Reportagens

O Poema Imperfeito – com Fernando Fernandez

Se você nunca conseguiu atravessar a primeira página de um livro sobre meio ambiente, tente “O Poema Imperfeito”. Em suas 257 páginas de...

Marcos Sá Corrêa ·
4 de agosto de 2004 · 20 anos atrás

Em compensação, ela não poupa argumentos. Para mostrar como funciona a seleção natural, Fernandez deu a um computador a tarefa de escrever, mexendo a esmo nas letras do alfabeto, um verso inteiro de “The dark side of the moon”, de Pink Floyd. Imitando a natureza, com mudanças aleatórias filtradas pela aprovação automática dos acertos, a máquina chegou lá em 137 tentativas. Por que Pink Floyd? “Porque adoro o disco”, diz ele. Nesta entrevista a O Eco, Fernandez explica o resto do livro:

Por que Poema Imperfeito?

Fernando Fernandez – Como eu fui logo avisando na introdução do livro, espero não ter enganado nenhum leitor com esse título que, por sinal, enganou pelo menos um livreiro. Soube que numa livraria ele foi parar por engano na estante de poesia. O livro pode ser imperfeito, mas não é um poema. O título, que peguei emprestado, é do escritor americano Henry Thoreau, que já se queixava no fim do século XIX de ter herdado de seus antepassados um mundo empobrecido. O poema de que Thoreau falava era a própria natureza. Ele fez tudo na vida para conhecer a natureza como um poema completo, mas não conseguiu, porque só tinha diante dos olhos uma cópia mutilada, imperfeita. E era assim que eu me sentia, quando escrevi o primeiro capítulo do livro em 1997, sobre as grandes extinções pré-históricas, que foram obra do homem. Essa descoberta me deu muita vontade de dizer que vivemos num mundo onde o homem já acabou com a maioria das espécies de grande porte. Houve bichos maravilhosos, que adoraria conhecer, mas nunca tive nem terei essa chance, porque eles foram caçados até desaparecer da superfície do planeta definitivamente.

E quem o convenceu? Thoreau?

Fernando Fernandez – Não. Foi um livro muito bom, do americano Jared Diamond, que infelizmente ainda não foi traduzido para o português. Chama-se “The Third Chimpanzee”. Quer dizer: “O Terceiro Chimpanzé”. Diamond, um grande geógrafo e fisiologista, fez outro livro extraordinário – “ Armas, Germes e Aço”. Esse, felizmente, já publicado no Brasil. Diamond foi um importante popularizador dessas idéias. Mas o conceito original nem é dele, é de Paul Martin e Richard Klein, dois paleontólogos que escreveram juntos “Quaternary Extinctions, a pre-historic revolution”, sobre as extinções do período quaternário. Com eles comecei a me informar sobre este assunto. E acabei muito mexido por essas idéias. Na ocasião em que fiz o tal capítulo nem estava pensando em publicar um livro. Só queria desabafar: “Caramba, olha aqui, isso é fantástico!”. Isso foi três anos antes de lançar “O Poema Imperfeito”. O capítulo ficou muito tempo na gaveta.

Foi assim que passou a se preocupar com a conservação da natureza?

Fernando Fernandez – Não. Eu diria que tenho há muito tempo um pé institucional nessas questões. Sou professor de Biologia da Conservação. E estou cada vez mais me especializando na aplicação dos princípios biológicos à conservação da natureza. Trabalhei em projetos ambientais apoiados pela Fundação O Boticário – que, por sinal, publicou o livro.

Ele não contraria a idéia de que as culturas primitivas são naturalmente ecológicas?

Fernando Fernandez – Contraria, sim. Mas, quando escrevi aquilo, essa idéia não estava tão na moda como hoje. Ou, se estava, não percebi. Queria só entender e explicar por que tantos animais se extinguiram no Pleistoceno, um período geológico recente, que terminou há apenas oito mil anos. Tudo leva a crer que essas extinções foram causadas pelo homem, à medida em que ia se espalhando pela Terra. Porque se trata de extinções assincrônicas. Ou seja: elas ocorreram em tempos e lugares diferentes, sem relação evidente com períodos de mudança climática. Aconteceram antes do advento da agricultura. E têm uma correspondência muito forte com a chegada do homem a novos continentes.

