Análises

O dia em que o rádio-colar do Soneca calou

Trabalho de biólogo inclui abandonar a família no Ano Novo, porque pararam os sinais enviados via satélite de uma onça-pintada aparelhada.

Fernando Tortato ·
9 de julho de 2014 · 10 anos atrás

Captura do macho M13, com 105 kg, fazenda S. Bento, município de Corumbá, Pantanal, 02/07/2014. Da esquerda para a direita: Gediendson de Araújo, Peter Crawshaw Jr., Fernando Tortato, e Allison Devlin. Foto: Thiago Semedo
Captura do macho M13, com 105 kg, fazenda S. Bento, município de Corumbá, Pantanal, 02/07/2014. Da esquerda para a direita: Gediendson de Araújo, Peter Crawshaw Jr., Fernando Tortato, e Allison Devlin. Foto: Thiago Semedo

Região de Porto Jofre, 08 de julho de 2014 — Aproveitando minha participação na atual campanha de capturas de onças-pintadas na fazenda São Bento, no Pantanal, aproveito para mandar notícias fresquinhas do andamento do nosso trabalho aqui. O trabalho para aparelhamento e monitoramento dessa população de onças faz parte de um estudo financiado pela ONG Panthera, com sede em Nova York, mas que tem trabalhado intensamente no estudo e conservação das espécies de felinos em todo o globo, focando principalmente nas espécies maiores (leão, tigre, onça-pintada, leopardo-das-neves). Não por mera coincidência, o vice-presidente da instituição é o Dr. George Schaller. O projeto teve início em 2008, na fazenda S. Bento, com 27 mil hectares, que foi comprada em parceria com a Panthera, com o objetivo principal de conservação das onças. Desde 2009, o biólogo Fernando Tortato tem trabalhado em tempo integral na fazenda. Em 2010, a doutoranda Allison Devlin somou-se ao projeto, utilizando as técnicas e análises mais atuais, de telemetria de satélite e de GPS, armadilhas-fotográficas, e modelagem genética para aprender detalhes sobre a vida das onças no Pantanal. Uma característica extremamente importante do trabalho dela é comparar o aspecto histórico, usando dados coletados desde as primeiras informações sobre as onças com aquelas coletados atualmente em Acurizal e no Parque Nacional Pantanal Matogrossense, no coração desse bioma.

No dia 01 de julho, chegamos à fazenda Fernando, Allison, o veterinário colaborador do projeto, Gediendson Ribeiro de Araujo (Gê), Tiago Semedo, mestrando da UFMT, André Luis Sousa Gonçalves, pesquisador do INPA, e eu. No dia seguinte, começamos a armar os laços, em uma dobradinha de sucesso formada pelo Gê e pelo Fernando, já consagrada em uma campanha prévia, em outubro do ano passado, e desde o dia 2, já capturamos três animais, com uma média inicial de uma captura a cada duas noites. Infelizmente, como o objetivo nessa campanha é de retirar os colares de machos aparelhados anteriormente, e colocar colares novos apenas em fêmeas adultas, nenhum dos três animais pôde ser aparelhado, pois foram capturados dois machos novos, com 105 e 83 kg, respectivamente, e uma fêmea pequena, com 53 kg. Essa fêmea foi pega em um laço armado na carcaça de um bezerro e sua captura gerou um pouco de preocupação, pois ela ainda estava acompanhada da mãe, que ficou nos rodeando à distância, enquanto fazíamos os procedimentos de rotina nela. Como ainda temos mais três noites com os laços armados, antes do término da campanha, ainda temos esperança de capturar uma fêmea adulta, para aparelhamento, ou macho já com colar, para retirada do mesmo.

