Análises

Como avaliar a poluição nos nossos rios? A lontra neotropical é uma das respostas

Organismos predadores podem ser altamente eficazes como sentinelas no biomonitoramento ambiental, pois têm a capacidade de bioacumular e biomagnificar determinadas substâncias

Existe um consenso de que o nosso bem-estar e qualidade de vida dependem intrinsicamente da Natureza, e uma das principais consequências é a propalada Saúde Única (One Health no original). A questão é que nossa sociedade usa recursos naturais, emite poluentes e degrada o meio ambiente em várias atividades inerentes ao nosso estilo de vida. No entanto, essas atividades não só devem passar pelo processo de licenciamento ambiental, como seus efeitos devem ser monitorados.

No Brasil o monitoramento ambiental ganha a cada dia um maior destaque devido as exigências ambientais, assim como para o país cumprir acordos multilaterais fundamentais para sua representatividade no cenário internacional, e até poder almejar entrar para a OCDE. Cabe ainda ressaltar que iniciativas associadas à conservação e sustentabilidade ambiental podem ter grande contribuição para o Brasil manter a sua projeção internacional em temas referentes ao meio-ambiente. Portanto, cuidar do nosso capital natural é fundamental para o sucesso do Brasil como nação e, para algumas empresas, o monitoramento ambiental deve fazer parte das estratégias de governança. Monitorar, reduzir os impactos e divulgar ações ambientais podem ser um bom negócio para as empresas e outros argumentos podem ser encontrados neste link.

Como em qualquer abordagem, temos que pensar no porquê, o que e como monitorar. A necessidade de termos monitoramento ambiental já foi abordada (mesmo que sem detalhes) no parágrafo acima. Por sua vez o que monitorar, e como monitorar, devem ser direcionados por perguntas que no caso de empreendimentos são relacionados aos possíveis impactos. Portanto, entendemos que o monitoramento sempre tem que ser direcionado para responder algumas perguntas, o que é diferente do monitoramento conhecido como surveillance, as vezes traduzido no Brasil como vigilância. O monitoramento ambiental baseado em perguntas tem várias vantagens, como a escolha adequada do que e quanto tempo monitorar, além da decisão sobre quais variáveis ambientais fazem sentido. Ao poder direcionar de forma mais objetiva e precisa, inerentemente fica mais plausível testar uma possível causalidade e, consequentemente, entender a magnitude e extensão espacial dos impactos verificados.

Qualquer atividade humana realizada em larga escala tem o potencial de causar alterações com grande extensão e/ou magnitude no meio ambiente, impactando a fauna e a flora e, consequentemente, trazendo reflexos para a saúde e o bem-estar humano. Alguns desses impactos podem estar associados ao uso industrial de substâncias químicas, que podem ter origem sintética, além de seus metabólitos, produtos de degradação e também elementos químicos que, dependendo da concentração de exposição, podem ser muito tóxicos ou mesmo cancerígenos, como arsênio, mercúrio, cádmio, chumbo, entre outros. Uma estratégia eficaz e amplamente utilizada no monitoramento ambiental de substâncias químicas é o uso de organismos-sentinela que acumulam esses contaminantes ao longo tempo, permitindo uma avaliação de médio a longo prazo sobre a presença de tais substâncias no ambiente. Nesse sentido, organismos-sentinela precisam reunir algumas características fundamentais que incluem tolerância a variações ambientais, o que permite que estejam presentes ao longo de todo o ano na área monitorada, devem bioacumular a substância química de interesse e serem acessíveis à coleta de material biológico.

Além da bioacumulação, que se refere ao acúmulo de determinado contaminante em um organismo ao longo do tempo, incluindo diferentes vias de exposição (pelo contato, respiração e dieta), há o conceito de biomagnificação. Nesse caso, verifica-se o aumento da concentração do contaminante ao longo de uma teia alimentar, com os níveis mais elevados sendo observados nos organismos que ocupam posições tróficas mais próximas ao topo da cadeia. Aqui cabe destacar a máxima da Toxicologia Ambiental: “Nem todas as substâncias que bioacumulam biomagnificam, mas todas as substâncias que biomagnificam também bioacumulam”. Nesse contexto, organismos predadores podem ser altamente eficazes como sentinelas no biomonitoramento ambiental, pois têm a capacidade de bioacumular e biomagnificar determinadas substâncias.