E ele tinha recursos para isso?

Fernando Fernandez – Sei que é difícil imaginar hoje como as pessoas puderam matar, com instrumentos rudimentares, aqueles bichos enormes, até levá-los à extinção. Povos primitivos, com tecnologia neolítica, caçam animais de grande porte até hoje. E aqueles bichos eram a principal fonte de comida que eles tinham. A agricultura foi inventada depois que a caça barata e abundante começou a escassear. O problema é que choca as pessoas ouvir que nossos ancestrais mais remotos não conservaram a natureza. Aliás, eles mudaram tanta coisa que, a rigor, nós jamais saberemos o que seja realmente uma natureza intacta. Já recebemos um planeta muito alterado. Por causa desses antecedentes, não acredito que certas populações humanas, por serem tradicionais, vivam em harmonia com a natureza.

Nem os povos pré-colombianos, que impressionaram os primeiros europeus exatamente por isso?

Fernando Fernandez – No Novo México há um caso extraordinário. Quando os espanhóis chegaram à região, descobriram construções gigantescas no meio do deserto. Elas ainda estão lá. São as maiores estruturas construídas pelo homem na antigüidade. Parecem morros esburacados. Mas esses morros eram prédios gigantescos, que ficaram conhecidos como pueblos. Em volta dos pueblos viviam os Navajo, uma tribo moderna. Mas não foram eles que fizeram os pueblos. Já os encontraram no deserto, construídos com centenas de milhares de troncos de uma árvore, a conífera chamada Ponderosa Pine. E essas árvores só existem a centenas de quilômetros dos pueblos, o que deixou os espanhóis de queixo caído. Como aqueles povos antigos, no meio de lugar nenhum, sem nada para cultivar nem para caçar, sem conhecer a roda e o cavalo, traziam do norte aqueles troncos?

Sei lá.

Fernando Fernandez – O mistério ficou sem resposta até que lá pela década de 1950, quando a Paleopolinologia – ou seja, o estudo dos pólens fósseis – permitiu reconstituir a seqüência de mudança daquele ambiente. Aí se descobriu que, há cerca de mil anos, aquele deserto era uma floresta de Ponderosa Pine, uma exuberante floresta temperada úmida. Chaco Canyon é o maior desses conjuntos de edifícios pré-colombianos. Compõe-se de nove pueblos. O maior deles tem 200 metros de comprimento, 90 de largura, cinco andares. Era uma habitação comunal para mais de três mil pessoas. E quando a Paleopolinologia descobriu que a floresta ficava ali mesmo, concluiu-se que aqueles antigos habitantes, que só são conhecidos como Anasazi, nome que significa “os antigos” na língua dos Navajo, tinham usado aquela floresta até a exaustão, usando a madeira como combustível e na construção dos pueblos. Ou seja: eles é que tinham criado aquele deserto. Ninguém sabe o que aconteceu com os Anasazi. Aparentemente, foi uma civilização que se auto-extinguiu, ao alterar radicalmente o meio em que vivia. Foi destruída pelo colapso ambiental que ela mesma provocou. E isso muito antes que os europeus pusessem os pés na América.

Os Anasazi não seriam uma exceção dramática?

Fernando Fernandez – Não. A história dos Anasazi está longe de ser única. Isso também aconteceu na Ilha de Páscoa, no Oriente Médio, onde ficava o Crescente Fértil, na Austrália, em muitos lugares. A Austrália é um exemplo espantoso de extinção primitiva. Toda a megafauna daquele continente desapareceu entre 42 e 43 mil anos atrás. E o homem, tataravô dos aborígenes australianos, chegou lá cerca de 48 mil anos atrás. Foi só o tempo de chegar, se espalhar e acabar com a bicharada. A Austrália foi o continente que perdeu a maior proporção de sua megafauna. Perdeu mais de 85% do que tinha.

E o que diz dessas histórias a ala do desenvolvimento sustentável?