Reproduzo abaixo um texto escrito pelo biólogo do projeto, Fernando Tortato, a meu pedido, contando histórias atuais sobre a pesquisa das onças. Na semana que vem, a Allison deve também contribuir, com uma matéria escrita por ela. Faço isso por causa de alguns comentários sobre os textos publicados anteriormente com histórias minhas e do Dr. George Schaller, nesse mesmo blog, em que se comentou que aquelas aventuras só aconteciam “nos velhos tempos”. Em minha opinião, o Pantanal (e o “mato”, o “campo”, ou o ambiente onde as onças ainda vivem de maneira geral), ainda continua quase o mesmo e, como as próprias onças são animais muito interessantes, as aventuras vão acontecer sempre, para aqueles que se dispuserem a aprender sobre a vida delas e a compartilhar o seu ambiente. O mais importante é em terra de onça SEMPRE usar de cautela, prudência, e bom senso, para não criar situações em que elas possam se sentir acuadas ou ameaçadas, e sejam forçadas a reagir de forma defensiva. (Peter Crawshaw)

 

Por Fernando Tortato:

Peter Crawshaw capturou sua primeira onça-pintada no Pantanal em maio de 1978, juntamente com George Schaller, utilizando a tradicional caçada com cachorros, com a diferença que, em vez de balas mortais, pela primeira vez, usou-se dardos anestésicos. Passados 31 anos, em outubro de 2009, eu tive a minha primeira participação na captura de uma onça-pintada, também no Pantanal. E novamente, adivinha quem estava ajudando na captura? Peter Crawshaw, em sua enésima onça-pintada! E com base na sua longa experiência, me ensinava: “Fernando, cada onça, cada captura, é diferente! Sempre tem alguma coisa nova a aprender”. Nessa captura, foram usados não cachorros, mas laços também já usados por caçadores, mas agora com adaptações para garantir a segurança do animal e dos pesquisadores. A onça capturada foi um macho jovem, com idade estimada entre 2 e 3 anos, com 89 kg. No projeto, foi identificada como M05 (M indicando o sexo, macho, e 5, o número sequencial de onças capturadas até então), mas foi apelidado de Soneca, pelo tempo que permaneceu dormindo, depois de passado o efeito do anestésico. Ele foi mais um animal capturado e aparelhado com um colar dotado de tecnologia de ponta. Além do sinal de VHF tradicional, usado desde os tempos dos estudos pioneiros de Schaller e Peter, este tem um receptor GPS que envia as localizações para um satélite em órbita, o qual retransmite os sinais para uma estação em terra, que, finalmente, manda as informações para o email do pesquisador.

O Soneca foi o único animal capturado durante os 15 dias dessa campanha, à meia-noite da penúltima noite (quando ainda estávamos aprendendo o novo método de captura, com um pesquisador sul-africano). O laço consiste em uma laçada com um cabo de aço fixado firmemente ao solo, que se fecha na pata do animal, quando este pisa em um gatilho camuflado na trilha, ou próximo a uma isca. Embora o método seja antigo, adaptações modernas como o uso de uma mola e de giradores impedem que o animal se machuque na armadilha. Depois de abertos, os laços são constantemente monitorados através de transmissores VHF, permitindo identificar o momento em que qualquer dos laços é disparado, na captura de um animal. Isso permite que o animal fique preso o menor tempo possível, reduzindo as chances de ferimentos decorrentes da captura. Uma vez contido pelo laço, ele pode então ser anestesiado com um dardo. São dias de expectativa, onde cada novo laço instalado representa mais uma chance de captura. No entanto, neste ano de 2009, apenas o Soneca foi capturado. O colar com GPS que ele passou a portar nos fornecia informações diárias sobre sua localização, oportunidade única de um monitoramento constante das atividades do animal. Embora não envolva tantas emoções como as aventuras de Peter e Howard monitorando onças com ultraleves no Pantanal, o método permite o acompanhamento detalhado das atividades das onças, registrando as coordenadas e a atividade do animal em intervalos de até 2-3 horas, por períodos contínuos de até dois anos, em condições ideais. Quando analisados de forma eficiente, como no trabalho de Sandra Cavalcanti, a checagem em solo dos aglomerados de pontos onde a onça passou mais que 24 horas podem desvendar informações importantes sobre presas consumidas ou sobre o comportamento social da espécie.

