Análises

Equilíbrio, harmonia e estabilidade podem transformar os cuidados com incêndios em gestão de fogo 

A longa travessia entre a teoria do manejo integrado e sua prática no território brasileiro

Vinícius Gaburro de Zorzi ·
9 de dezembro de 2025

A cada estiagem que passa, mais se elogia, critica, pesquisa e – que bom –, se pratica o Manejo Integrado do Fogo, ou MIF. Isso não apenas no insólito mundo dos profissionais da área da Biologia da Conservação. O MIF está sendo evidenciado das ações de produtores rurais no interior do cerrado baiano às conclamações políticas assinadas por dezenas de países na COP 30.

Segundo a Lei nº 14.944/2024, que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, o “manejo integrado do fogo” é um modelo de planejamento e gestão que integra aspectos ecológicos, culturais, socioeconômicos e técnicos. Ele envolve a execução, a integração, o monitoramento, a avaliação e a adaptação de ações relacionadas ao uso de queimas prescritas e controladas, bem como à prevenção e ao combate aos incêndios florestais. Seu objetivo é reduzir emissões de material particulado e gases de efeito estufa, conservar a biodiversidade e diminuir a severidade dos incêndios florestais, respeitando o uso tradicional e adaptativo do fogo.

Uma rápida análise do emprego da expressão Manejo Integrado do Fogo no acervo de ((o))eco evidenciou que, desde 2017, cinquenta e nove matérias (dentre reportagens, notícias e outras) discutiram diretamente ou utilizaram indiretamente a expressão em seu conteúdo. O jornal cada vez mais tem discursado em prol do MIF e, também de maneira ascendente, começou a aprimorar a aplicação de termos que costumam gerar confusão em jornalistas, população e mesmo técnicos da área ambiental, além de buscar cobrir mais aspectos da agenda de MIF, como a restauração de ambientes atingidos por incêndios e, por fim, valer-se do MIF como um tema transversal a ocupar outras pautas.

Controlar o fogo para ele não escapar e combater o fogo que controla

Como algo novo (na verdade, não tão novo assim) observa-se que o Brasil está a experienciar desde a primeira década dos anos 2000 uma espécie de “letramento” em MIF. Portanto, naturalmente, tem quem pense que ele é sinônimo de realizar queima planejada, tem quem pense que é integração de esforços para prevenir e combater incêndios considerando o uso do fogo e tem quem ache que nem vale a pena pensar o que pode vir a ser.

Sua popularidade e, pode-se afirmar, carisma atuais remetem à esperança premente que nele tem sido depositada frente o imenso desafio global para lidar com incêndios mais extensos, intensos e severos nos continentes livres de gelo. Contudo, talvez o MIF pudesse significar mais do que isso, mais do que reaprender a conviver com esse fogo a cada estiagem mais fugidio e que está sapecando tudo, afinal de contas, se sua abordagem for aplicada de forma mais integral e orientada para causas, por certo nos levará a refletir mais e, assim, chegaremos à conclusão de que existe um outro fogo a ser combatido: o fogo que não está na vegetação, mas preso em caldeiras e motores, queimando combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás). Combater esse fogo fóssil significa enfrentar grandes estruturas sociais e econômicas, como: superconsumos, acumulação excessiva de riqueza, além de modelos sociais centralizadores e concentradores de poder. 

Como de costume, a Europa e a América do Norte, com seus sistemas políticos e econômicos, legaram bastante opinião, regra e outras coisas mais aos territórios que dominaram. Já no século XIX, países desses continentes e da Oceania exportaram um paradigma “incendiocêntrico” para lidar com fogo, ou seja, focado na supressão de incêndios e, assim, gestão de emergências, marginalizando e até criminalizando inumeráveis interações econômicas, ecológicas, culturais, de saúde e segurança que nossa espécie desenvolveu ao longo do tempo em distintas geografias.

Paulatinamente, sobretudo a partir da década de 1950, manejadores e pesquisadores começaram propor a mudança desse paradigma porque, dentre outras sequelas: estava ocorrendo extinção de espécies em ecossistemas onde naturalmente ocorrem regimes de fogo específicos; houve aumento de grandes incêndios ocasionado pelo acúmulo de material combustível (vegetação) porque era proibido usar o fogo e por conta de êxodo rural; o aumento das cidades gerou o aumento de zonas periurbanas e, dessa maneira, maior exposição de pessoas a incêndios, assim como maior risco de ignição; criminalizou-se práticas indígenas e tradicionais de uso do fogo; quanto mais se investia com foco em combate a incêndios, mais investimento era necessário. 

O MIF mais parece um triângulo escaleno, só que o concebemos para ser equilátero

Quem trabalha com fogo gosta demais de esquematizar e explicar conceitos fazendo uso de figuras geométricas, notadamente os triângulos equiláteros, com lados do mesmo tamanho. Tem o triângulo do fogo, o triângulo do comportamento do fogo, o triângulo do manejo do fogo, o triângulo do manejo integrado do fogo e estejam certos de que daqui a pouco alguém inventa outro, se é que já não inventaram.     

Não é fortuita a escolha de um triângulo com lados e ângulos de mesma medida. Essa figura tem sido usada há milênios, estando seu simbolismo bastante, mas não unicamente, associado a: i. equilíbrio e harmonia pois a igualdade de seus lados e ângulos confere mesmo peso e importância aos elementos que o compõem; ii. estabilidade porque sua base larga dificilmente possibilita que ele tombe. 