Fernando Fernandez – É engraçado. Existe uma barreira muito grande para admitir essas coisas. Uma vez discuti isso com um amigo meu, um paleontólogo muito tradicionalista, que se opõe a essa história toda das extinções do Pleistoceno. No fim, ainda não convencido, mas já sem outros argumentos, ele me disse o seguinte: “O homem não pode ser o erro de Deus”. Ou seja: nós não fizemos aquilo simplesmente porque não poderíamos ter feito aquilo. Ponto.

E esse argumento não vale?

Fernando Fernandez – Para mim, não. Não tenho uma visão religiosa desses assuntos. Para mim, o homem evoluiu dentro de um processo natural, como todas as espécies biológicas, e somos animais, embora sejamos animais muito particulares. Anatomicamente, continuamos mais próximos do macaco do que pensamos. Noventa e oito vírgula quatro por cento dos genes humanos são idênticos aos dos chimpanzés. Como disse Diamond, com base nessas evidências, só mesmo um taxonomista da espécie humana poderia ter colocado o Homo sapiens em outro gênero que o dos chimpanzés.

E toda a evolução que os separa, ela não conta?

Fernando Fernandez – A palavra “evolução” é em si mesma antropocêntrica. E meio enganosa. Foi tirada da Embriologia e pressupõe que as coisas estão sempre se aperfeiçoando, quando na realidade a evolução biológica é basicamente um processo de mudança. Pensando bem, qualquer bactéria que viva hoje se originou dos mesmos ancestrais comuns e nos mesmos 3,5 bilhões de anos atrás. A história evolutiva dela é tão antiga quanto a nossa. Apenas tomou um caminho diferente. Qualquer bactéria que esteja por aí atualmente é uma espécie vitoriosa, tão evoluída quanto nós. E elas dominam o planeta muito mais do que a gente. O próprio Darwin, pai do evolucionismo, preferia usar a expressão “descendência com modificação”, que não pegou. Não pegou porque evolução agrada mais aos nossos ouvidos. Sugere que a natureza evoluiu até chegar ao homem, o que é uma noção completamente torta da teoria de Darwin.

É o que os ambientalistas pensam hoje?

Fernando Fernandez – Não. Isso é o que a ciência sabe hoje. Esses estudos são independentes do ambientalismo. Os trabalhos de Paleopolinologia, ou do Paul Martin, que eu saiba, não tinham qualquer conexão com o movimento ambiental. As idéias do Martin são de 1969. A Paleopolinologia, da década de 1950. São simplesmente constatações científicas. Como acontece com qualquer ciência, essas idéias podem estar erradas. Mas tudo o que se sabe hoje torna muito implausível a hipótese de que catástrofes climáticas tenham varrido da terra a fauna pré-histórica. Não se trata de verdades inatacáveis. Mas, por enquanto, não temos nada melhor para usar.

É fácil dizer isso em sala de aula?

Fernando Fernandez – As idéias opostas são muito mais confortáveis e simpáticas. Mas tenho visto que essas idéias vão aos poucos despertando mais interesse nas salas de aula, embora continuem envoltas em muita paixão. As pessoas acham que têm de ser a favor ou contra o que, no fundo, não passa de um ponto de vista bastante neutro.

O livro está vendendo?

Fernando Fernandez – Para minha surpresa, sim. Eu mesmo não acreditava que ele um dia passasse da primeira edição. Nunca foi lançado. Simplesmente, saiu. Foi ignorado por todos os suplementos literários. E mesmo assim está fazendo uma discreta carreira no boca a boca. Agora mesmo fui convidado para dar uma palestra sobre o assunto no Rio Grande do Sul num seminário sobre o tempo…

Sobre o clima?

