptist Ritter von Spix (1781-1826), durante suas expedições pelo Brasil. A ave foi descrita somente em 1832 pelo seu assistente, o herpetólogo alemão Johann Georg Wagler (1800-1832), que homenageou o naturalista batizando a espécie com o nome latim Cyanopsitta spixii, que significa “ararinha-azul-de-Spix”.

Cerca de cem anos antes das grandes expedições do zoólogo Spix e do botânico Carl Friedrich Philipp von Martius entre 1817 e 1820, relatadas no Reise in Brasilien (“Viagem pelo Brasil”, em português), o rio São Francisco ainda era margeado por uma densa mata de galeria com riachos arborizados que poderiam ter se estendido por até 50 km de cada lado do rio. Nessas matas haviam grandes caraibeiras (Tabebuia aurea), árvores nas quais as ararinhas faziam seus ninhos. A ave dependia completamente deste ambiente. No século 17, os primeiros colonos chegaram no vale do São Francisco e iniciaram as atividades de pecuária extensiva, queimando as florestas para formar pastagens para o gado. Com a destruição da mata ciliar do rio São Francisco ao longo de pelo menos três séculos, agravada pela construção de grandes barragens como a de Sobradinho e suas linhas de transmissão de energia, além da caça ilegal e indiscriminada da ave, as populações desta espécie foram desaparecendo antes mesmo que a ciência pudesse estudá-la.

Ilustração que acompanha A viagem pelo Brasil, de Spix e Martius.

Até 1986, mais de 150 anos depois de descrita a espécie, não se sabia sequer sua distribuição geográfica, que só foi estabelecida após a redescoberta da ararinha por Paul Roth, que encontrou as três últimas aves nos riachos Barra Grande-Melancia, em Curaçá, no nordeste da Bahia. Em 1990, uma expedição liderada por Carlos Yamashita e Tony Juniper encontrou uma única ave remanescente na natureza: um macho, que desapareceu após dez anos, em outubro de 2000, pouco depois que o documentário de Francisco Pontual descrevendo a triste situação deste sobrevivente foi ao ar pela TV Cultura. A partir de então, a espécie foi considerada extinta na natureza, se tornando uma das aves mais ameaçadas do planeta.

O suposto reaparecimento

Em junho de 2016, um vídeo de uma suposta ararinha-azul voando livre numa área próxima à fazenda Caraibeira, em Curaçá, trouxe esperança aos conservacionistas e deixou todos em polvorosa. “Ficamos sabendo desse reaparecimento por meio da SAVE, que já trabalhava no Projeto Ararinha na Natureza na área da fazenda Caraibeira. A área é cercada desde 2012 e a caprinocultura não tem acesso. O vídeo (assista abaixo) foi registrado pela proprietária do terreno, dona Lourdes, e por sua filha, Damilys, ao escutarem a suposta ararinha num final de tarde. Ao amanhecer, a seguiram até uma barragem na Serra da Borracha e fizeram o registro”, relatou Camile Lugarini, analista do ICMBio/CEMAVE e uma das coordenadoras do projeto Ararinha na Natureza. “Encaminhamos os sons do vídeo a um especialista para confirmar a identidade da espécie. Pela pouca quantidade de sons disponíveis, quando foi inserida no espectrograma (gráfico que representa o espectro de ondas sonoras) o especialista achou mais provável se tratar de um indivíduo de arara-azul-de-Lear (Anodorhynchus leari). Isso é bem provável, pois a Serra da Borracha é o único lugar da região onde há licuris (uma espécie de palmeira da qual as araras-azuis se alimentam) e é uma área de distribuição histórica da arara-azul-de-Lear. Em compensação, a silhueta da ave parece de uma ararinha-azul. Fizemos expedições à área e tínhamos vários especialistas em campo. Contudo, ninguém conseguiu localizá-la”, explicou a pesquisadora.

O mistério sobre a identidade da ave até hoje não foi resolvido. Para Camile Lugarini, há muitas dúvidas acerca da existência ou não da espécie na natureza: “Tanto para a comunidade quanto para dona Lourdes e Damilys, esse é um registro autêntico da ararinha-azul. O registro existe e os vídeos estão disponíveis na internet. Entretanto, ninguém conseguiu confirmar nem descartar a hipótese de que é realmente uma ararinha-azul. Se for mesmo uma ararinha, qual seria a origem dela? Pode ter sido uma soltura de algum cativeiro, mas também há uma pequena possibilidade de que ela venha de um local remoto e pouco estudado, pois existem áreas que desde a década de 90 não são amostradas por serem perigosas, devido à existência de tráfico de drogas ou plantações de maconha. Existem suposições de que essa ararinha também ocorra na Serra das Confusões, no Piauí, mas também sem comprovação. Por haver a possibilidade de que ainda exista uma população remanescente na natureza, a espécie é considerada Criticamente Ameaçada e possivelmente Extinta na Natureza”.

