Análises

Proteção integral não teve destaque no congresso da IUCN

Uso sustentável ajuda mas, para proteger espécies ameaçadas, as áreas protegidas efetivas são aquelas em que só os animais e as plantas têm vez.

Silvana Campello ·
9 de dezembro de 2014 · 10 anos atrás

Congresso Mundial de Parques da IUCN, em Sydney. Foto:
Congresso Mundial de Parques da IUCN, em Sydney. Foto:

No livro Soldiers of the Great War, Denis Winter nos conta que o soldado inglês F. Manning escreveu o seguinte relato na Iª guerra mundial: “os homens pareciam bonecos, tão triviais e ineficientes diante do bombardeio esmagador e, ainda assim, moviam-­se à frente mecanicamente, como se hipnotizados por uma força maior.” Pode parecer exagero, mas foi com esse espírito que decidi ir ao Congresso Mundial de Parques da UICN em Sidney, Austrália. Eu já sabia, e muitos me alertaram, que a batalha estaria perdida para mim, que iria fazer uma apresentação em favor da criação de Unidades de Conservação (UCs) de proteção integral (UICN categorias 1 e 2), em um universo que prioriza áreas de uso sustentável (UICN categoria 6).

“Pouco se falou do dado (…) da Sociedade Zoológica de Londres, de que 56% das espécies terrestres declinaram nos últimos 40 anos, e, das aquáticas, assustadores 76%.”

Dos sete temas do congresso (Alcance dos Objetivos de Conservação; Resposta a Mudanças Climáticas; Melhora da saúde e do Bem-Estar; Reconciliando os Desafios do Desenvolvimento; Ampliando Diversidade e a Qualidade de Governança; Respeito a Culturas Indígenas e Sabedorias Tradicionais; e Inspiração para Novas Gerações) somente dois trataram de assuntos relativos à biodiversidade diretamente, os outros cinco de assuntos prioritariamente sociais.

Em meio ao tumulto de gente se entreolhando à altura do umbigo (o colar dos crachás era muito longo), povos indígenas cantavam, dançavam e batiam seus tambores clamando seus direitos ao uso de recursos naturais dentro de unidades de conservação, e obtendo as solicitadas deferências. Pouco se falou do dado estarrecedor recentemente publicado na revista Science, demonstrando um processo de extinção em massa no planeta, ou o dado da Sociedade Zoológica de Londres, de que 56% das espécies terrestres declinaram nos últimos 40 anos, e, das aquáticas, assustadores 76%.

Na questão das áreas protegidas, foi dada ênfase ao alcance das metas estabelecidas pela Convenção da Diversidade Biológica para 2020, as chamadas Metas de Aichi, cujo item 11 estabelece que, até 2020, 17% de todas as áreas terrestres e 10% de todas as áreas marinhas e costeiras dos países integrantes das Nações Unidas devam estar conservadas por meio de um sistema de áreas protegidas “bem mantidas, bem manejadas, representativas ecologicamente e bem conectadas”.

Segundo o texto da Aichi, além de áreas de proteção integral, as áreas de uso sustentável podem contar para o percentual estabelecido, desde que contribuam para uma eficiente conservação de espécies. Aí mora o problema.

No Brasil, até 1989 61% das áreas protegidas eram de proteção integral, e 39% de uso sustentável. Após o assassinato de Chico Mendes, as primeiras reservas extrativistas foram criadas, gerando uma reversão que mudou o foco de parques para proteção de espécies para reservas em benefício das populações locais. Hoje, 61% das áreas protegidas no Brasil são de uso sustentável, e 39% de proteção integral.

John Terborgh e Marc Dourojeanni já demonstraram que quando as populações indígenas dentro de parques nacionais ingressam em uma economia de mercado moderna suas demandas por recursos aumentam, causando a perda da vida selvagem. Além deles, um estudo em 292 áreas protegidas realizado na Amazônia Brasileira indica que UCs de proteção integral são mais eficientes do que UCs de uso sustentável para impedir o desmatamento.

A Ilha do Bananal, na bacia do Rio Araguaia, onde trabalho, é um mosaico de áreas protegidas que inclui reservas indígenas, áreas de uso sustentável e dois parques de proteção integral. Todos os anos longas extensões dessa área selvagem são incineradas pelo fogo, quer seja para pastoreio, caça, agricultura ou, simplesmente, algum pescador descuidado. Dessa área de 2 milhões de hectares, somente as partes remotas do Parque Estadual do Cantão permanecem intactas, porque no Cantão as únicas atividades são o ecoturismo nas áreas designadas e pesquisas com métodos não intrusivos.