Fernando Fernandez – Não. O tempo mesmo. Os outros participantes do encontro são físicos e filósofos. Estarão reunidos para discutir o tempo. E me convidaram a falar. Querem ver o tempo pela perspectiva biológica, onde há coisas que não vemos, porque ocorrem numa escala de tempo muito maior do que a nossa. A reação mais curiosa que o livro provocou até agora foi num congresso sobre unidades de conservação em Campo Grande. Eu falei entre uma palestra do almirante Ibsen Gusmão Câmara, sobre as extinções históricas, e a de um psicólogo, que deveria falar sobre a perda de sintonia entre o homem e o ambiente. Mas, depois de me ouvir, ele me encontrou num corredor disse que eu tinha estragado a sua noite. Por quê? “Porque terei que preparar outra palestra durante a madrugada”. Toda a apresentação dele partia do pressuposto de que o homem viveu em paz com a natureza até uns 50 ou 100 anos atrás. Isso mostra como essas coisas vão contra certas crenças muito caras à nossa cultura.

Índio destrói floresta?

Fernando Fernandez – Sobre isso, vejo as coisas da seguinte forma. No passado, houve grandes extinções que acabaram com as espécies mais fáceis de tirar da face da Terra. É claro que muita gente não imagina que as espécies mais fáceis de extinguir são os bichos grandes. Exatamente por serem maiores, menos numerosos e terem menor potencial reprodutivo para repor as perdas. Isso feito, as sociedades indígenas aparentemente adquiriram um certo equilíbrio, num novo patamar, mais baixo, em que aprenderam a conviver com a fauna mais difícil de extinguir e essa fauna, por sua vez, também aprendeu a conviver com elas. Por exemplo, os bichos de médio porte, como queixadas, caititus e pacas, as antas, que não são de médio porte, mas são extremamente tímidas e ariscas, e têm hábitos notívagos. Mas isso só poderia funcionar com índios que mantivessem uma densidade populacional baixa, caçando com arco e flecha ou lança, e só para sobreviver. Ou seja, em áreas onde os índios mantivessem suas densidades demográficas de antigamente e a mesma cultura de coleta, sem estar voltados para uma economia de mercado. Aí, sim, provavelmente seria possível manter as coisas no patamar a que chegaram. Mas o que há é uma situação completamente diferente. No momento em que o índio, em reservas com densidades muito mais altas, caçando com armas de fogo, e caçando para vender ou até exportar um artesanato feito com penas, dentes, unhas e couro de animais selvagens, como acontece com os Caiapó – em resumo, quando você insere o indígena na sociedade capitalista e as onças são caçadas para fazer artesanato, aí não tenho a menor ilusão de que isso seja sustentável. Não deve haver a menor esperança de que seja.

O que torna tudo mais difícil, não?

Fernando Fernandez – É, essa não é uma questão muito simples. Eu acho que se você quiser mesmo ter conservação, acabará chegando a escolhas muito radicais. A própria idéia de crescimento econômico contínuo teria que ser revista. Se um dia a Índia e a China chegarem ao patamar econômico dos Estados Unidos, não haverá planeta que nos sustente. Talvez tenhamos que chegar a uma sociedade que aceite viver sem crescimento econômico e populacional sem fim. Uma sociedade em que o principal objetivo das pessoas não seja o desenvolvimento, mas a qualidade de vida. Onde a principal maneira de resolver os problemas sociais seja diminuir as desigualdades, em vez de esperar, como esperamos há tantos anos, que o bolo cresça para todo mundo ter seu pedaço. Mas é óbvio que tudo isso é muito difícil de acontecer. É mais fácil de falar que de fazer.

Por que seu livro passa tão longe de Gaia, a Deusa Terra de James Lovelock?

Fernando Fernandez – A hipótese de Gaia, embora as pessoas em geral não percebam, tem uma lógica oposta à do darwinismo ou melhor, da teoria sintética da evolução. Gaia parte do princípio de que o planeta se adapta à vida. E a evolução mostra como a vida se adapta ao planeta. E o darwinismo tem explicações muito mais convincentes sobre a maneira como essas coisas acontecem, etapa por etapa. É tão mais improvável que a lógica de Gaia seja verdadeira do que a lógica do darwinismo que, a meu ver, Gaia convence muita gente não pela força, mas pela fragilidade de seus argumentos. Ela diz uma coisa que as pessoas querem ouvir. Tem uma lógica quase religiosa. Um motivo superior qualquer, meio inescrutável, que nos diz para tratar bem a natureza porque ela está aqui para cuidar de nós…

E se esse argumento não serve, qual deveria servir?

