Os seres humanos já se destacaram por muitos de seus feitos, dentre os quais a incrível habilidade em se dispersar pelo planeta. Apesar de sermos macacos deficientes em pelos e com uma tendência peculiar a problemas de coluna, raramente medimos esforços para atravessar oceanos e chegar a lugares novos. Após nosso surgimento na África, viajamos pelas terras e pelos mares, desbravadores do desconhecido, eventualmente e por meios diversos levando à extinção uma espécie ou outra – coisa corriqueira.
Uma das histórias mais contadas sobre extinções modernas é a da cotovia-da-ilha-Stephen, cujo fim foi injustamente atribuído a um gato. Resumidamente, a história é a seguinte: um faroleiro se mudou para uma ilha e levou seu gato, Tibbles. O felino perambulava solitário pelos arredores do farol e ocasionalmente trazia pássaros mortos como presentes para seu dono. Um dos cadáveres trazidos por Tibbles foi identificado como uma espécie nova, mas, quando pesquisadores foram procurar mais indivíduos, não encontraram nenhum. Mais resumidamente ainda: é a história de um gato que foi ao mesmo tempo descobridor e causador da extinção de uma espécie. Tibbles era a estrela principal e o exemplo definitivo dos perigos que podem ser causados por espécies trazidas pelos humanos para ambientes novos.
Porém, nem a ciência nem a história se contentam com exemplos definitivos: a extinção não aconteceu de uma hora para a outra, o gato que descobriu a espécie provavelmente não se chamava Tibbles e ele não estava sozinho. Pesquisando um pouco além, o gradual desmatamento da ilha, o interesse pela coleta de animais e o crescimento populacional dos gatos ajudam a ilustrar melhor a história da extinção do último passarinho não voador do planeta.
Ilha Stephen e a maldição do progresso
A ilha Stephen tem aproximadamente 150 hectares e está localizada entre as duas maiores ilhas do território neozelandês. Apesar de ter recebido dos Māori o nome Takapourewa, ela nunca foi permanentemente ocupada por esse povo, que colonizou grande parte da Nova Zelândia. Por isso, até o final do século XIX, a ilha ainda abrigava uma fauna preservada, incluindo alguns animais raros. Seria o lugar perfeito para uma reserva natural, mas aparentemente também era o lugar indicado para se colocar um farol. E esse se tornou o plano.
Em fevereiro de 1881 ficou decidido onde o farol seria construído e alguns arbustos foram derrubados. Isso rendeu à ilha uma clareira e uma trilha ligando-a até a praia. Dez anos depois, a ilha recebeu novas instalações: um ancoradouro e uma linha de trem, que substituíram mais um pouco da cobertura florestal na paisagem insular. Agora, o pequeno território estava preparado para dar as boas-vindas aos trabalhadores que construiriam o esperado farol e as moradias dos faroleiros.
Em abril de 1892, o navio Hinemoa atracou na praia e a equipe de 10 membros finalmente pôs os pés em terra firme. Durante a época da construção do farol, os trabalhadores se depararam com muitas aves diferentes; entre elas estavam o tieke, um corvo e sabiás nativos, além de duas espécies de cotovia*.
Em janeiro de 1894, o farol começou a funcionar. Os três faroleiros e suas famílias totalizavam 17 pessoas que chegavam à ilha, derrubando mais vegetação e trazendo gado para pastar no gramado de suas recém-construídas casas. Antes disso, não havia gatos. Pessoas diferentes contam histórias diferentes sobre como eles chegaram à ilha, mas o que elas têm em comum é que uma gata foi levada para Stephen, possivelmente grávida. Não se sabe se mais de um gato chegou lá em momentos distintos ou se a mãe e seus filhotes foram suficientes para começar uma população. O que importa é que em algum momento do ano, um gato começou a trazer pássaros mortos para os moradores humanos.
