Análises

A destinação de terras públicas: a política climática que o Brasil precisa adotar já

Quando uma floresta pública ganha uma identidade jurídica clara e uma presença estatal definida, o crime perde seu principal ativo

Paulo Barreto · Brenda Brito ·
14 de outubro de 2025

Enquanto o debate sobre mudanças climáticas se perde em discussões complexas, o Brasil ignora uma solução poderosa e ao alcance de suas mãos. A política climática mais urgente e eficaz para o país está no estratégico ato de destinar suas terras públicas não destinadas. O combate à grilagem – a apropriação criminosa de terras da União, estados e municípios – é a chave para uma proteção florestal duradoura e controlar as emissões nacionais.

A grilagem é um motor de primeira grandeza do desmatamento e, consequentemente, das emissões brasileiras. Dados recentes do Ipam mostram um avanço: a participação do desmate em florestas públicas caiu de 54% (2021–2022) para 44% em 2024, com as Florestas Públicas Não Destinadas (FPNDs) liderando a redução absoluta. Isso prova que a fiscalização funciona. No entanto, a efetividade dessas ações oscila perigosamente com os ciclos políticos. Estudos consistentemente mostram picos de destruição em anos eleitorais ou sob sinais de tolerância. Para romper essa ciclicidade, é preciso ir além da repressão e atacar a causa raiz: a vulnerabilidade das terras que ainda são um alvo fácil para criminosos.

Por que a destinação funciona: a fórmula do risco

Imagine o risco de uma floresta ser invadida como o resultado de uma multiplicação: Ameaça x Acesso x Vulnerabilidade. Se um fator for zerado, o risco desaparece.

A ameaça é permanente: o lucro com madeira ilegal, a pecuária e a especulação fundiária. O acesso só se expande com a abertura formal e clandestina de estradas e ferrovias. Resta, portanto, ao poder público eliminar a vulnerabilidade. Esta surge no momento em que o Estado deixa uma área pública sem uma afetação legal clara – sem destino.

O problema se agrava quando, em vez de proteger, o poder público cria brechas para anistiar invasores, oferecendo descontos na compra da área grilada. Esse modelo perverso de “regularização” equivale a vender os poços do pré-sal a piratas com um desconto. Sinaliza que o crime compensa.

E mesmo sem anistia, a ocupação ilegal já é lucrativa. A impunidade é a regra. Uma análise do Imazon que examinou 526 decisões judiciais em 78 ações criminais sobre grilagem na Amazônia Legal, é alarmante: apenas 7% resultaram em condenações. A morosidade para o julgamento e as baixas penas previstas em lei beneficiaram os criminosos, e levaram à prescrição dos crimes em 34% dos casos. Ou seja, nesses casos o poder público perdeu a capacidade de punição. A mensagem é clara: invadir terra pública é um negócio de alto retorno e risco ínfimo.

A solução estrutural: zerando a vulnerabilidade

O Observatório de Terras Públicas quantifica o desafio: são 50 milhões de hectares de florestas públicas aguardando destinação – 19 milhões sob gestão federal e 31 milhões sob os estados. Ao destiná-las formalmente para conservação (Unidades de Conservação), povos indígenas, ou concessões florestais sustentáveis, o Estado impõe um marco legal mais robusto. A vulnerabilidade despenca e, com ela, o risco de invasão.

Há, sim, custos envolvidos. Destinar não é apenas assinar um decreto; exige demarcação, comunicação local, manutenção de conselhos gestores e vigilância de longo prazo. Contudo, estes são custos previsíveis e menores do que o preço de perder a floresta para sempre e ter de financiar operações de reintegração de posse recorrentes. Fontes de financiamento existem e podem ser combinadas: Fundo Amazônia, Fundo Clima e as receitas das próprias concessões florestais e de multas ambientais, cuja arrecadação hoje é ínfima.

Um plano de ação concreto e urgente

Para que essa ideia saia do papel, são fundamentais ações imediatas dos Três Poderes. Ao Executivo federal e estaduais cabe a tarefa primordial de destinar rapidamente as terras sob sua gestão, em linha com as prioridades constitucionais de conservação. Enquanto os processos de criação de unidades de conservação e reconhecimento de territórios tradicionais avançam, é crucial usar instrumentos ágeis de proteção provisória, como as Áreas sob Limitação Administrativa Provisória, que já provaram sua eficácia no passado ao congelar a degradação em áreas de fronteira, como as da BR-163 e BR-319. Paralelamente, o governo deve barrar a emissão de Cadastro Ambiental Rural (CAR) sobre floresta pública, cortando pela raiz a expectativa de regularização, e promover a notificação eletrônica aos invasores, deixando claro que a ocupação ilegal não será tolerada.

Como a maioria das terras públicas está sob jurisdição estadual, a União pode trocar a destinação e implementação de áreas protegidas nestas áreas por abatimento de dívida estadual condicionada a metas. A transação pode ser do principal da dívida – cerca de R$ 8,8 bilhões em junho de 2025 – ou dos juros. O governo federal também pode priorizar crédito rural, assistência técnica e investimentos logísticos e digitais para estados com baixas taxas de desmate, o que envolve a destinação das terras públicas – premiando governadores que entregam conservação com desenvolvimento. 

Ao Judiciário, e em especial ao Supremo Tribunal Federal, compete garantir o cumprimento de suas próprias decisões, como a de abril de 2025, que demanda a atualização das leis fundiárias para impedir a regularização de áreas com ilícitos ambientais. É urgente uniformizar o entendimento de que a mera ocupação de terra pública não gera direito à posse, coibindo decisões liminares que protegem grileiros e travam operações de desocupação. Outra frente essencial é fortalecer o controle sobre os cartórios, forçando o cancelamento de registros de imóveis fraudulentos que lavam a aparência da grilagem.

Por fim, aos Tribunais de Contas cabe o papel estratégico de reforçar as auditorias e prestação de contas. Eles devem auditar a governança da destinação de terras, medindo o custo astronômico da omissão: a perda de ativos ambientais, as emissões de carbono e a renúncia de receitas. Esse controle externo é vital para transformar diretrizes em resultados verificáveis e cobrar prazos dos gestores.

Conclusão: da conjuntura à tendência

Reconhecer os avanços recentes na fiscalização é justo. Medidas para cortar o financiamento do desmatamento ilegal são necessárias. Elas criam um respiro e enviam sinais importantes ao mercado. Mas são políticas que lidam com as consequências, não com a causa.

A política que fecha a torneira do desmatamento é a destinação. Quando uma floresta pública ganha uma identidade jurídica clara e uma presença estatal definida, o crime perde seu principal ativo: a expectativa de que um dia aquela área se transformará em propriedade privada. É hora de transformar a atual queda nas taxas em uma tendência irreversível. Com a correta destinação de terras, o Brasil garantirá justiça territorial, segurança jurídica para quem produz dentro da lei e, não menos importante, o controle do seu destino climático.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Paulo Barreto

    Sonha com um mundo sustentável e trabalha para que este desejo se torne realidade na Amazônia. É pesquisador Sênior do Imazon.

  • Brenda Brito

    Doutora em Ciência do Direito pela universidade Stanford (EUA)

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