Projeto Ararinha na Natureza

O Projeto Ararinha na Natureza foi lançado em 2012 com o objetivo de implementar o Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação da Ararinha-azul, também lançado no mesmo ano. Desde sua criação o projeto atua na pesquisa de conservação da espécie e na educação ambiental dos moradores locais, além de lutar pela criação de unidades de conservação para proteger a população a ser reintroduzida. O Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (ICMBio/CEMAVE) coordena as atividades do Projeto. Os mantenedores da espécie em cativeiro também investem recurso considerável para sua manutenção e reprodução, além de recursos para a aquisição e cercamento de propriedades na área de distribuição histórica da espécie. Além das anteriormente citadas, outras importantes instituições parceiras são Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), Al Wabra, Faz. Cachoeira, Jurong Bird ParkParrots International, RainForest Trust, Funbio e Vale, além de universidades, como a UNIVASF, USP, UFPE, UFRN, UFPB, UFMG e ONGs, como a Save Brasil, Instituto Arara-azul e Instituto Espaço Silvestre.

Foto: Cristine Prates.

O objetivo do projeto é ousado: reintroduzir a ararinha-azul na sua área de ocorrência original e buscar o aumento populacional contínuo até 2022. “Para tanto foram traçados cinco objetivos específicos e 36 ações, algumas em continuidade do ciclo anterior”, explica Camile Lugarini.

A reintrodução fracassada e as expectativas futuras

A reintrodução planejada para 2022 não é a primeira a ser tentada com a ararinha-azul. Em 1995 foi realizada a soltura de uma fêmea, para que ela fizesse par com o último macho selvagem da espécie. Após dois meses da soltura da fêmea, o casal se encontrou em maio de 1995 e passaram a voar juntos até que, no mês seguinte, a fêmea desapareceu. Apesar das intensas buscas, ela nunca foi localizada. Somente em 1999 um morador local contou aos pesquisadores que ele teria encontrado, quatro anos antes, a fêmea morta sob uma linha de alta tensão. Uma equipe vasculhou o local, mas não encontrou restos da carcaça. Portanto, nada foi confirmado e a reintrodução, apesar de bem sucedida tecnicamente, não alcançou o objetivo.

Hoje, graças aos esforços para conservação da espécie em cativeiro, é possível tentar a reintrodução. Mas não sem antes garantir a proteção dos indivíduos reintroduzidos. “A população em cativeiro está estabilizando, então já é possível produzir excedentes para a reintrodução. O que precisamos é seguir os passos anteriores: a criação da Unidade de Conservação, a construção do Centro de Reprodução e Reintrodução, a capacitação de pessoas na região e programas de educação ambiental e fiscalização para melhorar a proteção da área”, explicou Camile Lugarini. “Acreditamos que, com a criação da UC, haverá melhor articulação entre as esferas de governo para promover a proteção da área e fazer com que a comunidade também seja mobilizada. Há uma estratégia de promover o turismo de base comunitária para que as pessoas vejam o ganho que podem ter com a conservação da ararinha. Em nosso diagnóstico, quando perguntávamos aos moradores locais sobre a importância de a ararinha voltar para a região, eles respondiam ‘ah, por que ela é bonita’. Então temos que mostrar que a vida deles pode melhorar a partir da ararinha, utilizando-a como fonte de recursos sustentáveis, melhorando as práticas produtivas e investindo mais em turismo de base comunitária com ênfase na observação de aves”, explicou a analista.

As maracanãs

O Projeto Ararinha na Natureza atualmente trabalha com uma espécie-modelo de ave, a maracanã-verdadeira (Primolius maracana), que possui hábitos muito parecidos com os da ararinha. “A primeira soltura será de maracanã, para testar a técnica. Depois, utilizaremos as maracanãs para formar grupos mistos com as ararinhas”, revelou Camile Lugarini.

Os psitacídeos (grupo que inclui araras, periquitos, papagaios e maracanãs) são aves sociais e podem ser monogâmicas (formam pares para toda a vida). Quando não podem fazer par ou formar grupos com a mesma espécie, podem fazê-lo com espécies parecidas, como foi o caso da última ararinha selvagem, que formou par com uma fêmea de maracanã antes de desaparecer. Contudo, o casal não gerou prole, por serem espécies distintas.

Programa de Cativeiro

Em 2017, a população cativa alcançou o número recorde de 152 indivíduos no programa. Foto: Marcus Romero.