Um dos faroleiros, David Lyall, era interessado em história natural e, aproveitando a oportunidade, guardava e preservava as peles das aves. Quando o navio Hinemoa atracou mais uma vez na praia, Lyall enviou para um conhecido ornitólogo algumas peles desses animais. Em julho do mesmo ano, elas chegaram a Walter Buller, que percebeu satisfeito que uma em particular pertencia a uma espécie nova.
Certamente, algo que faz o coração de um naturalista se encher de felicidade é saber que descobriu uma espécie. Mais do que isso, a possibilidade de nomeá-la é capaz de lhe proporcionar um reconhecimento inimaginável diante da comunidade científica. Buller se preparou para descrever a espécie da melhor forma, enviando a pele a um ilustrador para que o futuro artigo fosse completo em sua publicação.
Mas a informação sobre a avifauna de Stephen também chegou aos ouvidos de um homem autoapelidado de “O Colecionador”. Seu nome era Henry Travers e ele vendia peles de aves para outros colecionadores e cientistas. Ao visitar a ilha, ele convenceu David Lyall a entregar-lhe não uma, não duas, mas nove peles da cotovia. Travers logo vendeu sua pequena coleção a um zoólogo mais rico que Walter Buller, o barão Walter Rothschild, que compartilhava com Buller, além do nome, um objetivo que somente um deles poderia alcançar.
Enquanto Buller esperava chegar de Londres a ilustração do animal que chamaria de Xenicus insularis, Rothschild descreveu a espécie, batizando-a de Traversia lyalli. Travers foi quem sugeriu que o nome científico homenageasse a ele mesmo e a David Lyall. Na mesma carta a Rothschild em que fazia essa sugestão, O Colecionador citou as palavras de Lyall: “as cotovias das pedras são muito difíceis de se obter, e em pouco tempo não sobrará nenhuma”.
O faroleiro chamava o pequeno passeriforme de cotovia das pedras, porque já o avistara duas vezes correndo pelas rochas, como um rato – e avisou a Travers que o bicho era tão ágil em seus movimentos que era impossível aproximar-se para atingi-lo com uma pedra ou galho. Naquela época, o interesse principal dos naturalistas em questão era voltado para coleções e descrições morfológicas. Lyall era um grande admirador da natureza, nos moldes de seu tempo, e teve a chance de observar de perto a cotovia-da-ilha-Stephen. A admiração pode conceder às pessoas certa sabedoria, e a previsão dele sobre a extinção da nova espécie foi bastante precisa, afinal: David Lyall foi uma das últimas pessoas, senão a última, a ver sua pequena cotovia não voadora com vida.
Por algum tempo acreditou-se que esse passarinho fosse endêmico da ilha Stephen. A história que os fósseis contam é diferente: a espécie antes se distribuía também pela ilha Sul, a maior do território neozelandês, mas à época da construção do farol, a pequena ilha Stephen era seu último refúgio. Fenômenos como esse são comuns. Ilhas são unidades consideravelmente isoladas do continente (e de outras ilhas); por isso, quando uma espécie se extingue em um território grande, ela pode se salvar em alguma ilha que esteja livre das causas de sua extinção. E foi isso que aconteceu com a cotovia.
Entretanto, por volta de março de 1895, Travers voltou à ilha para coletar novos espécimes, e relatou em uma carta para Rothschild que, mesmo com a ajuda de três membros de sua equipe e mais alguns residentes da ilha, a busca não foi bem-sucedida. Em novembro do mesmo ano, Lyall já não avistava mais nenhuma cotovia. Algumas peles continuaram sendo comercializadas poucos anos depois disso, mas a espécie parecia estar extinta em 1896.
Em julho de 1897, o faroleiro principal Robert Cathcart (que curiosamente tinha a palavra cat no nome) comunicou ao Departamento Marinho que havia um grande número de gatos ferais circulando pela ilha. Cathcart sugeriu que se tomasse alguma medida para acabar com eles e que os faroleiros fossem equipados com armas de fogo e munição. Nessa época começava a se expressar preocupação pelo estado de conservação da tuatara, e seu pedido foi atendido. A tuatara é um réptil de dorso espinhoso, único gênero representante da ordem Sphenodontida, e ocorre na ilha Stephen. Por isso, foi oferecido um incentivo financeiro pela morte de cada gato. Em 1912, a contagem de gatos exterminados era de 700 indivíduos e em 1925 já não havia mais nenhum.
