No livro “O Futuro é Ancestral”, Ailton Krenak nos lembra da importância do exercício da imaginação no nosso cotidiano e que, de algum modo, a capacidade de imaginar nas sociedades contemporâneas – aquelas que vivem sob a égide do modo de produção capitalista – está reduzida a produção de monomundos, limitada por uma monocultura do pensamento. Para Krenak, é preciso reflorestar o nosso imaginário. Alerta necessário em tempos de múltiplas crises, marcados, dentre outros aspectos, por disputas pela imaginação, incluindo a captura de nossos horizontes pelo capitalismo.
Longe da fantasia, da ilusão, a imaginação deve ser entendida como uma prática social fundamental para a construção da vida e das relações que se estabelecem entre humanos, não-humanos e mais-que-humanos. Conforme argumenta Antonio Candido, ao defender a literatura como um direito, ninguém vive sem o sonho, sem a imaginação. Assim, em um mundo em constante crise, o recurso à imaginação se coloca como uma possibilidade para a materialização de horizontes que superem as múltiplas crises da contemporaneidade. Nesse sentido, convidamos a um exercício da imaginação, que busca olhar para o passado, na tentativa de encontrar pistas para alternativas às nossas crises.
Há cerca de 4000 anos, o planeta começava a esquentar para sair enfim de sua última glaciação, a Era do Gelo finalmente estava por terminar. O último grupo de mamutes pode ter perambulando perto do que hoje é a Rússia. Eles devem ter passado por rotas que evitassem seu contato com humanos que, a essa altura, haviam caçado quase toda sua imensa população, o que acabou por provocar sua extinção completa, numa conjugação de fatores onde o clima e ação humana se somaram na aceleração do desaparecimento dos mamutes da face da terra.
Naqueles dias frios, o último grupo desses exuberantes animais possivelmente deixaram as últimas pegadas em planícies e vales a caminho da ilha de Wrangel no oceano ártico, onde se crê que tenham vivido seus derradeiros dias. Num desses vales é possível que humanos de diferentes aldeias os aguardassem ansiosos para caçá-los, o que era um dilema. Fazia frio, eles precisavam de carne, havia outras fontes de proteína, mas a caça do mamute era mais farta, assim, mesmo sabendo e tendo plena consciência de que aquele era, muito provavelmente o último grupo de mamutes que veriam ou iriam caçar – havia a opção de não fazê-lo, para garantir que houvessem mamutes nos próximos verões – no entanto, era possível que nem todas as outras aldeias pensassem assim, portanto a ideia de que caso eles não os caçassem, alguém acabaria por fazer, ganhou força. Esse era o dilema do mamute, e foi esse raciocínio tautológico e brutal que acelerou a extinção desses animais. Na sequência desse evento, as populações humanas foram todas obrigadas a mudar seus padrões de caça, muitas tiveram que migrar e outras tantas não resistiram. Ou seja, houve consequências para nós, muitas imprevisíveis para quem viveu aqueles tempos.
Enquanto a última manada fazia sua via crucis incógnita, jovens caçadores preparavam suas lanças, alguns se pintaram para caçar, se posicionando entre pedras para evitar serem vistos e contra o vento, para evitar que os grandiosos mamutes lanosos sentissem o cheiro de sua presença sórdida. Nas aldeias, certamente outros choravam e anciões que testemunharam o declínio da população de mamutes, devem ter tentado alertar sobre o risco daquela ser a última jornada de caça. Havia uma febre no ar, um quase prêmio, quem abateria o último mamute? Diante da estupidez e sentindo uma tristeza profunda, os caçadores mais antigos e mais experientes, principalmente os que sobreviveram a experiências anteriores de escassez, devem ter chorado sob o crepitar de suas fogueiras, ali eles testemunhariam por uma das primeiras vezes, o quanto a tenra humanidade podia ser estúpida, sobretudo quanto contrapunha a lógica e a inteligência, a solidariedade e a cooperação, pela ganância e pela opção pela ignorância, a valorização da ganância, da arrogância e da “esperteza” como “vantagem”. Há um famoso ditado da sabedoria popular brasileira, “farinha pouca, meu pirão primeiro” e quem pratica esse ditado, sabe que este é o último pirão. Em geral, se evoca este ditado quando se quer criticar gente egoísta e portanto, estúpida. O egoísmo é um tipo de idiotice, uma forma de burrice, de limitação cognitiva, os nossos ancestrais da idade do bronze, diante do dilema do último mamute, chegaram, com certeza, a essa conclusão antes de nós aqui nesses tempos de inteligência cada vez mais artificial.
E cá estamos milênios depois, depois de ter dominado o ferro, a escrita, ter inventado o computador e estar explorando as fronteiras quânticas, após todos os avanços e acúmulos de conhecimento, revivendo o dilema do mamute. Em um looping que vem se repetindo ininterruptamente, apesar das aparências de inovação, já que, a cada nova rodada, o objeto do desejo e da ganância se transforma. Atualmente, assumindo a forma dos combustíveis fósseis.