E quais são os ambientes mais afetados pelos diferentes tipos de contaminantes mencionados acima? Por uma questão geomorfológica todas as bacias de drenagem (ou hidrográficas) carreiam todos os resíduos (incluindo os contaminantes) e águas que percolam no ambiente terrestre para os rios. Além disso, existem problemas adicionais nas áreas urbanas decorrentes da falta de rede de esgotos nas cidades, e ligações clandestinas na rede pluvial que ajudam a explicar por que muitos dos nossos rios estão poluídos, sejam em áreas rurais ou urbanas. Contudo, só nas áreas rurais existe a possibilidade de usar espécies que são predadoras como sentinelas. Mas qual espécie poderia ser sentinela?

Lontra neotropical no Pantanal Matogrossense. Foto: Allan Hopkings

A lontra neotropical (Lontra longicaudis) ocorre em todos os biomas brasileiros, exceto a Caatinga, onde pode ser encontrada em rios e lagos, e sua alimentação é basicamente composta por peixes e crustáceos (Almeida & Ramos Pereira 2017; Rheingantz et al. 2017). Portanto, a lontra pode atuar como uma sentinela eficiente de ambientes aquáticos, como evidenciado por estudos que utilizaram amostras não-invasivas, como pelos e fezes (por exemplo Josef et al 2008, Ramos-Rosas et al 2013). Um detalhe importante é que as lontras persistem em rios com algum nível de contaminação e distúrbio, como o rio Paraopeba em Minas Gerais (Lanna et al 2022), o que reforça a sua indicação como espécie sentinela.

No que tange os contaminantes químicos, o Brasil tem avançado na inclusão de novas substâncias a serem monitoradas nas últimas décadas. Porém, o biomonitoramento pode trazer ainda mais avanços, pois tem o potencial de trazer informações relevantes sobre a presença de contaminantes biodisponíveis, incluindo substâncias que ainda não estão reguladas (o que chamamos de contaminantes emergentes).

Uma outra vantagem: O biomonitoramento com organismos-sentinela também é eficaz para a compreensão dos efeitos da exposição aos diversos contaminantes presentes atualmente nos ambientes aquáticos. Chegou o momento do poder público (federal, estadual e municipal) e empresas começarem a implementar programas de biomonitoramento ambiental. Um dos benefícios será a obtenção de informações mais robustas para a gestão dos impactos derivados dos sistemas de produção, para a proteção dos recursos naturais e a promoção do nosso próprio bem-estar. Nesse sentido, as lontras podem ser nossas aliadas como sentinelas, nos ajudando a monitorar nossos rios, contribuindo para a sustentabilidade dos ecossistemas aquáticos.

Referências

Almeida LR & Ramos Pereira MJ. 2017. Ecology and biogeography of the Neotropical otter Lontra longicaudis: existing knowledge and open questions. Mammal Research 62:313–321.

Josef, C.F.; Adriano, L.R.; Franca, E.J.; Carvalho, G.G.A. & Ferreira, J.R., 2008. Determination of Hg and diet identification in otter (Lontra longicaudis) feces. Environmental Pollution, 152: p.592-596.

Lanna, AM, Keesen, F. & Grelle CEV 2022. ON THE CURRENT OCCURRENCE OF THE NEOTROPICAL OTTER (Lontra longicaudis OLFERS, 1818) IN A DEGRADED RIVER AFTER A DAM COLLAPSE, SOUTHEAST BRAZIL UCN Otter Spec. Group Bull. 39: 179-184.