Os dados históricos e as evidências existentes podem não solucionar como os gatos chegaram à ilha, mas são claros em mostrar que a população que se estabeleceu era grande. O recém-descoberto passarinho não foi extinto por um único gato, o que seria de fato uma história muito impactante; mas a história real é, ainda, absolutamente trágica e perturbadora. Os gatos chegaram à ilha como consequência da chegada das pessoas. Os gatos cresceram e se reproduziram sem despertar a atenção de ninguém. Os gatos, no plural, causaram a destruição dos pássaros locais, da qual a cotovia não escapou. Enquanto isso, as pessoas estavam ocupadas com suas rotinas.
Muitas descobertas poderiam ter sido feitas se os holofotes tivessem se voltado por um momento para a conservação dessa espécie. Muitas pessoas poderiam ter se interessado por ela e aprendido mais sobre seus hábitos do que o que sabemos hoje. Era um pássaro noturno, não voava e foi extinto – isso é grande parte do que conhecemos. O último passarinho não voador da Terra deixou de existir para sempre, diante dos nossos olhos humanos. E nós, como espécie moral, falhamos em preservá-lo vivo.
De 1994 até os dias atuais, a ilha Stephen é um santuário da vida selvagem. É um lugar de interesse internacional para a conservação da biodiversidade, por ainda abrigar espécies raras e endêmicas da Nova Zelândia, além de ser um refúgio para aves marinhas em época de nidificação. Os esforços de conservação finalmente alcançaram o que foi um dia o último lar da cotovia e, agora, outras espécies estão sendo protegidas do mesmo final trágico.
Da cotovia-da-ilha-Stephen restam apenas algumas peles em museus, uma porção de histórias, e as ilustrações de John Keulemans, que enfim chegaram de Londres.
*Os animais a que me refiro nesse texto como cotovias são chamados de wren em inglês. Wren em geral se refere aos passeriformes da família Troglodytidae, que não recebeu um nome popular em português, mas tem como representante a cambaxirra. O nome cotovia, por sua vez, se refere a pássaros da família Alaudidae. Teoricamente, essa não deveria ser a tradução para wren. Entretanto, o Lyall’s wren não faz parte de nenhuma das duas famílias mencionadas, mas sim da família Acanthisittidae, que inclui wrens especificamente da Nova Zelândia. Então, decidi usar o nome cotovia no lugar de wren, porque “cotovia-da-ilha-Stephen” foi a tradução que encontrei na maioria dos textos que li sobre isso em português. Mas deve ficar claro que esse nome não é um nome popular, já que não temos esse animal em países de língua portuguesa.
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O MMA tem que enfrentar estes problemas com vontade.
Enquanto isso, em Fernando de Noronha, os gatos ferais seguem barbarizando a fauna dentro do Parque Nacional, e ao menos até recentemente alimentados por estagiárias riponguinhas animalescas ali no entorno… provando que aqui em Banânia nunca se aprende nada sobre gestão séria de áreas naturais protegidas.
Poderiam convocar as estagiárias ripongas a colocar iscas com brodifacum embaixo das passarelas e nos ninhais da ilha principal. Seria um avanço
Excelente e interessante matéria.
muito bom
Ótimo artigo. Gatos e ratos estão entre os grandes responsáveis pela extinção de aves insulares e destruição de colônias de aves marinhas. Por isso há tantos projetos de erradicação dessas pragas em tantas ilhas do mundo, como o que permitiu a recente translocação da Cotovia-de-Raso, que antes existia em uma ilhota de meros 700 ha em Cabo Verde, para um novo lar.
Quem sabe algum dia veremos o mesmo em Fernando de Noronha.
Muito bom! Parabéns à colunista.