A lista de carnívoros ameaçados do Livro Vermelho da UICN confirma essa tendência: conflitos com humanos são a principal ameaça a 5 entre 5 espécies de canídeos, e 6 dentre 7 espécies de felinos.

E o problema não é apenas nos países menos desenvolvidos: na Alemanha e na França, por exemplo, conservacionistas anunciam que o retorno dos lobos e dos ursos é recebido com hostilidade. E não há áreas protegidas grandes o suficiente para que esses animais vivam sem ter contato com pessoas.

“… isoladamente, elas [áreas de uso sustentável] não podem garantir a integridade da biodiversidade, dos processos ecológicos e muito menos garantir a sobrevivência das espécies”

 

Nos Estados Unidos, os parques nacionais não são grandes o suficiente para suportar populações viáveis de lobos, e as tentativas de reintroduzi-los em áreas de uso sustentável e florestas nacionais induziu o governo Americano a retirar o lobo da lista de espécies ameaçadas, para que possam ser caçados. Na África, estudos no Serengueti provam que os elefantes africanos preferem viver dentro dos parques, e ficam estressados quando penetram dentro de áreas de uso sustentável do entorno. Usando colares de radio, cientistas provaram que até as grandes migrações de gnu são alteradas nessas áreas.

Em artigo recente de ((o))eco, li que na Ásia, as zonas de guerra desmilitarizadas e despovoadas são os últimos grandes refúgios para animais ameaçados. È estarrecedor pensar que até mesmo um campo minado oferece maior proteção a um animal do que qualquer área onde pessoas tem acesso. Talvez o exemplo mais contundente seja aquele da área despovoada ao redor de Chernobyl, onde os últimos remanescentes dos criticamente ameaçados cavalos selvagens de przewalski foram introduzidos, com sua população se recuperando desde então.

O fato é que pessoas e vida selvagem não formam bons vizinhos: quem quer ver seus filhos nadando em um rio repleto de jacarés‐açú? Por que os camponeses de países pobres devem tolerar conviver com animais que destroem suas lavouras, quando até mesmo em países desenvolvidos, com variados esquemas de compensação, ainda se protesta contra lobos e ursos?

Digo e repito: áreas de uso sustentável são importantes como zonas de entorno, elos em corredores biológicos e elementos de um mosaico de áreas protegidas. Porém, isoladamente, elas não podem garantir a integridade da biodiversidade, dos processos ecológicos e muito menos garantir a sobrevivência das espécies.

Para que possamos de fato atingir as tais metas do Aichi 11, temos de voltar a focar nossos esforços de conservação em unidades de conservação de proteção integral: áreas bem manejadas e implantadas com o objetivo primordial de proteger animais e plantas.

“…não passou desapercebida a total obscuridade da representação oficial das áreas protegidas brasileiras no congresso.”

Dos que defendem que unidades de conservação têm de gerar benefícios diretos (leia‐se, financeiros) aos povos locais, ouvi no congresso a velha história de que parques são somente pontinhos verdes isolados no mapa. Mas se as áreas de uso sustentável fossem bolinhas azuis, o certo mesmo seria manter muitos pontos verdes, e todo o restante do mapa ser colorido de azul.

Por fim, não passou desapercebida a total obscuridade da representação oficial das áreas protegidas brasileiras no congresso. Houve vários encontros entre brasileiros, fora das vias oficiais. Nesses, a maioria dos presentes eram jovens técnicos pagando a participação do próprio bolso. Em um desses encontros ouvi de uma muito jovem representante do MMA, questionada em como o Brasil atingiria as metas da Aichi, a possibilidade da inclusão de reservas indígenas e de reservas legais.

Do lado positivo, foi lançado um programa internacional chamado “Alliance for Zero Extinction” do qual importantes ONGs fazem parte, e que luta pela natureza intacta. E um grande evento regado a vinho e canapés, chamado “Nature Needs Half“, que contesta os percentuais de 17%‐10% das metas Aichi, em favor de uma meta de 50%. Sem mencionar como atingi-­‐la em um mundo em que breve seremos 10 bilhões de pessoas.

Vim, vi e não sei se venci. Como um soldado da primeira guerra, nadando em charcos de sangue, lançei minha última bomba. Posso não ter feito diferença, mas lavei a alma.

 

*Silvana Campello é presidente do Instituto Araguaia de Proteção Ambiental. Membro da Comissão Mundial de Parques e Comissão de Sobrevivência das Espécies, UICN.

 

 

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  • Silvana Campello

    Presidente do Instituto Araguaia de Proteção Ambiental e membro da Comissão Mundial de Parques e Comissão de Sobrevivência da...

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