O ICMBio aprovou recentemente, no meio da Conferência do Clima, uma proposta que desmonta o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Tudo feito “em cima da perna”, sem qualquer discussão de mérito ou fundamentação técnica. Emitiram um “parecer jurídico” aprovado sem discussão pela diretoria da instituição.
O tal parecer jurídico é um manifesto ideológico camuflado de parecer. Querem mudar a Lei através de um instrumento obtuso sem suporte científico, que ignora tudo que a legislação estabelece no que concerne à proteção da nossa biodiversidade. Querem fazer reforma agrária torta, destruindo nossos parques nacionais e outras unidades de proteção integral. O documento simplesmente desconsidera o que a Constituição e as leis estabelecem com relação à proteção da biodiversidade para se ater apenas à legislação que trata de outros temas, para os quais as unidades de conservação de proteção integral deviam ser tratadas como exceção à regra. Transformam o acessório em principal e o principal em acessório. Defender manter população, tradicional ou não, dentro de unidades de conservação de proteção integral é o mesmo que defender o uso da cloroquina para tratamento precoce da covid 19. É negacionismo científico na sua mais pura e ideológica manifestação.
O SNUC é uma lei sobre unidades de conservação e não sobre populações tradicionais. As categorias de uso sustentável são coadjuvantes quando se trata de proteção da biodiversidade exatamente porque não se prestam adequadamente para esse fim, são importantes mas são complementares, já que admitem uso dos recursos naturais e todo uso tem impactos e consequências. Acontece o mesmo com terras indígenas e qualquer outra área, seja pública ou privada, onde o objetivo primário de manejo não é conservação da biodiversidade, embora esta ocorra de alguma maneira. Unidades de conservação de proteção integral são as únicas que têm possibilidade de melhor proteger a biodiversidade em todo seu espectro. As populações humanas que estão lá fazem uso direto dos recursos, uso este que já tem impacto hoje e terá mais ainda no futuro, seja pela insularização das áreas, seja pelo inevitável aumento do uso e consumo desses recursos pelos moradores, seja pela mudança de seu modo de vida. As reservas extrativistas são um claro exemplo da piora que acontece ao longo do tempo nessa questão do uso dos recursos.
É o plano de manejo, documento elaborado por especialistas e gestores, que deve dizer o que vai ser feito numa unidade de conservação e não um procurador, ou quem quer que seja, dizer o que deve conter no plano. E mais, um plano de manejo não é a expressão da vontade ou ideologia de alguém ou de algum grupo, mas sim um instrumento construído cuidadosamente respeitando a categoria e os objetivos de criação de cada UC. Está na Lei. A estrutura do ICMBio foi organizada exatamente para enfraquecer as unidades de conservação de proteção integral. Nos governos passados um grande esforço foi realizado para isso, mas nada produziram assim como o atual. O que foi tentado nesses governos por grupos entranhados na área pública ambiental e seus aliados externos está sendo implementado no governo atual, que se disse antagônico a eles. Na verdade, no ICMBio administrado por policiais militares, se deram as mãos para destruir nossos parques nacionais, reservas biológicas e estações ecológicas. Simples assim. Um grupo ajuda o outro. Vale tudo. Até inventar “populações tradicionais” em áreas que o atual governo não tem interesse em fazer regularização fundiária. Transformam os proprietários de terra em algum “povo de qualquer coisa” e decidem que eles não mais precisam ser indenizados e sair do parque. E isso num momento em que precisamos mais do que nunca dessas áreas, visto que a destruição ambiental só avança e tudo é agravado pela perspectiva dos problemas de conservação que as mudanças climáticas já estão trazendo.
