Análises

Uma história de adaptação, três perguntas e um desejo

No semiárido nordestino, a história de D. Lucia mostra que vontade, treinamento e equipamentos simples permitem se adaptar e resistir à seca.

Paula Ellinger ·
7 de julho de 2015 · 9 anos atrás

Cisterna calçadão do sitio Canga. Foto: André Nahur
Cisterna calçadão do sitio Canga. Foto: André Nahur

Adaptar. A espécie que se adapta, sobrevive, porque tem os recursos e as estratégias mais flexíveis para viver em condições alteradas.

Sempre achei adaptação uma palavra poderosa. Nos complexos debates sobre mudanças climáticas, é um termo singular, porque é intuitivo, se entende fácil, é língua de gente, e não de especialista. Para um futuro que será, no melhor dos cenários, 2°C mais quente e muito mais intenso em eventos climáticos extremos, a necessidade de adaptar é reconhecida sem muito blá-blá-blá. Mesmo assim, mesmo sendo um conceito tão próximo das coisas que posso entender, não havia sentido o pulso da adaptação com tanta força como no quintal da Dona Lucia, descendente de indígenas desterrados e filha do semi-árido.

Sou elite branca do sudeste do Brasil. Isso significa que nos poucos dias em que me faltou água na vida pude estocar garrafas compradas no supermercado da esquina sem apertar o orçamento. Significa também que, mesmo se a falta de água for pior no futuro, provavelmente ainda terei renda e redes para acessar uma solução.

No semi-árido do Nordeste brasileiro, uma das regiões mais desiguais do Brasil, onde a evaporação é três vezes maior que a média pluviométrica (200-800mm/ano) e onde a falta de água é de meses ou anos, as perspectivas são outras. No caminho para o sítio de Dona Lucia, o sítio Canga, passamos por terras secas, avermelhadas como se queimadas pelo Sol, com pouco pasto, menos vacas e várias plantações de cactos. Olhando pela janela do carro, lembrava da cifra que li em 2013 – a seca do ano anterior havia matado 24% do rebanho em Pernambuco e 28% na Paraíba, os homens estavam migrando para os centros urbanos e as mulheres ganhavam o estigma das ‘viúvas da seca’. Enquanto encaixava esses dados na legenda da paisagem, apareceu a prova de tudo – três gados mortos e uma dezena de urubus revoando os corpos. Acrescentei uma informação nova à minha legenda – a seca segue e a população de urubus cresceu.

Chegamos ao sítio Canga. A casinha no meio do terreno me lembrou a fazenda dos meus bisavôs, no interior do estado do Rio de Janeiro – galinhas, varanda cheia de vasos esverdeados e um canteiro plantado de vida ao redor dos 200 m2 da casa. Ali havia cores em nada parecidas com as cores dos filmes que retratam o sertão nordestino.

Dona Lucia nos recebeu sorridente e foi contando, cada vez mais expansiva, como mantinha tão verde as 482 espécies do seu sítio. Como a terra é muito seca, as plantas que ficam no solo e sob Sol forte não crescem nem com reza e rega diárias. Já as plantas em potes e vasos, florescem, porque os recipientes permitem maior retenção de água e porque estão em locais sombreados. Dona Lucia tem também alguns segredos tradicionais para deixar o solo rico e evitar pragas sem usar veneno, mas esses não posso contar por aqui. Posso só dizer que é coisa de gente sábia, que observa e entende a natureza.

Soluções

Repolho no quintal. Foto: André Nahur
Repolho no quintal. Foto: André Nahur
“Com a cisterna, veio a segurança hídrica e alimentar, o senso de comunidade, a cidadania e a autoestima. O marido começou uma capacitação técnica, virou construtor reconhecido de equipamento hídricos e aumentou a renda familiar.”

Mas, mesmo com todo o conhecimento tradicional disponível, nem um pé de repolho nasceria se não houvesse água. E por isso que só há pouco tempo Dona Lucia colhe tanto. Há dois anos, ela recebeu a segunda cisterna do seu terreno – uma cisterna calçadão. Este tipo de tecnologia social permite a captura de água da chuva (quando há) e armazenamento de até 52 mil litros em um equipamento que evita a evapotranspiração. A água desta cisterna é usada ao longo dos meses de seca para produção de alimentos, enquanto a água de uma cisterna menor, de 16 mil litros, é direcionada para uso doméstico. Ambas chegaram até Dona Lucia por meio do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), do Ministério do Desenvolvimento Social e da Articulação do Semi-Árido (ASA), e foram instaladas por mão-de-obra local. O programa promove capacitações, expansão do uso da tecnologia e, o mais importante, organização comunitária para gestão da água.

Dona Lucia é membro ativa da organização local e, com muita postura, contou sobre a liderança que exerce. Quase toda semana participa de reuniões e constantemente viaja em representação da Articulação do Semi-Árido (ASA). Mas não foi sempre assim. Antes ela e o marido viviam de cortar toco de madeira, em uma casa pequena e lutando pelo alimento na mesa. Com a cisterna, veio a segurança hídrica e alimentar, o senso de comunidade, a cidadania e a autoestima. O marido começou uma capacitação técnica, virou construtor reconhecido de equipamento hídricos e aumentou a renda familiar. Os dois conseguiram construir a casa do sítio Canga e mostram, com as cores do jardim, que são capazes de conviver dignamente com a seca.

Toda essa história escutei sentada a uma mesa cheia de bolos e sucos de frutas que Dona Lucia havia preparado com os insumos do quintal. Quando a conversa acabou e antes de que fossemos embora, nossa anfitriã fez um pedido – queria que assinássemos o livro de visitantes, onde ela espera registrar o nome de todos que passarem por ali para conhecer os milagres do semiárido.

Saí do Sitio Canga encantada. Tinha conhecido os olhos de quem se adapta. Pensei então nas viúvas do sertão e no resto das mulheres dos semi-áridos do mundo. Será que elas também vão ter acesso a meios, capacitação, organização e tecnologia para que se adaptem? E será que adaptação vai ser suficiente? Ou vamos, os não tão vulneráveis, seguir vivendo um estilo de vida intenso em emissões e moldando um futuro tão mais quente e intenso em eventos climáticos extremos, que nem o jardim do sitio Canga suportará?

Essas perguntas, as deixo para os que vão se reunir este ano na COP21 e decidir as direções do nosso caminho. Deixo também um desejo. Desejo que possam olhar nos olhos de quem se adapta. As linhas de um acordo global ficam muito mais humanas depois disso.

Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas

 

*Este texto foi escrito a partir de uma visita de campo a projetos de ASA – Articulação do Semiárido, organizada no marco do encontro “Diálogos e Convergências: Gestão da Água em Cenários de Estresse Hídrico”. O encontro aconteceu em Pesqueira, Pernambuco, de 27 a 29 de maio de 2015 e foi organizado por Fundación Avina, ASA e Caritas. O artigo foi publicado originalmente no blog Cada Olhar, um prisma em 30 de junho de 2015 e relata a visita ao Sitio Canga, de Dona Lucia, no município de Alagoinha.

 

 

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  • Paula Ellinger

    Gestora da estratégia de Mudanças Climáticas da Fundación Avina e Mestre em Estudos para o Desenvolvimento pelo Institute of ...

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