Fernando Fernandez – Eu acho que temos que cuidar muito bem do planeta simplesmente porque os fatos reais já nos deveriam convencer de que estragá-lo é um erro desastroso. Eu, como biólogo, prefiro acreditar que todos os bichos têm direito à vida. A espécie humana e todos os outros seres vivos. Para mim, a melhor maneira de conservar é gostar de bichos. Sentir esse contato da mesma forma como sentimos a convivência com outras pessoas. Ser capaz de enxergar o bichos como outras criaturas que também estão dividindo o planeta. Ter o impulso básico de tentar compreendê-los. Saber que neles há emoções, conhecimentos menos complexos do que os nossos, mas que certamente são produtos de uma experiência única e respeitável. Em suma, que nos bichos há uma vida. Sei que é otimista demais esperar que a maioria dos habitantes humanos do planeta vá se interessar por isso de uma hora para outra. Por isso, o remédio é sensibilizar cada vez mais pessoas a pensar mais em sua própria qualidade de vida, o que também implica a conservação da natureza.

Por quê?

Fernando Fernandez – Poucos anos atrás, ainda se via de maneira quase pejorativa o fato de um país ter muitas áreas verdes. Era sinal de atraso. Não utilizar a maior percentagem possível dos matos, das águas, dos bichos e das plantas era índice de fracasso na política de desenvolvimento. E daí? Com isso fizemos um mundo mais agradável, ou melhor? Eu sei que o índice de felicidade é muito mais difícil de medir do que o PIB. Mas o PIB também é muito difícil de medir. Não sei se seus PIB são mais confiáveis do que as sensações de felicidade coletiva que os ecologistas usam como índice. Existem trabalhos de cientistas sociais em que se pergunta o grau de percepção a felicidade que têm os habitantes de vários países. Se não me engano, numa das últimas pesquisas dessas, o país onde as pessoas se diziam mais felizes era a Nigéria. No entanto, nenhum país do mundo que ser a Nigéria. Uma frase muito importante para mim é a do filósofo Bertrand Russel. De todas as qualidades morais da humanidade, a mais difícil de achar e a que mais falta faz é a boa índole, e ela vem de uma vida de paz e tranqüilidade, não de uma vida de competição feroz. Nós estamos criando uma sociedade muito feroz.

Seu caminho até a Biologia e da Biologia à conservação foi uma linha reta?

Fernando Fernandez – Que nada. Vim mudando de ramo. Gostava muito de bichos, quando era menino. Fiz um museuzinho de zoologia junto com meu irmão na minha casa, quando tinha 10 anos. Era aquela bobagem, um monte de bichos dentro do álcool. Minha família tinha uma casa em Teresópolis, com um quintal grande e um morro atrás, que na época ainda era coberto pelo mato. Nós pegávamos aranhas, cobras, todo tipo de inseto. Na verdade não sabíamos nada de nada. Mas pegávamos. E eu gostava de ler sobre bichos. Minha mãe era professora de ensino médio e nos estimulava muito por esse lado. Quando chegou a época do vestibular, pensei em fazer Biologia ou História, mas me convenceram de que essas coisas não davam dinheiro. Então, fui fazer Engenharia. No meio da faculdade, já tinha aprendido pelo menos uma coisa: que não queria mesmo ser engenheiro. Mudei para Oceanografia. No meio do curso, descobri que era o estudo dos bichos o que me interessava mesmo na Oceanografia. E assim cheguei à Biologia.

Sem ter o mato no fundo de casa, seria Biólogo?

Fernando Fernandez – Não sei. E isso é preocupante, porque eu acho que as pessoas aprendem a gostar dos bichos em contato com eles. O que está ficando cada vez mais difícil. Partindo do pressuposto em que acredito – ou seja: que, fazendo o bem para a natureza, você fará o bem para a qualidade de vida das pessoas – é bom para a sociedade que as pessoas aprendam a gostar de bicho. Mas cada vez elas terão menos oportunidade de viver essa experiência. Nossas matas estão cada vez mais vazias. Têm cada vez menos pássaros cantando, cada vez menos bichos para ver. Aliás, os bichos fáceis de ver são os que não existem mais, os grandes, pesados. Exatamente por serem fáceis de ver, nós acabamos com eles. Sobraram os animais muito arredios.

