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Monte Roraima: caminhadas, observação de aves e bolivarianos em crise (parte 3)

Visitar o "Mundo Perdido" é conhecer não só um ecossistema surreal, mas também um pouco de um experimento social que não vai acabar bem.

Fabio Olmos ·
14 de abril de 2014 · 11 anos atrás

O Maverick, ponto culminante do Roraima, visto de nosso hotel. Foto: Rita Souza
O Maverick, ponto culminante do Roraima, visto de nosso hotel. Foto: Rita Souza

Dormimos muito bem sob um friozinho de 9 graus e um belo dia nos saudou. Novamente subimos o Maverick, agora sob um tremendo vento, para fazer algumas das fotos obrigatórias do Roraima antes do café da manhã e partir para uma longa caminhada pelo platô. Antes de sairmos fomos visitados por tico-ticos, fura-flores e um beija-flor-violeta Colibri coruscans, outra novidade para nosso grupo.

Partimos rumo ao vale do Arabopó, um dos rios que nascem no platô e despencam lá de cima em fendas que cortam o interior da montanha. Durante a caminhada era difícil escolher qual formação de rochas era mais interessante e você quase acredita nas histórias de que as pedras mudam de posição durante a noite. Lógico, não há nada sobrenatural envolvido, apenas o poder erosivo do vento e da água, mediados por biofilmes, sobre camadas de arenito com resistências diversas. O que não é menos impressionante.

Além das rochas a vegetação é uma atração à parte. As espécies mais comuns são as Stegolepis guianensis, mas há várias orquídeas, algumas bromélias e muitas plantas carnívoras. Onde o solo é mais profundo, como em alguns vales, crescem arvoretas Bonnetia roraimae, que também ocorrem na floresta nebular abaixo.

As plantas tendem a crescer em “ilhas” de sedimento cercadas por muita rocha nua e o acúmulo gradual de matéria orgânica e partículas minerais faz com que essas cresçam e possam sustentar espécies de maior porte. As depressões na rocha, por sua vez, acumulam muita água, formando poças e piscinas onde crescem cianobactérias que formam melequentos tapetes roxos. Imaginamos se estas melecas roxas poderiam evoluir para algo como o Blob.

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Essa é uma caminhada longa e cansativa (fizemos 17 km neste dia) e ao chegarmos ao Arabopó encontramos o vale inundado, o que nos fez decidir mudar de rota e ir para o Fosso. Essa é uma cavidade inundada que abre para o exterior através de um poço vertical. Seu interior mostra colunas que suportam o teto e espeleotemas formados com mediação do biofilme que encrusta as rochas, um bom exemplo de como biologia e geologia se combinam.

Nossa equipe de apoio já havia providenciado um almoço, que nos aguardava quando chegamos, e após um bom banho e explorar os arredores começamos a longa caminhada de volta ao nosso hotel.

Mais aves

“o grande momento foi observar dezenas de guácharos Steatornis caripensis repousando nas prateleiras ao longo do paredão do canyon que é a fenda (…)”

No dia seguinte, que começou com um sol glorioso e céus limpos, optamos por uma abordagem mais ornitológica e após o café da manhã fomos diretamente ao “hotel” Guácharo, onde uma ave desta espécie havia tentado nidificar. Só encontramos mais turistas acampados ali, então decidimos ir à famosa Fenda dos Guácharos (ou dos “demônios voadores”, como querem alguns) para observar estas aves.

É uma caminhada mais curta, mas não com geologia não menos dramática, que rendeu visões rápidas de duas espécies adicionais de beija-flores. Mas o grande momento foi observar dezenas de guácharos Steatornis caripensis repousando nas prateleiras ao longo do paredão do canyon que é a fenda, um dos pontos altos da viagem para nosso grupo de observadores de aves.

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Os guácharos são aves noturnas que se alimentam de frutos, especialmente de palmeiras, e formam colônias em cavernas e fendas profundas abrigadas do sol. Eles têm um sistema de ecolocação similar aos morcegos e sua voz faz jus à história dos demônios voadores. Os do Monte Roraima devem voar boas distâncias até as áreas de floresta para encontrar seu alimento.

Banho gelado

Da Fenda retraçamos o caminho até a Praça Central e dali até as Jacuzzis, um conjunto de piscinas naturais que é uma das atrações mais famosas do Roraima. No caminho passamos por um afloramento de cristais de rocha, formados por intrusões vulcânicas que penetraram no arenito. Muito mais duros do que este, os cristais acabam acumulando-se na superfície conforme o arenito é erodido e vira areia.

As Jacuzzi foram uma parada bem-vinda para um banho gelado (obrigatório) antes de retornamos para o hotel, almoçar e iniciar a descida para o acampamento Base, uma decisão que tomamos para evitar ter que caminhar do topo do Roraima até o Tek no mesmo dia, o que é bem puxado, e termos mais tempo para ir atrás de mais aves. Um gavião-de-rabo-branco Geranoaetus albicaudatus voava sobre o platô quando deixamos o acampamento, uma espécie não listada para o Monte Roraima mas frequente na Gran Sabana.

