Colunas

A voz das ruas

Começa em Nairóbi nova rodada da Convenção do Clima. Pode ser uma reunião morna, sem grandes decisões. Mas ela pode marcar o início da mudança na diplomacia climática.

6 de novembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Começou em Nairóbi a COP 12/MOP 2, a 12ª Conferência das Partes signatárias da Convenção do Clima e o 2º Encontro das Partes signatárias do Protocolo de Quioto, em um clima político que dá o que pensar. Apesar dos esforços do Primeiro-Ministro Toni Blair, que conseguiu marcar a semana anterior à reunião do clima com a divulgação do Relatório Stern, no meio diplomático global a avaliação é que será um encontro morno. A julgar pela reação social, teria tudo para avançar. No mundo todo, milhares de pessoas se reuniram em praça pública para pedir a seus líderes, a suas sociedades e a suas contrapartes no resto do planeta, ação imediata e mudança de comportamento para enfrentar a ameaça de mudança climática.

Já vi, várias vezes, esse divórcio entre a sociedade e os governos. Os governos, geralmente respondendo à pressão de interesses específicos, ligados ao “realismo de mercado”, respondem com “realismo político”, adotando um curso de ação pragmático, focalizado no curto e médio prazo, diante de situações cujos sinais se tornam cada vez mais evidentes e que demandam mudanças altamente perturbadoras do status quo. As sociedades, respondendo de forma mais ativa a esses sinais e, sobretudo, dando ouvidos a vozes – científicas, artísticas, jornalísticas – que têm mais credibilidade que os políticos e empresários e são por eles definidas como “idealistas”, “irrealistas”, quando não “terroristas” ou “anárquicas”. Quando o assunto é sério e durável, a ciência política já registrou numerosos casos: os governos, no médio e longo prazo, acabam cedendo à pressão social.

Em Londres, 25 mil pessoas se reuniram em frente da Embaixada dos Estados Unidos, para pedir mudança de atitude a Bush. Blair já mudou. Nas entrevistas à imprensa, as celebridades presentes falavam também da necessidade de mudança de comportamento de todos. A frase mais ouvida era “we screw up”. Na Austrália, 30 mil pessoas saíram às ruas, em Melbourne, e outras 12 mil, em Sidnei, contra as posições do Primeiro-Ministro, John Howard, sobre o clima. Ele divide com Bush a honraria duvidosa de liderar politicamente a minoria dos “contra”, que um dia chegaram a ser chamados “céticos”, mas com o consenso científico sobre a mudança climática ficou claro que são mesmo é do contra. Houve manifestações em outras 20 cidades australianas e em 48 países do mundo. São militantes e pessoas informadas que temem as conseqüências da mudança climática. A diferença é que, no passado, essas manifestações às vezes eram registradas pela imprensa em poucas linhas, como curiosidade. Hoje, elas dão primeira página. Significa que tem muito mais gente interessada, que lê jornal, ouve rádio e vê televisão, mas não tem as aptidões da minoria ativa, para sair para a rua. É sempre assim: o mundo se divide entre uma minoria ativa e uma maioria passiva, ou silenciosa. Mas essa maioria ouve a minoria ativa e, quando o faz, geralmente vota pensando naquilo que ouviu.

Bush isolado

É contra isso que Bush está lutando ferozmente nas últimas duas semanas. Seus pesquisadores lhe disseram que o voto virá contra, por causa de suas atitudes no Iraque e em relação à mudança climática. Ele vem dando uma de Lula em campanha, dizendo que o EUA tem feito mais avanço no controle das emissões de carbono, que qualquer outro país do mundo. Balela. Tudo indica, porém que não está convencendo e perderá o controle do legislativo, por causa da voz discordante das ruas. Com a perda de controle do Congresso, se também perder no Senado, mais difícil mas não improvável, perderia o comando da diplomacia do clima. Provavelmente seria forçado a aceitar uma nova legislação sobre emissões de carbono e, a partir daí, desapareceriam as razões para o EUA ficar fora do Protocolo de Quioto. O representante de Bush numa coletiva de imprensa, em Nairóbi, ao ser perguntado se a pressão do primeiro-ministro Blair levaria a uma mudança na atitude de seu governo, respondeu que “eu certamente não recebi nenhuma indicação de que haja qualquer mudança em nossa posição ou que venha a haver durante essa presidência”. Eles são teimosos assim mesmo.