Mesmo para um biólogo?

Fernando Fernandez – Eu trabalho na mata atlântica desde 1982 e nunca vi um felino em trabalho de campo. Nenhum. Agora, em 2002, indo ao Pantanal, avistei o primeiro tamanduá bandeira que vi em toda a minha vida. Encontrei os primeiros queixadas, as primeiras antas. Quando se vai a um lugar onde ainda há bichos de certo porte, sem dúvida conseguimos vê-los. E então você se dá conta do quanto se anda, e anda, e anda na mata atlântica, sem ver nada.

Não terá sido sempre assim?

Fernando Fernandez – Que nada. Nós é que selecionamos na mata atlântica as espécies mais ariscas, que se protegem melhor. Feito isso, provavelmente, ainda conseguimos dentro de cada uma dessas espécies selecionar o comportamento mais arisco. Então, a natureza que sobra é esta que está aí. A natureza antrópica. Da mata atlântica só restam pequenos fragmentos, onde vivem comunidades muito desfalcadas de bichos de grande porte. Um retalho pequeno de mata atlântica, de mil hectares, não tem quase nada. É um fragmento, como dizemos no nosso jargão acadêmico, defaunado. Acampei no Parque Nacional do Itatiaia muito tempo atrás, em 1982. E vi uma toca monstruosa de tatu. Pelo tamanho, só podia ser de tatu canastra. E 1982, como eu viria a saber muito tempo depois, foi o ano em que se avistou o último tatu canastra no Parque Nacional do Itatiaia. Será que eu vi a toca do último tatu-canastra, uma espécie que se considera extinta em todo o estado do Rio de Janeiro? Pode ser. É uma pergunta que me perturba. Na área em que trabalho, o Poço das Antas, a não tem mais queixada, que é o porco do mato grande. Só tem caititu, que é o porco pequeno. E anta não tem mais há muito tempo.

O que todo mundo deveria ler para saber o be-a-bá da conservação?

Fernando Fernandez – Em primeiro lugar, os livros que vejam esse assunto da perspectiva histórica. Antes de mais nada, Jared Diamond. “Armas, Germes e Aço”, que já foi lançado em português. E, em inglês, “The Third Chimpanzee”. Para ler sobre evolução, os livros de Stephen Jay Gould são imbatíveis e ele tem muitas coisas maravilhosas publicadas em português. Gould escrevia brilhantemente. E “O Bico do Tentilhão”, de Jonathan Weiner. Sem falar em Richard Dalkins. “O Imperialismo Ecológico”, de Alfred Crosby, dá uma idéia muito interessante de como os ambientes são transformados pela introdução de espécies exóticas ou invasoras. Também não custa conhecer as pesquisas produzidas pela comunidade científica brasileira. Há trabalhos muito bons sobre sustentabilidade. Por exemplo, estudos sobre efeitos da caça em assentamentos vizinhos de florestas, que raramente são levados em conta quando se fala em reservas extrativistas e coisas do gênero. Seria importante fazer uma ponte entre o público em geral e a ecologia acadêmica, porque muitas vezes se discutem coisas sobre conservação sem levar em conta o que já se sabe sobre o assunto, como se tudo fosse só uma questão de escolha e ponto de vista. E há um livro que todo brasileiro deveria ler. É “A Ferro e Fogo”, de Warren Dean, sobre os 500 anos de destruição da mata atlântica. Sem ele, não dá para entender o país.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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Comentários 3

  1. humberto firmo diz:

    comprei o atual: O caso dos mastodontes de barriga cheia.


  2. Ramon diz:

    Um expetacuular exemplo que precisamos continuar a evoluir nossa maneira de investigar a natureza.


  3. Laryssa Lima diz:

    Sou fã do Fernando!
    Ao ler o livro, me vi lendo grande parte dos meus próprios questionamentos. Meu pesar de ver roubado dos meus olhos grande parte da beleza do mundo!
    Obrigado pela entrevista!