Eu não tinha intenção e menos ainda previsão de escrever o que seria a terceira parte do artigo já publicado em duas etapas, afinal, para mim ele estava encerrado na segunda parte. Por isso, também, não me é nada fácil escrevê-lo. Mas o faço numa combinação de prazer e obrigação. Mais prazer, é verdade, dado que considero muito salutar o debate despertado com o que foi publicado. Por sinal, debate que, de certa forma, tem continuidade naquele que se segue à matéria sobre a exoneração de Pedro Menezes da diretoria do ICMBio. Mas também por certa obrigação dado que fui instado ou solicitado a fazê-lo, tanto por leitores como pelos editores do site. Assim sendo, segue a não planejada parte 3, ou epílogo.
Inicio por me desculpar com aqueles que acharam que discorri mais sobre meu currículo sem ir de fato à questão de fundo que propus – os planos de manejo e o manejo das unidades de conservação. Não foi e nunca seria minha intenção fazer isso, embora haja um fato concreto a ser considerado: dentre muitos, eu fui um dos agentes da história recente das unidades de conservação deste país, para o bem (eu creio) ou para o mal (como alguns detratores acham e preferem divulgar). No artigo narrei honestamente a minha versão dos fatos, inclusive assumindo certa culpa quanto à importância burocrática dada aos planos de manejo no nosso país. Pode haver outras versões, é certo que elas existam, mas elas, no máximo, serão muito pouco diferentes da minha. Assim, que se esclareça que a narrativa apresentada teve como objetivo maior resgatar informações do passado para facilitar o entendimento do presente e ajudar a construir o futuro (melhor que este presente).
Apropriação necessária
“A apropriação das unidades de conservação pela sociedade passa, em medida, pelo seu uso pelo cidadão comum, pagador de impostos, o que só é possível se estas estiverem abertas ao público”
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Este futuro, como considerei antes, passa pela necessária apropriação das nossas unidades de conservação pela sociedade brasileira. Precisamos forjar esse senso de propriedade – o que não é tarefa das mais difíceis se houver mais disposição e menos arrogância da parte de vários dos ocupantes de postos públicos – de forma a culminar com o desenvolvimento do orgulho nacional pelas nossas áreas protegidas que precisam ser vistas e assumidas como “instituição” nacional. Que fique claro que a institucionalização a que me refiro, então, passa além do ICMBio e de organizações governamentais estaduais encarregadas do manejo de unidades de conservação. Ela diz respeito às unidades de conservação em si e sua institucionalidade local, regional, nacional! Valho-me aqui do pensamento do historiador conservacionista norte-americano Alfred Runte, para quem o maior legado dos Estados Unidos para o mundo que habitamos não é a melhor ciência e a tecnologia decorrente que tem disponibilizado, o que também é verdade, mas sim a ideia de parque nacional! Em outras palavras, de unidades de conservação sendo visitadas e apreciadas por quem paga as contas das suas existências.
A apropriação das unidades de conservação pela sociedade passa, em medida, pelo seu uso pelo cidadão comum, pagador de impostos, o que só é possível se estas estiverem abertas ao público. Obviamente, tudo coerente com os princípios legais e a melhor fundamentação técnica relacionada a cada categoria de manejo e à realidade regional ou local, devidamente fundamentados em planos de manejo. Assim, nos debates, por favor, não voltemos à cantilena das pré-condições para isso e aos intermináveis estudos necessários. De qualquer forma, precavendo-me, repito aqui parte do mencionada no artigo anterior (parte 2): “é da lei que cada unidade de conservação disponha de um plano de manejo e que este abranja a área da unidade de conservação, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas visando sua inserção e efetiva integração à vida social e econômica regional; mas os planos de manejo não podem configurar um fim em si mesmo, como parece acontecer cotidianamente”.
Exemplo de sucesso
“(…) vi sinalizações de trilhas em perfeitas condições, sem marcas de vandalismo.”
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E começando pela interação com o entorno, vou à Reserva Natural Salto Morato, mencionada em comentários do artigo anterior como um exemplo de unidade de conservação que funciona. Faz alguns dias, depois de anos, visitei Salto Morato, da Fundação Grupo O Boticário de Proteção à Natureza, de cuja criação, planejamento original e implementação inicial eu fui responsável e supervisor. Fiquei feliz de ver, anos mais tarde do sonhado e muito tentado, a população local de Guaraqueçaba (PR), que não paga ingresso, usando a área para sua recreação e deleite como nunca havia acontecido antes. O gerente da unidade me disse, “o pessoal vem todo final de semana, chega cedo, toma banho de rio, percorre as trilhas, principalmente a do Salto (Morato), usa as churrasqueiras, enfim usa como um espaço deles, quase um clube”. Minha experiência no local: ouvi um pouco mais de barulho do que eu gostaria e do que penso ser o melhor comportamento sonoro numa unidade de conservação, mas nada de funk, pagode, axé ou qualquer coisa além da conta e que me incomodasse; não vi lixo pelo chão e vi crianças e adultos colocando lixo nas lixeiras; vi sanitários limpos, porque sendo educadamente usados (o que configura uma raridade no nosso país em se tratando de banheiros públicos); vi sinalizações de trilhas em perfeitas condições, sem marcas de vandalismo; e também vi um centro de visitantes aberto ao público em vários momentos sem sequer um funcionário tomando conta (devido a outras tarefas), e tudo funcionando bem. Fiquei muito feliz, mesmo! O barulho vai diminuir e o comportamento que já é bom será cada vez melhor, não tenho dúvidas, uma vez que tudo induz a isso. As pessoas cuidam do que gostam! Parabéns aos meus sucessores nessa tarefa pelo que já alcançaram!