Captura do M05 (Soneca), na fazenda São Bento, outubro de 2009. Da esquerda para a direita, o veterinário Joares May, Peter Crawshaw, e o autor. Foto: acervo Peter Crawshaw
Captura do M05 (Soneca), na fazenda São Bento, outubro de 2009. Da esquerda para a direita, o veterinário Joares May, Peter Crawshaw, e o autor. Foto: acervo Peter Crawshaw

O monitoramento com colares GPS permite que se navegue no território das onças inicialmente pelas imagens de satélite e depois, checar no solo cada cantinho que elas utilizam do Pantanal. Permite conhecer locais fora das rotas e locais conhecidos para até mesmos os mais experientes vaqueiros da fazenda. Dessa forma, eu conheci baías e corixos lindos, escondidos no meio das matas, onde Soneca consumiu suas presas e onde repousava durante os dias quentes do Pantanal. Infelizmente, o período em que ele nos passou informações sobre a sua rotina diária foi truncado prematuramente, e o ultimo sinal enviado pelo seu colar para o satélite inicialmente gerou apreensão, uma vez que indicou a possível morte do animal. Esse sinal é acionado sempre que o colar permanece imóvel por um período maior que 24 horas. Acho que vale contar aqui o episódio. Estava eu na casa dos meus pais, em Santa Catarina, com minha esposa Juliana, em 30 de dezembro de 2009, aproveitando minhas merecidas férias. Ao checar meus e-mails, levei um susto, com várias mensagens de meus chefes de Nova Iorque, avisando que o colar do Soneca havia entrado em “mortalidade”, e pedindo que eu voltasse ao Pantanal, para checar in loco as coordenadas da onça e verificar o que havia ocorrido. No caso de morte do animal, é importante chegar ao local a tempo de averiguar o que a causou.

Uma busca ansiosa

“As 6h da manhã, 40 horas depois de ler os e-mails em Santa Catarina eu, Juliana, e os dois vaqueiros formávamos uma brava equipe munida de foices e facões, para a busca do colar do Soneca.”

Meus planos de ir para Florianópolis, desfrutar de uma praia e passar a virada do ano com minha família foram mudados pelo falta de sinal do Soneca. As 18:00 horas daquele mesmo dia, Juliana e eu já estávamos em um avião para Cuiabá. Chegamos de madrugada e às 7h horas do último dia do ano estavamos em um ônibus com destino a Poconé. Tivemos que aguardar até as 16h, quando o caminhão da fazenda veio nos buscar na cidade. Após os 146 km de terra da rodovia Transpantaneira e as suas 120 pontes de madeira, chegamos às 22h30 na margem do Rio Cuiabá, na divisa dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Mais 30 minutos de barco rio acima até chegar à sede da fazenda São Bento. Chegamos exaustos e só no dia seguinte tive ânimo para pedir a ajuda voluntária de dois vaqueiros experientes para me auxiliar. Eles aproveitavam o final de um tradicional churrasco pantaneiro e aguardavam a hora da virada, no meio do Pantanal, contando os minutos, da mesma forma que meus familiares provavelmente faziam, em uma praia em Florianópolis. No entanto, devido ao cansaço, Juliana e eu não esperamos a virada e fomos dormir.

As 6h da manhã, 40 horas depois de ler os e-mails em Santa Catarina eu, Juliana, e os dois vaqueiros formávamos uma brava equipe munida de foices e facões, para a busca do colar do Soneca. O meu GPS indicava que as coordenadas apontavam para uma mata ciliar, a uns 3 km de uma estrada onde deixamos a camionete. Desse ponto, eu já comecei a captar os sinais do colar com um receptor. Seguindo o sinal, lentamente abrimos a trilha pela mata,. Estes colares, além do envio do sinal via satélite, enviam um sinal VHF que permite um monitoramento direto do campo. O sinal cada vez mais forte indicava a proximidade do colar.