Primeiro-ministro ameaçado

Na Austrália, a questão é diferente. Primeiro-ministro não tem as prerrogativas imperiais da presidência. No parlamentarismo, primeiro-ministro isolado do povo, geralmente tem como destino a porta da rua. Perde a confiança da maioria parlamentar, o gabinete cai, ele é substituído ou se convocam novas eleições. Por isso John Howard começa a dar sinais de que anda ouvindo, pelo menos um pouco, a voz das ruas.

Pesquisa da AC-Nielsen mostra que mais de 6 em cada 10 eleitores estão insatisfeitos com a postura do governo em relação ao clima e dispostos a pagar custo extra para cortar as emissões de carbono. Entre os eleitores dos partidos da coalizão de Howard, 45% estão insatisfeitos. A quase unanimidade, 91%, acha que o aquecimento global é coisa séria, ao contrário do primeiro-ministro que, no dia da divulgação do Relatório Stern, emitiu um memorando a seus ministros, dizendo que não o levassem a sério. A grande maioria, 63%, pagaria mais imposto, para que houvesse ação efetiva contra a mudança climática. Numa reunião de crise do gabinete, Howard começou a mostrar preocupação com esse estranhamento entre seu governo e o povo, sinal de alerta, frequentemente acompanhado de derrota eleitoral ou parlamentar, ou ambas. Howard pode perder o sexto mandato – parlamentarismo tem disso, enquanto estiver agradando, o governante vai ficando – por causa desse descontentamento, associado a divisões internas em sua coalizão e a um quadro trágico de seca e perdas econômicas, que assola o país.

Seca anômala

O jornalista Michael Perry, da agência Reuters, conta que são cinco anos de seca, afetando a vida rural do país, queimadas sérias começando sempre mais cedo, e temperaturas anomalamente altas. Segundo ele, um sitiante comete suicídio a cada quatro dias, por causa das dívidas e das perdas de gado e plantações. Seria a pior seca dos últimos 100 anos. O próprio serviço de previsão do tempo do governo australiano reconhece que o país não pode mais desconsiderar o desafio da mudança climática. Geoff Love, diretor do Bureau Meteorológico australiano, disse a Perry que “a Austrália e o globo estão passando por rápida mudança de clima” e que sua expectativa é que “a mudança climática afetará a todos os australianos”. Os cientistas da CSIRO (Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation), apresentaram à imprensa esta semana o resultado do trabalho de sua divisão de previsão climática. Segundo eles, o clima da Austrália já está, hoje, “permanentemente mais quente e mais seco” e esse quadro vai piorar até 2070. A organização, que é governamental, disse que as perspectivas “são assustadoras”.

O primeiro-ministro, pelo menos não censura os cientistas do governo, como Bush faz no EUA. Mas, também não os ouve. Com tanta evidência e, principalmente, com os clamores da rua, Howard, parou de negar que exista mudança climática. Esta semana, mudou de tom e disse que “nós todos somos afetados pelo clima, de algum modo. Precisamos dar uma resposta em múltiplas frentes. Não há uma solução só”.

O ponto fraco

Os movimentos de opinião, os novos dados sobre mudança climática, desde a COP 11 , em Montreal, no ano passado, criam um clima diferente para a reunião de Nairóbi. O centro da agenda será ocupado pelo tema da “adaptação”. É o que diz respeito mais diretamente à África. Tem a ver com os investimentos necessários para enfrentar os efeitos inevitáveis, já e no futuro, da mudança climática. O Relatório Stern insiste no ponto de que, em cada parte do planeta, as áreas mais vulneráveis são as mais pobres. Do ponto de vista global, a região mais vulnerável é a África. Provavelmente, a decisão mais importante dessa rodada será o compromisso com um fundo de auxílio aos países pobres, para que possam se adaptar à mudança climática e, também, para financiar os esforços locais de conservação de áreas florestais e redução de emissões.

Nada a ver com o fundo proposto pelo governo brasileiro, tipo “me dá um dinheiro aí, sem fazer perguntas ou impor condições, para eu cuidar da Amazônia”. No futuro, provavelmente, se aprovará um mecanismo para remunerar a manutenção da floresta em pé, mas jamais sem condicionalidades e sem que os países se comprometam com quotas de emissões e meta-zero de desmatamento.

Há uma chance de que Nairóbi, embora seja uma conferência morna, marque o início de uma rápida virada no clima da diplomacia climática. Bush sairá fraco das eleições dessa semana. Howard pode perder o mandato, se não mudar de atitude em relação ao clima. Angela Merkl, que em janeiro assume a presidência da União Européia e do G-8, disse que reporá a mudança climática no topo da agenda de ambas as instituições. Talvez comecem a soprar, ainda fraquinhos, bons ventos de mudança.

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.