As famosas Jaccuzzi. Foto: Fábio Olmos
As famosas Jaccuzzi. Foto: Fábio Olmos

O bom tempo ajudou durante este dia e após almoçar e guardar nossas coisas caminhamos de volta ao acampamento Base sem precisar nos encharcar com chuva ou sob as Lágrimas e com visão perfeita do paredão do Roraima. Nossa equipe de apoio desceu até o acampamento com humilhante rapidez e já víamos nossas barracas sendo armadas lá embaixo antes de chegarmos na metade do caminho.

Nossa lerdeza foi parcialmente causada pelas paradas para fotografar a paisagem e observar aves ao longo do caminho, onde reencontramos vários dos endêmicos, como o anambé, o fura-flor, o barranqueiro, a saíra e o asa-de-sabre, além do beija-flor-violeta. O que confirmou ser o trecho entre o Base e o paredão da montanha o melhor, em toda a caminhada, para observar aves.

De volta ao Base

“(…)próximos ao acampamento conseguimos atrair mais um bicho especial que foi devidamente fotografado, o ferreirinho-ferrugem Poecilotriccus russatus. Mais uma alegria para nosso grupo.”

 

Chegamos no Base no final da tarde, ainda a tempo de observar as revoadas de Nanoppsittacas e novamente ficarmos frustrados por eles voarem tão alto e fotos serem impossíveis. Bom, ganha-se umas, perde-se outras.

O dia 14 de fevereiro foi nosso penúltimo dia e começou com uma manhã dedicada a procurar espécies que ainda não havíamos observado. Encontramos vários das espécies já conhecidas ao redor do acampamento Base, incluindo penetras vindos da savana mais abaixo como o sanhaçu-de-coleira Schistochlamys melanopis e a saíra-amarela Tangara cayana.

Tentamos atrair espécies que havíamos apenas ouvido e “pescamos” tocando as vozes de outras que poderiam ocorrer ali, mas não havíamos detectado, como um tucaninho verde que também é endêmico dali. Não tivemos sorte com eles, mas bem próximos ao acampamento conseguimos atrair mais um bicho especial que foi devidamente fotografado, o ferreirinho-ferrugem Poecilotriccus russatus. Mais uma alegria para nosso grupo.

Antes de partirmos ainda observamos duas espécies de andorinhões, um taperuçu-dos-tepuis Streptoprocne phelpsi voando em frente ao paredão e, na direção do Kukenan, dezenas de andorinhões-montanos Aeronautes montivagus, outra espécie compartilhada com os Andes e novidade para nosso grupo.

Rumo ao Tek

Atravessando o Kukenan rumo ao acampamento no rio Tek. Foto: Fábio Olmos
Atravessando o Kukenan rumo ao acampamento no rio Tek. Foto: Fábio Olmos
“Cruzamos com muitos turistas, desde adolescentes a vovôs usando bengalas, conversando em alemão, francês, espanhol e eslovaco. Turistas americanos não são comuns por não serem bem-vindos”

 

Partimos rumo ao rio Tek, cada um no seu ritmo. Cruzamos com muitos turistas, desde adolescentes a vovôs usando bengalas, conversando em alemão, francês, espanhol e eslovaco. Turistas americanos não são comuns por não serem bem-vindos, embora os americanos sejam os maiores compradores do petróleo venezuelano.

Caminhar pelo parque me fez pensar em quantos secretários e ministros do meio ambiente brasileiros, para não dizer presidentes, foram ou são usuários das Unidades de Conservação? Quantos destes personagens, que tem nas mãos o destino de áreas insubstituíveis, são andarilhos, fotógrafos da natureza, montanhistas, observadores de aves, mergulhadores ou apenas frequentam estes espaços para relaxar?

Nem só turistas usam o acampamento do rio Tek....
Nem só turistas usam o acampamento do rio Tek….

Isso para não dizer, quantos têm formação mínima sobre biodiversidade e ecossistemas? Para entender que um bagre do rio Madeira é diferente do bagre do pesque-pague, e porque uma barragem naquele rio é uma ideia ruim sem que seja necessária uma enchente para demonstrar uma das razões.

Acho que muitos poucos, o que explica parte do barbarismo do Brasil.

Fizemos uma parada para almoçar no rio Kukenan, logicamente com um mergulho no rio para esfriar e também desafiar os mosquitos-pólvora que queriam almoçar nosso sangue. Um turista eslovaco estava acampado ali por ter sido picado por uma aranha e não conseguir acompanhar seu grupo. Muito simpático, conversou com nosso grupo por um tempo e nos introduziu à bebida típica de seu país, a slivovitsa, um ótimo aguardente (ou melhor, palinka) feito de suco de ameixas. Eu amo a globalização.