Ramos Rosas NN, Valdespino C, García  Hernández J, Gallo Reynoso JP, Olguín EJ (2013) Heavy metals in the habitat and throughout the food chain of the Neotropical otter, Lontra longicaudis, in protected Mexican wetlands. Environmental Monitoring and Assessment 185(2): 1163–1173

Rheingantz, M. L., Menezes, J. F. S., Galliez, M., & Fernandez, F. A. (2017). Biogeographic patterns in the feeding habits of the opportunist and semiaquatic Neotropical otter. Hydrobiologia, 792(1), 1-15.

Carlos E V Grelle – Laboratório de Vertebrados, Departamento de Ecologia/IB/UFRJ, Coordenador de Programa de Pesquisas em Biodiversidade (BioMA) CNPq/MCTi, e pesquisador do Centro de Conhecimento em Biodiversidade INCT/CNPq.

Cláudio E T Parente – Laboratório de Estudos Ambientais Olaf Malm, Programa de Saúde Ambiental, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, UFRJ.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Carlos Eduardo de Viveiros Grelle

    Doutor em Zoologia e professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, pesquisador do Centro de Conhecimento em Biodiversidade INCT/CNPq, coordenador do BioMA PPBio/MCTi e coordenador de biodiversidade do CMA

  • Cláudio Ernesto Taveira Parente

    Doutor em Biofísica, professor responsável pelo Laboratório de Estudos Ambientais Olaf Malm do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, UFRJ.

Leia também

Salada Verde
14 de janeiro de 2025

Alteração de limites do Parque Nacional de Itajaí vira lei

Com a mudança, parque catarinense perde 2 hectares para construção de barragem de contenção de cheias no rio Itajaí-Mirim e incorpora outros 319 hectares à área protegida

Podcast
14 de janeiro de 2025

Podcast: Manguezais sofrem com a exploração desenfreada de recursos

No litoral cearense, a preservação do ecossistema e de modos de vida tradicionais é ameaçada por interesses econômicos

Salada Verde
13 de janeiro de 2025

Lula veta “jabutis” em projeto de lei das Eólicas offshore

Inseridas por parlamentares no Congresso Nacional, emendas que estendiam benefícios para as térmicas a carvão não entrou na versão final da lei

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 2

  1. Creio que os articulistas, talvez por desconhecimento da fauna de nossa região (o baixo São Francisco, em Alagoas e Sergipe), se equivocaram ao citar que a Lontra longicaudis não é presente no bioma caatinga. Pelo contrário, ela é uma espécie ainda encontrada nos altos sertões do Baixo São Francisco, se alimentando dos remanescentes de espécie da detonada ictiofauna (pirambebas, piaus, etc.).

    Aqui na RPPN Mato da Onça (em Pão de Açúcar, AL) todos os dias, em nossos monitoramentos, nos deparamos com restos de alimentos regurgitados (sobretudo sobre os flutuantes de nossas bombas de captação, muitas vezes danificadas pelas nossas colegas, fazer o que?).

    Ainda sobre a presença das lontras nas caatingas, aqui na RPPN, a convivencia das mesmas se dá, de forma muito estressada (pelas variações horárias das vazões defluentes da UHE Xingó, destruindo desde 1994, com o aval do IBAMA, o que restou de ecossistemas pós Sobradinho) com capivaras, guaxinins, cachorros do mato, eventuais jaguatiricas e mais raramente onças pardas: o leito do São Francisco exposto, secado, nos apresenta a movimentação pelas pegadas.

    Finalmente, a situação terminal do São Francisco (indicamos nossos artigos no Sobradinho +40 – A desintegração do rio da integração em https://infosaofrancisco.canoadetolda.org.br/project/sobradinho-40/ ), acelerada com a infame transposição e o silêncio da sociedade brasileira, nos trás uma situação extremamente grave de contaminação das águas no trecho baixo. Não só as lontras, mas os seres humanos, resistem a pulso, mas por quanto tempo?


  2. Neste caso as ARIRANHAS ( Pteronura brasiliensis) também poderiam ser utilizadas? Tem uma população maior nos rios do pantanal. Como saber a resposta?