Existem centenas de trabalhos científicos sérios, não ideológicos, que atestam o impacto sobre a biodiversidade do uso dos recursos naturais pelas populações cada vez mais ditas “tradicionais”, existem convenções internacionais das quais o Brasil é signatário que criam obrigações de proteger nossos parques nacionais e unidades de proteção integral, existe a Lei que diz que proteção integral é manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana. A Lei do SNUC, cuja elaboração acompanhei como representante do IBAMA desde a sua concepção inicial, e onde fui responsável pela redação final de vários artigos que permaneceram inalterados em toda sua longa tramitação no Congresso Nacional, não dá nenhuma margem para a “compatibilização” que se defende nos pareceres, pareceres estes que, em nenhum momento, analisaram a fundamentação técnica do que estavam propondo. A Lei define que o objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos na própria Lei (que não englobam manutenção de populações, tradicionais ou não), que a terra deve ser de posse e domínio públicos. O objetivo básico das Unidades de Uso Sustentável sim, é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parte dos seus recursos naturais. Fico pensando se os doutos procuradores, deliberadamente, se esqueceram ou ignoraram que compatibilização de uso é para ser feito nas unidades de uso sustentável, não nas de proteção integral. Tal distinção é tão importante que você não pode transformar uma unidade de proteção integral em uso sustentável sem uma lei específica para tal, mas pode transformar uso sustentável em proteção integral sem passar por esse processo. Ou seja, a Lei prioriza proteção da biodiversidade. O ICMBio quer mudar isso com um parecer…
O Brasil simplesmente não investe em regularização fundiária das unidades de conservação e com isso estimula conflitos e faz crescer os problemas.
O Brasil simplesmente não investe em regularização fundiária das unidades de conservação e com isso estimula conflitos e faz crescer os problemas. Várias foram as oportunidades em que se tentou, como agora, mas de forma menos tosca e ousada, resolver a situação empurrando o problema para debaixo do tapete ou procurando dizer que o que era problema não é mais. Não se exige na Lei que as unidades de proteção integral não tenham moradores ou “usuários” diretos de seus recursos em função de interesses de um ou de outro. Isso se faz porque é a única maneira viável para que elas possam cumprir os objetivos para os quais foram estabelecidas. E dizer que agora os moradores não precisam mais sair, não muda a realidade. Não se pode, através de canetadas que agradam interesses pessoais ou de terceiros, mudar a Lei cujo único objetivo é atender o que estabelece o inciso III do §1º da Constituição Federal que obriga o Poder Público a “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.” Em todo o seu manifesto ideológico, os procuradores sequer se referiram ao que dispõe a Constituição com relação à proteção do meio ambiente – o capítulo do Meio Ambiente na nossa Carta Magna foi uma demonstração de evolução civilizatória que aconteceu pela primeira vez na nossa história republicana – e não explicam como se compatibiliza o incompatível sem desrespeitar o que estabelece a CF e a Lei, e sem desproteger o meio ambiente. Porque a boa ciência já demonstrou que uso tem impacto, que pode ser bem grave e crescente, mas muitas vezes é invisível a curto prazo.
Por fim, os termos de compromisso previstos na lei são instrumentos temporários de regularização fundiária e se destinam exclusivamente a definir regras transitórias até que a mesma seja efetivada. Mas no ICMBio ideológico, têm sido usados para permitir usos que agridem a integridade dos atributos que justificaram a criação das unidades de conservação e que sequer seriam permitidos até em áreas não protegidas. E não podem, em nenhuma hipótese, serem usados como instrumentos de fixação ou perpetuação da presença de moradores ou “usuários” dentro de unidades de proteção integral. O resto é cloroquina.
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Sergio Brant ha hecho un excelente y valiente análisis de la situación creada por la decisión (ilegal y antitécnica) que permite mantener poblaciones “tradicionales” en áreas protegidas de uso indirecto o, como se dice en el Brasil, en unidades de conservación de protección integral. Es el comienzo del fin. Como lo dice el autor, esa decisión parte de ideas como que “las poblaciones tradicionales conservan el ambiente en ambiente en que viven” y que, por lo tanto, no se necesita preservar porciones de ecosistemas sin gente o sin uso directo de los recursos. Esas ideas comenzaron con la utopía del desarrollo sostenible, es decir la noción de que se puede comer una torta sin que esta disminuya de tamaño. Eso no existe, como queda demostrado después de décadas de intentar aplicar el tal absurdo y, contrariamente, el mundo está cada día más cerca de la debacle ambiental. Las áreas protegidas protegen muestras de la naturaleza del ser humano, sea tradicional o no. Solo los humanos destruyen la naturaleza.