Desejamos sorte ao nosso amigo e pouco depois chegamos ao acampamento do rio Tek, onde celebramos nossos lifers e a visita à montanha com latinhas de cerveja gelada e um generoso jantar. Grupos de turistas, incluindo muitos brasileiros, lotavam o lugar e também celebravam sua chegada ali.

Partimos cedo na manhã de 16 de fevereiro para vencer os 15 km até Paraitepui a tempo de visitar um outro ponto interessante que vimos no caminho desde Santa Elena e evitar chegar muito tarde em Boa Vista.

Rumo a Paraitepui. É fogo...
Rumo a Paraitepui. É fogo…

Balanço

“o Parque Nacional Canaima existe há mais de 50 anos e é uma das grandes atrações turísticas da região, mas também é um parque com muitos problemas. As trilhas não estão preparadas para os usuários e degradam ambientes frágeis”

 

Minha chegada em Paraiepui depois dos 15 km desde o rio Tek teve o bônus de encontrar duas espécies de savanas, a corruíra-do-campo Cistothorus platensis e o maxalagagá Micropygia schomburgkii cantando junto à vila. Depois de uma merecida bebida gelada demos baixa no livro de registros do parque antes de partirmos.

Como eu disse o Parque Nacional Canaima existe há mais de 50 anos e é uma das grandes atrações turísticas da região, mas também é um parque com muitos problemas. As trilhas não estão preparadas para os usuários e degradam ambientes frágeis como as turfeiras, além de erodir as encostas do Monte Roraima. É evidente que florestas continuam ser perdidas para o fogo e a agricultura e não vimos nenhum mamífero exceto cães domésticos. Faltam equipamentos como latrinas, mesmo simples arboloos que poderiam ser usados para reflorestar o entorno dos acampamentos .

Ignorando a lei que diz que Unidades de Conservação são um excelente indicador da eficiência de um governo, eu esperava mais de um país que já se orgulhou de ter um dos melhores sistemas de áreas protegidas na América Latina e ser revolucionário. O Monte Roraima merece mais cuidado.

Kako Paru

Bônus geológico: Kako Paru, um rio que corre sobre um afloramento de jaspe vermelho. Foto: Fábio Olmos
Bônus geológico: Kako Paru, um rio que corre sobre um afloramento de jaspe vermelho. Foto: Fábio Olmos

“Este é um riacho, com talvez 10 m de largura, que corre e forma cachoeiras sobre um afloramento de jaspe vermelho, algo único no mundo.”

 

A caminho de Santa Elena paramos no nosso bônus geológico, a cachoeira de Kako Paru, também no parque nacional. Este é um riacho, com talvez 10 m de largura, que corre e forma cachoeiras sobre um afloramento de jaspe vermelho, algo único no mundo. O jaspe é uma pedra semipreciosa formada em sedimentos ricos em sílica cozidos por fontes hidrotermais. Uma herança da atividade vulcânica que já existiu ali.

Filas, câmbio pior e notícias de conflitos

“Após nova parada para trocar os bolívares que sobraram (já desvalorizados na taxa de 1 para 32), fizemos boa parte da viagem rumo a Boa Vista no escuro. Isso mostrou a extensão dos incêndios que queimavam áreas enormes no norte do estado.”

 

Em Santa Elena de Uraien encontramos filas quilométricas nos postos de combustível, soldados nas estradas e nervosismo. As notícias eram de que manifestações em outras partes do país haviam sido reprimidas e pessoas mortas pela polícia, ou que haviam tentado um golpe de estado. Paradas em lojas que supostamente teriam boas ofertas para turistas renderam prateleiras pouco abastecidas.

Após nova parada para trocar os bolívares que sobraram (já desvalorizados na taxa de 1 para 32), fizemos boa parte da viagem rumo a Boa Vista no escuro. Isso mostrou a extensão dos incêndios que queimavam áreas enormes no norte do estado. Nunca ficamos fora da vista de algum fogo e uma linha com pelo menos 3 km seguia paralela à estrada e queimava o lavrado e morros na Terra Indígena São Marcos. A piromania humana não perde uma chance de se manifestar.

Retornamos para casa em um voo noturno e logo procurei notícias sobre o que acontecia na Venezuela. Soubemos então que estudantes que perceberam que seu futuro foi roubado e gente comum cansada das filas, da falta de produtos básicos, da inflação absurda e da violência endêmica estavam nas ruas protestando contra um governo que não deixou outras opções para vozes discordantes.

Também vi como os pequenos stalins daqui manifestam seu apoio aos autoritários de lá e tentam confundir sobre quem são os fascistas nessa história.

Espero que a Venezuela saia desta confusão da forma mais indolor, e que nós, por aqui, aprendamos algo com o que acontece com nossos vizinhos. Democracia de verdade não é algo fácil e leva tempo para construir, mas as opções são muito piores.

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Veja
Monte Roraima: caminhadas, observação de aves e bolivarianos em crise (parte 1)
Monte Roraima: caminhadas, observação de aves e bolivarianos em crise (parte 2)

Leia também
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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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Comentários 1

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