Também não é fortuito que na base do triângulo do MIF figure uma ciência, a Ecologia do Fogo, assim como não seria fortuito afirmar que no Brasil e em outros lugares do mundo triângulos escalenos, com lados com tamanhos diferentes, figurem como a melhor representação geométrica da situação de implementação do MIF, uma vez que a maior parte das instituições ainda atua principalmente de forma restrita ao conceito de Manejo do Fogo e, ainda assim, não plenamente, uma vez que organiza seus esforços para suprimir, prevenir incêndios florestais e utilizar o fogo, nesta ordem decrescente de assiduidade.

Por que é difícil moldar o trabalho para que ele seja equilibrado, harmonioso e estabilizado por conhecimento científico? Por que necessidades socioeconômicas, integridade cultural e ecológica ainda seguem exiladas no tempo futuro? 

Suspeita-se que por uma mesma razão o triângulo do MIF ainda esteja escaleno. Tanto quanto, se a restauração ecológica fosse representada por triângulo, ele estaria escaleno, a sustentabilidade idem.

Implementação da política nacional de MIF para maximizar avanços na conservação da sociobiodiversidade

Bem, de maneira gradual, às vezes mais vagarosa e tortuosa do que se espera, experiências se moldam em ideias, que cunham definições, que figuram em discussões, que encontram barreiras, que exigem negociações, que, se não emperram, podem consumar políticas.

A política nacional de MIF publicada representou uma vitória perseverante e proeminente de profissionais técnicos e políticos bem-intencionados a favor do país. Sua implementação está se consumando como uma oportunidade desafiadora de condução de processos para a redução de assimetrias historicamente estabelecidas, recondução de governanças mais participativas, além de reconhecimento da inegável, forte e inversamente proporcional correlação que comunidades, sociedade civil organizada e instituições públicas, quando atuando harmoniosamente, detêm em relação ao risco de incêndios e à degradação de eco e agrossistemas.

Poderá tal eventual harmonia suscitar um meio ambiente mais equilibrado, um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida? Incerto. Obtusos são os não poucos interesses que ainda ditam como funciona nossa economia, nossa política, nossa educação e cultura. E enquanto prevalecerem, destacado será um ângulo obtuso em nosso triângulo.

Mas, porque o trabalho se constrói no dia a dia e é preciso dar passos concretos, elencou-se despretensiosamente o que se acredita serem necessidades tangíveis para o desenvolvimento do trabalho com MIF no Brasil ao longo dos próximos anos (bem próximos, espera-se). Trata-se de uma visão compartilhada a partir de profissionais da área da conservação que atuam em organizações da sociedade civil.

As necessidades para o aperfeiçoamento do MIF no Brasil incluem:

  • Implementar a Política Nacional de MIF de forma ampla e participativa, além de incidente sobre a criação e implementação de políticas e governanças em âmbito estadual e municipal, de maneira a reconhecer, valorizar e instrumentalizar o trabalho de comunidades locais;
  • Reconhecer, valorizar, robustecer e padronizar o trabalho de brigadas e brigadistas, inclusive voluntárias e comunitárias;
  • Incrementar esforços e investimentos para promover pesquisas e monitoramento sobre ecologia e efeitos do fogo em todos os biomas, considerando ecossistemas e agrossistemas, além de amplificar a importância de brigadas florestais e comunidades na produção e difusão de conhecimento;
  • Efetivar ainda mais o Sistema Nacional de Informações sobre o Fogo (SISFOGO) para promover, por meio de gestão participativa e compartilhada, a integração e a coordenação de instituições públicas, privadas e da sociedade civil e de políticas públicas e privadas na promoção do MIF;
  • Tornar o MIF uma abordagem prática transversal que fortaleça a implementação de Soluções Baseadas na Natureza relacionadas a políticas e planos de recuperação da vegetação nativa e produção florestal, gestão de bacias hidrográficas, adaptação a mudanças climáticas, pagamento por serviços ambientais, combate à desertificação e gestão de risco;
  • Comunicar para fomentar harmonia entre os diferentes setores e instituições públicas e privadas brasileiras, assim como maior entendimento sobre as dimensões ecológica, socioeconômica e cultural que o MIF enseja, induzindo um espaço propício para o exercício da cidadania. 

Para concluir

Amadurecemos ainda de maneira imatura nossa forma de lidar com o fogo ou grandes incidentes e suas sequelas são condições sem as quais não rompemos inércias? Em pequenas propriedades e em grandes países, o desafio de transicionar de um modelo de gestão de incêndios para uma modelo de gestão de fogo está posto, sendo o recrudescimento do MIF no Brasil um avanço muito importante, porém premente de maior capilaridade e transversalidade com outras agendas. Quanto maior fica a terra a se cuidar, mais intrincadas vão ficando as relações de poder e interesses que operam em prol do contrário, portanto, é preciso não parar de atuar para equilibrar investimentos, participação social e responsabilidades, diversificar temas, comunicar bem, valorizar o trabalho em campo, além de calçar tudo isso em pesquisa, monitoramento, avaliação e adaptação periódica. 

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Vinícius Gaburro de Zorzi

    Especialista em conservação na The Nature Conservancy e voluntário na Rede Nacional de Brigadas Voluntárias e OSCIP SIMBiOSE.

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