A adrenalina aumentava, com o sinal do “beep” já audível mesmo sem o auxílio da antena. Eu prestava atenção em todos os detalhes do ambiente. Às 8h horas, chegamos em uma clareira na mata, com muito capim-jaraguá, que volta e meia nos encobria. Eu procurava por urubus, pois se Soneca estivesse morto, eles certamente nos ajudariam a localizar a carcaça que ainda deveria estar fresca. Felizmente, não havia indícios destas aves necrófagas. Outros fatos que chamaram a atenção foram árvores próximas com aranhões recentes e capim amassado. Pela ausência dos urubus e de cheiros indicativos, comecei a descartar a possibilidade de o animal estar morto, tornando mais provável a queda do colar. Porém, encontrar um colar de 800 gramas em meio aquele capinzal era tarefa complicada. O receptor de sinal VHF auxiliava no direcionamento da busca, mas quando nos aproximavamos muito o sinal estourava e nos confundia. Defini um raio de busca de 20 metros, que percorríamos lentamente, em zig-zag, mas nada do colar. O tempo foi passando e armou-se uma tempestade, típica da estação chuvosa do Pantanal. Nuvens carregadas no céu, milhares de mosquitos nos importunando, os vaqueiros já desanimados, e eu teimoso ainda procurando o colar.

A recuperação do colar

“Nunca saberemos com certeza, mas as informações coletadas no local mostravam sinais da presença de mais de uma onça”

Após duas horas e meia de busca, desistimos e retornamos para a sede da fazenda. Mal chegamos e caiu uma chuvarada que durou a tarde inteira. De noite, convoquei mais vaqueiros para ajudar e na manhã seguinte, dia 2 de janeiro, retornamos ao local. Éramos agora oito pessoas revirando a área já pisoteada do dia anterior. Alguns diziam que o colar estava embaixo do capim. Um vaqueiro, conhecido como Índio, por ser descendente de indígenas da região pantaneira, tomou um caminho diferente, seguindo uma trilha paralela ao local onde estávamos. Eu com o receptor apontado para o chão, usando todas as artimanhas tecnológicas tentando encontrar o rumo e Índio seguindo os sinais que só ele sabia enxergar. Quando o sinal estava no máximo, escutei o chamado do Índio, a uns três metros de onde eu estava, mas com uma barreira de capim entre nós dois. Sorridente, ele anunciou “Achei a coleira, Fernando”. Todos comemoraram e pedi que não mexessem no equipamento. Primeiro registrei com fotos toda a situação e, depois, já com o colar na mão vi que o mecanismo de drop-off do colar havia soltado o colar.

O drop-off é um sistema eletrônico de segurança, que conecta as extremidades da coleira através de encaixes controlados eletronicamente, e que permite a programação prévia de uma data em que o colar se solta automaticamente, para permitir a sua recuperação. Desta forma, é possível recuperar também os dados armazenados no colar, caso a sua retransmissão via satélite tenha falhado. Assim, o equipamento pode ter a bateria trocada e ser utilizado novamente. O drop-off é um elemento importante também por permitir mais segurança no monitoramento de animais subadultos, cujo crescimento, principalmente da musculatura do pescoço, pode implicar em um desconforto causado pela coleira. Além da programação prévia para soltura, o mecanismo possui um sensor de pressão, que quando tensionado se abre automaticamente e evita que o animal se sufoque ou fique preso pelo colar. Como a data que haviamos programado estava longe, é provável que tenha ocorrido a segunda possibilidade, em que o sensor de pressão foi acionado e liberou automaticamente o colar.

Na minha cabeça, eu tentava juntar as peças do quebra-cabeça. Nunca saberemos com certeza, mas as informações coletadas no local mostravam sinais da presença de mais de uma onça, O colar encontrado tinha um corte, o que permite especular que Soneca, pela sua pouca idade e posição social, estava a procura de um território disponível na matriz social da população local de onças, e entrou em confronto com algum outro animal, o que disparou o drop-off. Este foi o ultimo registro que tivemos de Soneca. Nunca mais ele foi visto na fazenda ou apareceu nas fotos das armadilhas fotográficas. Ele certamente se mudou para outra área, e esperamos que ele tenha conseguido conquistar um território. De qualquer forma, foi um privilégio tê-lo acompanhado e aprender com ele nestes breves 80 dias. Com a missão cumprida, no dia 04 eu e Juliana retornamos a Cuiabá. As informações coletadas se transformaram em relatórios e, assim, se iniciou mais um ano de trabalho com as onças no Pantanal. O réveillon na praia com a família, em Florianópolis ficou protelado para 2011.

 

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  • Fernando Tortato

    Mestre e PhD em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela UFMT, com Doutorado sanduíche pela University of East Anglia, Inglaterra.

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