Considerando que as populações na natureza (se existirem) são desconhecidas, o Programa de Criação e Reprodução em Cativeiro da espécie é o carro chefe do PAN Ararinha-azulHoje, há apenas dois criadouros responsáveis pela reprodução da espécie: Association for the Conservation of Threatened Species e Fazenda Cachoeira. O terceiro criadouro, Al Wabra Wildlife Preservation, no Catar, enviou recentemente seu plantel de ararinhas  para a Alemanha. Há apenas três criadouros responsáveis pela reprodução da espécie: Association for the Conservation of Threatened Species, Al Wabra Wildlife Preservation e Fazenda Cachoeira. Existe ainda um zoológico que expõe as aves com fins educacionais e captação de recurso, o Jurong Bird Park, de Cingapura. Dentre os principais desafios da reintrodução, estão: a pequena população de ararinhas em cativeiro com uma baixa variabilidade genética, alguns pares não reprodutores, baixas taxas de fertilidade, baixo desenvolvimento dos embriões, problemas de eclosão dos ovos e deformidades nos filhotes.

Em 2012, quando o PAN ararinha-azul foi publicado, haviam 73 indivíduos no programa. Em 2013, sete ovos foram fertilizados artificialmente, e dois deles desenvolveram filhotes, 26 dias depois. Em 2014, pela primeira vez, todos os três mantenedores produziram filhotes no mesmo ano e dois filhotes nasceram por incubação natural no Brasil. Em 2016, dois mantenedores externos produziram as primeiras ararinhas criadas pelos pais. Em 2017, finalmente, a população cativa começou a alcançar a estabilidade. Foram produzidos 20 filhotes em 2015, 23 em 2016 e 26 em 2017, totalizando o número recorde de 152 indivíduos em dezembro de 2017, sendo 11 no Brasil. Esses resultados mostram que as ararinhas-azuis podem ser reintroduzidas em breve. “Temos a expectativa de receber 50 reprodutores até março de 2019 para se reproduzirem na região de Curaçá. Para tanto, iremos, em conjunto com mantenedores e patrocinadores internacionais, construir o Centro de Reprodução e Reintrodução”, frisou Camile Lugarini.

Riqueza biológica

Mata de galeria em Curaçá, habitat da ararinha-azul. Foto: Cristine Prates.

A região de Curaçá é rica em espécies e, por isso, uma análise sobre os predadores está sendo desenvolvida dentro das ações do plano de Ação da Ararinha. O biólogo Paulo Henrique Marinho (UFRN) e sua equipe instalaram armadilhas fotográficas (câmera automática que dispara sozinha a partir de um estímulo de movimento e/ou calor) em 60 pontos em meio a áreas de mata ciliar, caatinga aberta e serras da região, além de conversar com os moradores locais sobre os animais residentes. “Os resultados guiarão a escolha do local para a reintrodução da ararinha-azul, considerando locais com menor probabilidade de ocorrência de predadores que podem afetar casais reprodutores e filhotes nos ninhos”, explicou o pesquisador.

Os pesquisadores encontraram 15 espécies de mamíferos e 3 de aves terrestres de médio e grande porte. Cinco destas espécies são consideradas ameaçadas de extinção, como o gato-do-mato-pintado (Leopardus tigrinus), o gato-mourisco (Puma yagouaroundi), a onça-parda (Puma concolor), o mocó (Kerodon rupestres) e a jacucaca (Penelope jacucaca), além de duas quase ameaçadas, o caititu (Pecari tajacu) e a ema (Rhea americana). Houve um único registro de gambá-de-orelhas-brancas (Didelphis albiventris), que é um possível predador de ninhos e poucos registros de tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla), um possível competidor por ocos de árvores onde as ararinhas fazem ninhos.

“Os resultados sugerem que essas espécies predadoras e competidoras não devem representar uma grande ameaça para as ararinhas. As análises mostraram que os ambientes florestais de serras e matas de galeria são o refúgio de muitas das espécies encontradas, pois fornecem melhores condições de vida e recursos como abrigo e alimento. As matas de galeria, inclusive, foram os derradeiros refúgios das últimas ararinhas-azuis que viveram na região”, explicou Paulo.

No local de provável reintrodução da ararinha há poucos predadores ou competidores. Foto: Marcus Romero.

“Esses resultados reforçam a importância da área de ocorrência histórica da ararinha-azul para a conservação da diversidade de mamíferos e aves terrestres da Caatinga. A implementação de estratégias como a criação de unidades de conservação já em curso, a recuperação de áreas degradadas e o incentivo a práticas sustentáveis de agricultura e pecuária são essenciais para a manutenção dessa biodiversidade e dos seus serviços ecológicos, como a dispersão de sementes realizada por frugívoros como jacucaca, caititu e veado-catingueiro (Mazama gouazoubira). Dessa forma, a ararinha-azul, mesmo considerada extinta na natureza, serve como ‘espécie-guarda-chuva’ para muitas outras, ou seja, os esforços para garantir seu retorno para a Caatinga acabam beneficiando a conservação de várias outras espécies que ocorrem na mesma área”, concluiu ele.

 

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  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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Comentários 1

  1. Paulo diz: