A areia branca afoga meus pés descalços enquanto caminho pelas dunas de areia que me levam em direção ao mar e à praia da Joaquina. A manhã é ainda escura. As nuvens são pesadas e cinzas e o vento é frio como uma navalha sobre a jugular. É julho e meu destino é procurar por carcaças de aves jogadas à praia depois de três dias de intensos temporais e mar revolto. A praia da Joaquina na ilha de Santa Catarina é um local ideal para essa atividade, pois é longa e voltada diretamente para o oceano, cujas ondas fortes sempre trazem algo para estas areias douradas. Pode parecer um passeio mórbido para a maioria das pessoas, mas para o biólogo, encontrar carcaças de animais recém-mortos é a glória! A vida muitas vezes só pode ser entendida a partir da morte.
Chego finalmente à praia, sob um céu cinza chumbo. Contemplo o oceano de águas escuras e os enormes vagalhões que lançam sua espuma branca sobre a areia marrom escura. É o dia ideal.
Enquanto caminho no sentido sul me deparo com um campo de batalha; uma praia da Normandia no dia seguinte ao famoso 9 de junho de 1944. São milhares de objetos jogados pela areia ao longo de quilômetros: pedaços de cordas de navios, objetos amorfos de metal, galhos retorcidos grossos e finos, panos disformes, nacos de borracha, pedras, latinhas de cerveja, lascas de vidro, uma miríade de coisas não identificadas e, claro, muito plástico. Muito plástico. Garrafas pet, tampinhas, pulseiras, solas de chinelo, a alça de um telefone, caixas quebradas de diferentes tamanhos. Plástico, plástico e mais plástico. O planeta plástico.
Caminho por entre os objetos e finalmente encontro o primeiro tesouro. O corpo semi enterrado de um pinguim-de-magalhães. É sempre assim. No mês de julho as tempestades os trazem à praia, já moribundos ou mortos. Os pinguins-de-magalhães se reproduzem em Punta Tombo, uma reserva de fauna costeira na província de Chubut no sul da Argentina. São trazidos ao sul do Brasil pela corrente fria das Malvinas que se desloca do Oceano Antártico para o norte ao largo da costa.
O reconhecimento da carcaça é fácil. Minha trena de bolso me revela grosseiramente 70 centímetros de comprimento. As faixas negras ao longo do peito são inconfundíveis. Os braços rígidos e chatos, conhecidos como aletas, funcionam como suas asas para ‘voar’ dentro da água. Embora a estrutura da aleta de um pinguim seja muito semelhante às asas de aves que voam, os ossos são relativamente grandes, curtos e achatados. Isso resulta em uma pá rígida, com pouca mobilidade no cotovelo.
Continuo minha peregrinação em meio aos destroços. Caminho mais um quilômetro me arrojando contra o vento sul. Outro tesouro ornitológico se esboça à minha frente. Desta vez uma ave em estado avançado de putrefação. É com certeza um albatroz. Eu o reconheço pela longa envergadura das asas com quase dois metros. Mas a característica típica é a narina em forma tubular sobre a maxila superior do bico. Essa narina, além de estar associada com o sentido do olfato (para encontrar comida ou o ninho e reconhecer indivíduos), é a porta de saída do excesso de sal na dieta destas aves. Lulas e peixes constituem as mais importantes presas para albatrozes. Algumas espécies também comem carniça e matéria orgânica em decomposição que eles encontram flutuando na superfície do oceano. O sal destes alimentos é filtrado pelas ‘glândulas de sal’ que se encontram em depressões rasas acima das órbitas oculares e é excretado pelas narinas. As glândulas de sal tem uma micro-estrutura semelhante a um rim e usam um sistema de fluxo de sangue em contracorrente para remover os íons de sais da corrente sanguínea.
É um albatroz-de-sobrancelha (Thalassarche melanophris), o mais costeiro dos albatrozes. Ele aparece regularmente morto nestas areias da ilha depois de uma tempestade dessas. Tem o bico amarelo-laranja, a cabeça e pescoço todo branco e as penas das asas negras inclusive na parte debaixo. O albatroz-de-sobrancelha voa por vastas áreas dos oceanos do hemisfério Sul e nidifica em diversas ilhas subantárticas durante o verão austral.
Manipulo a carcaça do albatroz entre o turbilhão de lixo que me rodeia enquanto o vento continua soprando e levantando areia que se amalgama sobre minha pele, meus cabelos e minha sobrancelha. A paisagem é de desolamento, mas sei que em poucos anos essa cena será cada vez mais rara. Não pelo lixo, que se acumula cada vez mais no planeta, mas pelo albatroz, cujas carcaças se tornaram cada vez mais raras porque a cada dia que passa um grande número de albatrozes desaparece do planeta.
Os albatrozes estão entre as aves mais ameaçadas de extinção no planeta. Vários motivos os têm levado à morte antes mesmo de se reproduzirem. O primeiro problema é que um albatroz só atinge a maturidade sexual depois de seis ou sete anos, talvez mais, pois pouco se sabe sobre esse assunto. Quando se reproduzem criam apenas um filhote por ninhada. Isso significa que populações de albatrozes, caso diminuídas por qualquer distúrbio, levam muitos anos para voltarem a crescer.
O segundo problema é a pesca com espinhel. Todo ano, estima-se que entre 160 e 320 mil aves marinhas, a maioria albatrozes, morrem acidentalmente afogados pelos anzóis da pesca do espinhel1. O espinhel consiste de um cabo estendido por vários quilômetros ao qual são presos anzóis iscados com lula ou pequenos peixes. O espinhel pode ser demersal (quando o cabo afunda a mais de 700 m) ou pelágico (quando o cabo afunda por cerca de 50 m). O problema é que os albatrozes aprenderam a interagir com estes barcos pesqueiros, pois ali encontram alimento ‘fácil’, as iscas deixadas ao longo do espinhel, mas acabam sendo capturados inadvertidamente pelos anzóis. Assim, várias espécies de albatrozes (incluindo petréis) estão em franco declínio populacional. Estudos conduzidos no Oceano Índico mostraram um declínio de 100% da população do nosso albatroz-de-sobrancelha2. Um problema adicional é que os estoques de peixes, lulas e crustáceos estão sendo superexplorados em muitas áreas, e isso diminui as possibilidades destas aves de encontrarem alimento ‘naturalmente’, deixando-os ainda mais dependentes dos barcos pesqueiros. É um ciclo vicioso.
O terceiro problema é o plástico. Todo ano, centenas (talvez milhares) de filhotes de albatrozes morrem de indigestão causada pelo entupimento de seus esôfagos por lixo plástico. Artigos de plástico flutuando no oceano representam riscos para muitas espécies de aves marinhas que se alimentam deles. A ingestão de plásticos por aves marinhas é um fenômeno mundial e o número de espécies conhecidas que sofrem com isso tem aumentado significativamente nos últimos anos3. Durante a estação reprodutiva os adultos coletam esse material plástico e os levam aos seus filhotes ainda no ninho. Os papais e mamães albatrozes nutrem seus filhotes regurgitando esse ‘alimento’ dentro de suas enormes bocas. Ainda não sabemos se o plástico coletado pelo adulto é confundido com uma presa, ou se tem comida natural ligado a ele, ou se é consumido para ‘ajudar’ na digestão. A ingestão de plástico pelo filhote leva à obstrução mecânica do seu trato digestivo, à redução do consumo de alimentos, à saciedade da fome, e a uma possível exposição a compostos tóxicos. Enfim, a morte prematura.
O quarto problema são os predadores exóticos. Todo ano, milhares de ovos de albatrozes são devorados por animais (ratos, camundongos, gatos, cachorros, raposas, porcos) que foram introduzidos pelo homem de maneira acidental ou propositadamente nas mais distantes ilhas oceânicas onde estão as colônias reprodutivas da maioria dos albatrozes. Hoje sabemos que mais de 80% de todas as ilhas do planeta foram invadidas por ratos, e pelo menos 65 grandes grupos de ilhas também foram invadidas por gatos. Acontece que os albatrozes nidificam nestas ilhas e não são capazes de reconhecer esses animais exóticos como predadores. Para se ter uma noção, os ratos predam não só os seus ovos, mas também os filhotes e, mais do que tudo, os ratos devoram os adultos vivos enquanto esses estão chocando seus ovos. Em algumas ilhas do Oceano Pacífico, a taxa de predação sobre ovos de albatrozes chega a 100% de toda a população. Esse é um dos maiores fatores para o declínio de muitas espécies de aves marinhas, principalmente albatrozes4.
Para piorar as perspectivas de vida dos albatrozes, todo ano os oceanos sofrem um aumento do seu nível. Há a perspectiva de um aumento do nível do mar em 2100 de 0,5 a 1,4 metros acima do nível de 19905. É o efeito do aquecimento global. O planeta vai ficando mais quente e as calotas polares vão derretendo pouco a pouco, liberando mais água nos oceanos. Muitas colônias reprodutivas encontram-se em praias outrora isoladas. Tais praias serão afogadas pelas águas de um oceano cada vez mais cheio.
Volto para casa carregando parte dessas carcaças a fim de depositá-las como material testemunho em alguma coleção científica. No aconchego do lar calço meus chinelos de borracha e abro uma lata de cerveja. É hora do almoço. Retiro o macarrão da embalagem plástica e o coloco a ferver. Depois, abro uma lata com pedaços de atum e os misturo à massa recém-cozida al dente. Tempero tudo com azeite de oliva contido numa garrafa de vidro. Enquanto aprecio o espaguete, escrevo no diário com a caneta esferográfica.
Há algo de podre no ar. Sinto que não é apenas o aroma fétido das carcaças.
*Publicado originalmente no blog Vida das Aves
Saiba Mais
1Anderson, O.R.J. et al. 2011. Global seabird bycatch in longline fisheries. Endangered Species Research 14: 91–106.
2Olmos, F. et al. 2001. A pesca com espinhéis e a mortalidade de aves no Brasil. In: Ornitologia e conservação: da Ciência as Estratégias. Pp. 327-337. Sociedade Brasileira de Ornitologia.
3Bugoni, L. et. al. 2008. Seabird bycatch in the Brazilian pelagic longline fishery and a review of capture rates in the southwestern Atlantic Ocean. Marine Pollution Bulletin 5: 137-147 // Fry et al. 1987. Ingestion of Plastic Debris by Laysan Albatrosses and Wedge-tailed Shearwaters in the Hawaiian Islands. Marine Pollution Bulletin 18: 339-343.
4Courchamp, F. et al. 2003. Mammal invaders on islands: impact, control and control impact. Biological Review 78: 347-3483.
5Rahmstorf, S. 2007. A Semi-Empirical Approach to Projecting Future Sea-Level Rise. Science 315. DOI: 10.1126/science.1135456.
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