Também como mencionado no artigo anterior, “como posto na lei, porque resultado do nosso processo cultural, os planos de manejo têm na realidade brasileira a dupla condição de normatizar a gestão e o uso da área e programar as ações, o que lhes confere complexidades desafiadoras”. Sim, isso é verdade, mas o uso dos planos de manejo é freqüentemente limitado pelos agentes encarregados das unidades de conservação, ou seja, os seus gestores, mesmo quando eles são práticos e exequíveis ou no que eles têm de prático e exequível.
Falta iniciativa
“(…) “o senhor já leu o plano de manejo?”. Atônito, o chefe viu o funcionário do KfW retirar da pasta um exemplar do plano de manejo da unidade, abri-lo em inúmeras páginas pré-marcadas e desfiar um sem fim de ações que não precisavam de recursos para desenvolvimento, mas acima de tudo de iniciativa, de ação.”
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Valho-me aqui de um exemplo crítico que, tenho certeza, muitos técnicos e gestores não vão gostar. Certa feita, nos tempos de PNMA já bastante mencionado no primeiro artigo, acompanhei um dos funcionários do KfW, o banco da cooperação internacional alemã, que co-financiava o componente unidades de conservação daquele programa, numa visita de verificação de resultados. No local, conversando com o chefe da unidade, Hans Schütz (depois um amigo próximo), famoso pela rigidez de suas avaliações (e muitas vezes também pela rispidez) e tendo na cabeça muitos detalhes do plano de manejo elaborado com recursos do banco, foi desfiando um rosário de perguntas, começando obviamente pelo estado de implementação do plano. Para todas elas, invariavelmente, a resposta era “não, não deu para realizar; não foi possível, não tinha recursos; as condições não permitiram” e por aí afora. Então, conversa vai conversa vem, ele também perguntou sobre coisas tão inocentes como “o senhor conhece o prefeito? quantas vezes o visitou? já se reuniu com o chefe da unidade regional da Emater?” e assim por diante, ouvindo outros não, que já não mais se referiam à falta de recursos. Hans Schütz, então, disparou à queima roupa: “o senhor já leu o plano de manejo?”. Atônito o chefe viu o funcionário do KfW retirar da pasta um exemplar do plano de manejo da unidade, abri-lo em inúmeras páginas pré-marcadas e desfiar um sem fim de ações que não precisavam de recursos para desenvolvimento, mas acima de tudo de iniciativa, de ação. O chefe provavelmente não tinha mesmo lido o plano de manejo, ou se tinha lido não tinha gostado de algo que era “propriedade” de outro. Eu sei que esse não é o padrão geral de gestor e de técnico, mas há técnicos e gestores assim, e cada um dessa estirpe prejudica cinco que são bons e eficientes.
Agora o exemplo melhor e que vale uma menção nominal: Estevão Marchesini Fonseca, que conheci participando de um curso de planejamento e manejo de unidades de conservação que eu ministrava regularmente na Reserva Salto Morato. Funcionário do IBAMA como técnico de segundo grau e fazendo curso superior (não lembro qual, possivelmente noturno para compatibilizar com o trabalho), Estevão me deixou muito bem impressionado com seu interesse e vontade de aprender. Sei que Estevão voltou mais vezes a Salto Morato para fazer outros dois ou três cursos em outros temas associados. Lembro mais tarde de tê-lo encontrado algumas vezes em congressos e, conversando, ter tido a oportunidade de saber que avançava no trabalho no Caparaó, onde mais tarde ocuparia a chefia da unidade. Não foi surpresa, então, avaliando a dissertação de mestrado de Rodrigo Zeller já mencionada no artigo anterior, encontrar a gestão do Caparaó, sob a liderança de Estevão, como uma referência positiva dentre as várias unidades estudadas. Por sinal, lembro de uma vez, nos corredores do IBAMA, nas proximidades da DIREC, ter ouvido críticas estúpidas sobre a ascensão funcional de técnicos de segundo grau para nível superior, sob a argumentação de que eles se promoviam via cursos noturnos de “segunda linha” – uma crítica que atingia diretamente Estevão e muitos outros funcionários, da sede e das unidades. Há mais técnicos e gestores como ele (muitos possivelmente) que, independentemente da qualidade da formação original, fazem mais e conversam menos – sintam-se todos homenageados por mim através desta menção a ele.
