Em coluna recente, falei sobre a Trilha E-9, no seu trecho que corta o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, em Portugal. Para resumir o que escrevi, trata-se de um belo percurso que corta uma paisagem linda, com tudo pronto para ser manejado como uma trilha de longo curso sem que, no entanto, o Governo o tenha aparelhado para servir ao ecoturismo, como seria de se esperar em um país em que os visitantes estrangeiros contribuem significativamente para a economia nacional. Em se tratando de Europa o descaso é de estranhar. Afinal, não é preciso procurar muito para ver bons exemplos a emular. Ali mesmo na União Europeia há incontáveis trilhas de longo curso, cujos exemplos são inspiradores. Do ponto de vista do interesse lusitano, talvez o melhor de todos seja a Grã Bretanha que, afinal, é uma das principais fontes de turistas para região da Costa Vicentina.
Há na Ilha Britânica cerca de 600 trilhas de longo curso sinalizadas e com manutenção perene. A definição de “trilha de longo curso” é simples: abarca todas as caminhadas que precisam mais de um dia para serem percorridas. Há, contudo, dentro desse universo, quase duas dezenas de trilhas com mais de 100 km de extensão trilhas. São classificadas como “Trilhas Nacionais”, mantidas em sua totalidade por instituições especificamente designadas para tal nos três territórios autônomos do Reino Unido (Inglaterra, Escócia e Gales). Juntas somam quase cinco mil quilômetros de extensão. São 13 na Inglaterra, 4 na Escócia, uma em Gales e uma entre Gales e Escócia.
Todas exercem grande atração para o público. Mesmo na Escócia, onde, brinca-se, só há duas estações (o inverno e a estação central de trem de Glasgow), 70 mil montanhistas completam os 153 km da West Highland Way todos os anos.
Como é que eu sei? Fácil. Quem caminha as trilhas de longo curso da Escócia compra um passaporte antes de iniciar o périplo. Com ele ganha descontos ao longo da jornada nos locais de acomodação e alimentação, bem como nas lojas de equipamentos de montanhismo. Mas não é só, a intervalos regulares há locais de passagem obrigatória onde o passaporte recebe um carimbo datado. Ao final da trilha o passaporte todo timbrado serve de prova para a emissão de um certificado de conclusão da trilha. O certificado é pago e os recursos revertem para a manutenção da trilha.
Apesar do clima inclemente e da escassez de espaços verdadeiramente pristinos na Inglaterra e seus vizinhos, o esforço de escolha dos roteiros das trilhas nacionais, bem como o laborioso trabalho de sua implementação e manutenção, tornam agradável percorrê-las. O próprio West Highland Way é espetacular. Considerado como um trecho da Trilha Apalache Internacional, em seu traçado de oito dias cruza um dos dois Parques Nacionais escoceses, o Loch Lomond e o Trossoks National Park. A trilha é, possivelmente, a mais bonita dentre suas análogas britânicas. Começa próximo a Glasgow, depois, avança bordejando “lochs” e “munroes” (lochs são lagos, monroes são picos com mais 914 metros de altitude, equivalentes a 3.000 pés), até terminar nas fraldas de Ben Nevis, ponto culminante do Reino Unido, com 1.344 metros de altitude (e cem mil pessoas atingindo seu cume todos os anos!).
Outra trilha de longo curso que poderia servir de exemplo a Portugal (e ao Brasil, apesar de nosso abismal atraso no uso público das unidades de conservação!) é o Pennine Way, cujos 429 km começam na fronteira da Escócia, atravessam três Parques Nacionais e terminam próximo a Manchester. Do total, 61% do percurso é em áreas protegidas e o restante atravessa terreno usado pelas forças armadas para treinamento, margens de cursos d´água, paisagens rurais e peri-urbanas.
