Análises

Lembranças de uma onça caçada cruelmente

Começou a escurecer e a esfriar, sons difusos entravam por seus ouvidos, reflexo da intensa dor. Este seria um dia como nenhum outro.

Franco L. Souza ·
20 de maio de 2011 · 14 anos atrás

Começou a escurecer e a esfriar, rápido demais, cedo demais, embora logo ali, fora daquela pequena ilha de mata seca cercada por pastagens e campos, algo comum nessa região, ainda houvesse sol e estivesse quente como era de se esperar. Entravam também sons difusos por seus ouvidos, reflexo da intensa dor. Esse seria um dia estranho para ela.

De fato, os últimos dias haviam sido diferentes. Aqueles seres que ela havia aprendido a evitar estavam muito agitados, assim como os seus acompanhantes caninos. Não entendia essa associação. Mas por experiência de quem já vira e sentira algo muito assustador acontecer quando aqueles animais se reuniam, melhor permanecer furtiva.

Andara bastante, como é do seu feitio. Quilômetros e quilômetros, passando por florestas, campos e fazendas, mas, nessas últimas áreas, sempre com cuidado. Bebeu água de riachos e lagoas, banhou-se nos rios. De noite, envolveu-se em caçadas que normalmente resultavam em uma refeição à base de porcos, capivaras, veados e tatus. Lembrou-se de uma presa particularmente interessante, relativamente grande, branca, carne macia que, vivendo em manada, normalmente invadia seu território. Impossível desprezar. De dia descansava no interior das matas, às vezes em cima de uma árvore. Preguiçosa, esbelta, linda.

Mas não nesse dia. A árvore não estava servindo como ponto de repouso mas sim de refúgio. Estava cansada porque, nesse caso, a caminhada era de fuga. Fuga daqueles seres com seus acompanhantes. Aqueles latidos que ouvia ao longe desde que nascera e que lhe traziam sensação de agonia agora estavam perigosamente pertos. Refugiou-se naquele pedaço de mata seca em que tanto descansara após suas atividades noturnas. Subiu na árvore que outrora foi sua plataforma de repouso. A preguiça transformou-se em estado de alerta máximo. Continuava, porém, esbelta e linda.

Era dia ainda, o sol estava forte. Aqueles seres chegaram, trazidos por cavalos e guiados pelos latidos. Uma última visão do seu mundo. O coração estava acelerado pois tinha medo, muito medo. Um som seco, e a pancada forte no pescoço a derrubou de sua árvore. Não havia como os perseguidores errarem pois haviam treinado antes com as capivaras, os veados e os jacarés. No chão, ainda mostrava os dentes aos seus algozes. Dentes poderosos. Já fizera isso várias vezes em sua vida, urrando pelas noites, avisando que estava ali, que aquele era seu território. Agora, aquele ato significaria um sussurro apenas, implorando para acabarem logo com aquilo. Não aguentava mais aqueles latidos junto aos seus ouvidos sensíveis, aquelas mordidas em seu corpo, aquele sangue a escorrer por seu pescoço. Covardes. Seria despida e degolada ali mesmo. Sua cabeça seria exposta junto a tantas outras em um local qualquer, com a mesma expressão de fúria mas sem urro, sem sussurro, sem preguiça, sem beleza, sem nada. Sua pele seria estendida. Tantas outras, pardas e pintadas, tiveram o mesmo destino nesses últimos dias, da mesma maneira.

Então fechou os olhos. Escureceu e já não sentia mais frio. Acabou. Por quê?

  • Franco L. Souza

    Franco L. Souza é biólogo e professor do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Leciona ...

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