Gestão mais completa
“Precisamos de mais gestores e técnicos que encarnem o princípio maior de ser guarda parque no seu sentido mais amplo e nobre: gente que vá para o mato, que saiba planejar e implantar uma trilha (…)”
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Precisamos de mais gestores e técnicos que encarnem o princípio maior de ser guarda parque no seu sentido mais amplo e nobre: gente que vá para o mato, que saiba planejar e implantar uma trilha e assim também saiba mandar fazer; gente que saiba apagar fogo e assim saiba comandar uma brigada de combate de incêndios, a começar porque passa confiança nos liderados; gente que gosta de fato da natureza e sabe também fazer pareceres técnicos, necessários nos processos, mas bons pareceres que encerrem conhecimento prático junto com a teoria dos artigos científicos e livros!
Este artigo, então, é para enfatizar a necessidade de gestão de qualidade na ponta, na unidade, ainda que sem desprezar ou desconsiderar o planejamento e a gestão central. Afinal, se temos (ou, ainda, neste momento apenas queremos e sonhamos com) um sistema de unidades de conservação, é o topo da pirâmide que reforça o conceito e planeja o todo, cabendo a cada unidade fazer bem a parte que cabe. Mas antes de encerrar, preciso contar que me senti, de certa forma, indiretamente homenageado com a foto do Parque Nacional do Iguaçu e suas passarelas cheias de visitantes, com a qual os editores de ((o))eco ilustraram a segunda parte do meu artigo.
Tenho muitas histórias com o Parque Nacional do Iguaçu, pelo qual já apanhei muito politicamente. Como diretor da DIRC tive de tomar medidas emergenciais tanto para fechá-lo ao uso público como para abri-lo no curso da Rio 92, tal foi a enchente do Rio Iguaçu no período. Como voluntário do Ministério Público Federal, tive a oportunidade de agregar e liderar a equipe de especialistas que operou na condição de peritos assistentes na ação pelo fechamento da “estada do colono”. Com nosso parecer foi derrubado o relatório do perito judicial designado, pró abertura, e a ação litigiosa, depois de muitos anos, terminou positiva para o parque, hoje novamente sob ataque político. Mas se eu lutei pelo fechamento da estrada, também trabalhei para a sua maior abertura. Por iniciativa de Sérgio Brant (hoje diretor de áreas protegidas no MMA) como gerente do antigo DEUC, na condição de diretor da DIREC (com Maria Tereza Jorge Pádua, hoje colunista de ((o))eco, na presidência do IBAMA) eu assinei o encaminhamento do processo de desapropriação amigável da área na entrada do parque para, sem conflitos legais e técnicos, dar a origem ao que é hoje, via concessão, a área de recepção e ingresso dos visitantes naquela unidade (estacionamentos, embarque desembarque dos ônibus, centro de visitantes, lojas etc), que tem a maior visitação pública no Brasil. Ainda, mais recente, vi com alegria importante resultado indireto de outro projeto por mim apoiado: a restrição judicial ao tráfego de veículos na estrada das cataratas e a efetiva implementação do plano de manejo aprovado e publicado, que teve sucesso relativo. Fundamentada na morte de animais por atropelamento, entre muitos outros uma onça, essa foi uma ação judicial movida pelo IJA (Instituto Justiça Ambiental), organização da qual fui mentor e apoiador institucional.
Era luz no fim do túnel?
“não podemos seguir perdendo espaços naturais e unidades de conservação (…) para finalidades talvez ainda mais duvidosas, como assentamentos extrativistas onde faltam tradicionais e áreas quilombolas onde nunca existiram de fato quilombos.”
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Precisamos de planos de manejo viáveis; precisamos deles sendo implementados. Se há falta de gente e também faltam recursos financeiros e materiais, vamos às boas alternativas possíveis, as concessões e as parcerias (PPPs), para obtê-los. E para isso precisamos de técnicos e gestores que arregacem as mangas e metam a mão na massa. Como já mencionei, não podemos seguir perdendo espaços naturais e unidades de conservação para obras de desenvolvimento de sentido duvidoso, represas, linhões e rodovias. Ou para finalidades talvez ainda mais duvidosas, como assentamentos extrativistas onde faltam tradicionais e áreas quilombolas onde nunca existiram de fato quilombos.
Em respeito ao debate gerado pelos meus dois textos anteriores, finalizo este assumindo que, metaforicamente, no contexto presente, eu não sei se o diabo brotou dos detalhes ou se a luz não era a do fim do túnel, mas sim a de uma composição em sentido contrário, eventualmente desgovernada. Espero que não seja nada disso e também que saibamos aproveitar a oportunidade ímpar de uma copa do mundo e uma olimpíada no nosso país para virarmos esse jogo a favor das unidades de conservação.
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