Esa decisión que, en ultima instancia, posibilita deforestar áreas protegidas para hacer cultivos o plantaciones, explotar minerales, cazar y pescar a voluntad, desecar ríos y lagunas, va a provocar una hecatombe de la diversidad biológica brasileña antes de que el cambio climático se materialice en su versión extrema. Responde a la coalición, cada vez más evidente, entre la derecha radical (los que propusieron esas reformas) y la izquierda socioambiental (que silenciosamente está de acuerdo con ellas). Ambos proponen ocupar las áreas naturales que quedan en el país para explotar los recursos. Los primeros prefieren, claro, que se transformen en áreas agrícolas o mineras sin pasar antes por las “poblaciones tradicionales” pero saben que si no los mencionan, tendrían más dificultad en aprobarlas las medidas. La derecha sabe que pocos años más tarde los tales “pueblos tradicionales” van a permitir su entrada para ayudarlos a explotar el área, como ya se ve con la expansión consensuada de la soya transgénica y de la minería en tierras indígenas y de ganadería en reservas extractivistas. Por eso, también, no se define lo que es “tradicional”. Dentro de poco hasta los gauchos invasores de la Amazonia van a ser (y en cierto modo de hecho son) pobladores tradicionales.
Lo que está pasando en el Brasil es una extensión de lo que ocurre a nivel mundial cuando ahora la izquierda fanática persigue, por ejemplo, al WWF, por crímenes contra la humanidad por cuidar del ambiente financiando áreas protegidas. Se busca entregar todo el patrimonio natural a las poblaciones originales. La derecha se regocija pues, eso le conviene, ya que sabe bien que junto con esas poblaciones entrarán ellos, ya sin obstáculos para destruir lo que sobre. Al final, siempre es lo mismo: Los extremos se juntan.
Marc “explicou” direita e esquerda pior que um adolescente faria. Uma tábua rasa…
várias dissertações de mestrado e artigos científicos produzidos por analistas ambientais do ICMBio ao longo dos últimos anos embasaram o parecer. não tem fundamentação técnica ou o autor desse textinho não tem conhecimento da produção técnica?
Tudo trololó ideológico, que acaba sendo “aprovado” na academia pelos pares esquerdosos dos autores… é uma vergonha essa contaminação ideológica da gestão E das teses, pareceres etc etc da mesma troupe de sempre.
O mundo inteiro defende a conservação comunitária há décadas, mas aqui no Brasil não pode. Não acham que precisam ler estudos realizados por quem enfrenta essas questões na prática, pois estão mais preocupados em defender valores, não querem ser obrigados a olhar pra uma coisa chamada realidade. Saudosos da ditadura militar, quando se podia impor qualquer medida sem discussão, agora reclamam que não foram convidados a debater. Não debatem porque não querem, pois os espaços institucionais estão criados há muito tempo: macroprocessos, capacitações, inúmeros casos polêmicos que, por ação desses mesmos colegas, tiveram que passar por TODAS as coordenações do ICMBio… Se os resultados práticos não são capazes de adicionar qualquer novidade ao pensamento destes, que apenas requentam os mesmos argumentos desde a década de 70, onde esse povo parou, que diálogo eles esperam? Obediência cega contra todas as evidências? Quem ganha com a expulsão dos povos e comunidades tradicionais? O ICMBio sozinho vai dar conta de coibir invasões e ilícitos nas 70% de UC de proteção integral com sobreposição a territórios tradicionais? E quais as consequências ecológicas desse êxodo forçado? Quem quiser realmente discutir o tema, meu conselho é um só: estude e se atualize. Não dá pra “dialogar” em 2021 com um pensamento que parou na década de 70.
Sérgio, parabéns por expor com tanta clareza os motivos e consequências deste parecer construído e emitido unilateralmente por meia dúzia de pessoas do ICMBio
Um artigo essencial. O estupro de nossos Parques Nacionais pela catrefa ideológica sociocoisista, sempre ávida em criar aquários antropológicos para fazer suas teses e engordar currículo à custa da pobreza alheia, não pode pasear em branco.