Entrou no site das trilhas nacionais britânicas e ficou em dúvida sobre onde caminhar? Não tem problema. Pode ficar em cima do muro. Com efeito, ao percorrer a Trilha de Longo Curso da Muralha de Adriano, é possível palmilhar 140 km literalmente em cima do muro. A Trilha da Muralha de Adriano é a mais popular da Inglaterra. Não é para menos. Seu percurso segue o muro fortificado que Adriano mandou erigir em 122 D.C. no limite do Império Romano, separando-o da atual Escócia. Hoje tombada pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade, a Muralha de Adriano é a maior linha fortificada contínua construída por Roma. Muitos de seus trechos, que tinham cerca de três metros de largura e até seis metros de altura, ainda estão de pé, assim como bem preservadas ruínas de portões e torres. O caminho, que acompanha as fraturas do relevo, usando precipícios e despenhadeiros para fortalecer o propósito defensivo do muro, também atravessa dezessete antigos quartéis romanos, que eram guarnecidos por legionários de segunda classe (não romanos, tais como belgas e gauleses, por exemplo).
Cada vez que a trilha adentra algum desses aquartelamentos somos assaltados por imagens vivas da história, sempre escoradas em placas de sinalização bem pensadas e em centros de visitantes ricamente aparelhados. Em meu périplo, não pude deixar de evocar a Babaorum e Petibonum dos livros de Asterix. Do alto dessas fortificações ficava imaginando os pobres decuriões perscrutando os limites da planície além-muro na expectativa apavorada de um ataque surpresa dos gauleses embriagados com a poção de Panoramix.
Mas, se você não for do tipo que fica em cima do muro, há nas terras britânicas ainda muitas outras trilhas de longo curso que também merecem atenção especial dos montanhistas. Uma delas é a Taff Trail, cujos 88 km cortam o Parque Nacional de Brecon Beacon, em Gales, e a Cumbria Way, que em seus 113 km, atravessa o Lake District National Park, a mais bonita área protegida da Inglaterra.
O que esses caminhos têm de excepcional, contudo, não é a beleza, nem o estado primitivo da natureza, mas sim sua boa manutenção: suas medidas para mitigar a erosão, suas pontes, corrimãos, mirantes e plataformas, os acordos que permitem as trilhas atravessarem terras privadas, seus campings de alto nível, a qualidade e exatidão de seus mapas e a sinalização farta e inequívoca. Existe facilidade de transporte entre os diversos pontos em que as trilhas cruzam o asfalto, locais onde há suficientes lojas, como lavanderias para manter a roupa sempre limpa e armazéns onde se pode reabastecer de víveres e produtos de primeira necessidade. Para fechar, a fiscalização é presente e eficaz.
Não é sem razão que alguns milhões de britânicos caminham nas trilhas do seu próprio país todos os anos. Suas trilhas, ainda que não sejam espetaculares, são muito bem manejadas. Assim, mesmo em um dia chuvoso e frio, há gente se exercitando na natureza e gostando do que faz. Na última vez em que meu filho Lucas e eu palmilhamos o Parque Nacional de Brecon Beacon, era pleno verão e ainda assim chovia cântaros, enquanto um vento gelado cortava o ar. Pensamos em desistir da empreitada, mas, como o clima não parecia afetar ninguém, fomos em frente. Ao chegarmos ao topo de um morro de que não me recordo o nome, deparamos com um montanhista local. Seu largo sorriso denotava contentamento extremo. Ao nos ver, abriu um largo sorriso e disparou: “lovely day, isn´t it?”
E afinal era mesmo!
Leia também
Entrando no Clima#40 – Florestas como forças de estabilização climática
Podcast de ((o))eco fala sobre como as florestas têm ganhado espaço nas discussões da COP 29 →
ONU espera ter programa de trabalho conjunto entre clima e biodiversidade até COP30
Em entrevista a ((o))eco, secretária executiva da Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU fala sobre intersecção entre agendas para manter o 1,5ºC →
Livro revela como a grilagem e a ditadura militar tentaram se apoderar da Amazônia
Jornalista Claudio Angelo traz bastidores do Ministério do Meio Ambiente para atestar como a política influencia no cotidiano das florestas →