Assim como, possivelmente, os anciões da ilha de Wrangler buscaram alertar os caçadores sobre a iminente extinção dos mamutes, há pelo menos 50 anos, quando da realização da Conferência de Estocolmo, a comunidade científica internacional vem nos alertando em relação às ameaças da ação antrópica para os biomas do planeta, e denunciando os “mercadores da dúvida”, que como demonstraram os historiadores da ciência Naomi Oreskes e Erik Conway, não se furtam em espalhar seus projetos de negacionismo científico e de desinformação socioambiental, quer ocupando os espaço de poder, com seus senhores do caos garantindo que o negócio do momento é o “Drill, baby, drill” , quer adotando estratégias de greenwashing nas conferências das partes (COP), atuando através de lobistas junto a via legislativa, ou ainda “plantando” árvores falsas ao mesmo tempo que promove o desmatamento da floresta para construir pavilhões para a Conferência do Clima. Há uma febre no ar e, como podemos ler no 18 Brumário de Louis Bonaparte: “(…) os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
O petróleo na foz do Amazonas ja está sendo explorado pela Guiana e pelo Suriname, já vivem a sua corrida para o “ouro negro”. Na margem equatorial, a Serra Pelada submarina tem o potencial de ser um novo pré sal, o Suriname é um país que neste momento está dando um “salto de riqueza”, mal distribuída, está formando uma elite petroleira, cheia de seus próprios Curiós, tornando-se uma espécie de garimpo oceânico e fazendo do país, uma economia altamente dependente desta commoditie, aliás, com preço extremamente volátil e sensível em mercados internacionais, dependente da geopolítica num mundo de cenários incertos que inaugura novas guerras a cada movimento de tabuleiro deste jogo insano. O Brasil, ao que parece, não quer ficar atrás, quer gozar da mesma fortuna, mesmo sendo país sede da próxima COP 30 que vai reunir governos do mundo para debater a transição energética e a crise climática.
Parece um contrasenso e é. Em 2023, quando da publicação do último relatório do IPCC sobre as mudanças climáticas, uma vez mais, anunciou-se a urgência de uma transição energética, em que o consumo de combustíveis fósseis seja zero. No entanto, as vozes desenvolvimentistas, que defendem a exploração do petróleo na Foz do Amazonas, ecoam cada vez mais alto, vendendo a ideia de que o lucro proveniente da exploração é necessário para financiar a transição e para garantir o desenvolvimento econômico da região.
Tais argumentos com foco no desenvolvimento e no PIB ganham força, em particular diante de um cenário de brutais desigualdades e em que noções como “desenvolvimento” e “sustentabilidade” estão capturadas pela racionalidade neoliberal. A narrativa de que o lucro que será gerado pela exploração do petróleo será convertido para a população e aplicado na transição energética, é sedutora. Contudo, em uma sociedade regida pelo capital, em que tudo e todos são transformados em mercadoria, a lógica do lucro prevalece. E, quando se fala de novas áreas de exploração de petróleo, há que se considerar o montante do investimento – e o imperativo do retorno do mesmo, na lógica do capital – a ser feito em toda a infraestrutura para as operações e o tempo de vida útil dos equipamentos e maquinários necessários ao empreendimento, tempo que não temos.
Argumentos de que nossas Petroleras são melhores que as demais, que o furo que vão fazer na Terra está a 500 km da costa, e que a tecnologia para ferir a Terra é indolor etc e etc e etc é parte do blablabla ecológico que compõe a tal da economia verde, como se economia tivesse uma cor preferida. O impacto ambiental dessa exploração tacanha não está só nesse furo na terra, nem apenas nos peixes e baleias dos oceanos, ela começa na nossa cabeça. O impacto é na mentalidade, na formação de uma cabeça curta, de caçador de mamute, estúpido. O impacto é sobre que tipo de legado e de opção de mundo estamos fazendo, que mundo estamos fazendo? Que mundo estamos querendo construir e deixar para nossos filhos e netos e para nós mesmos. O impacto é também sobre onde vão se instalar as empresas que vão receber o petróleo e queimá-lo, onde, quando e como vão viver os que viverão para furar a Terra? Não queremos falar só dos manguezais e dos biomas e ecossistemas recém descobertos como os corais na foz do Amazonas e as verdadeiras bibliotecas de vida que representam, mas entender o que vamos deixar de lição para os que vêem optarmos em seguir matando a Terra.
A biodiversidade na foz do amazonas é extraordinária, é um dos ambientes de maior biosociodiversidade do planeta, quilombos e comunidades tradicionais afro-ribeirinhas estão na linha de frente do imenso ecocídio que representa esta exploração ignóbil, não está em questionamento aqui a qualidade técnica dos técnicos e laudistas que atestam a qualidade dos processos mas, da gestão e das agulhas que perfurarão a terra, o que está em questão aqui é o dilema moral, a questão ética para além da política. Questões que emergem dos multiplos saberes ancestrais, populares, que ecooam das florestas, dos ventos, dos rios e dos achados científicos; questionamos o certo e errado, hoje sabemos que não apenas foi errado, como foi estupido, burro e idiota caçar até a extinção os mamutes.
Vamos caçar mamutes? O convite sedutor é quase onipresente nas telas que se espalham ao alcance das nossas mãos. No mercado das ilusões do cotidiano, as narrativas falsas ganham status de verdade, a ponto de normalizar, uma vez mais, os genocídios, os ecocídios e os etnocídios contemporâneos. Infelizmente, mesmo depois de milênios da última caçada aos mamutes, os predadores continuam com sua sede de destruição, agora espalhados pelas diversas latitudes do planeta. A destruição de povos periféricos, de biomas, de humanos, de não-humanos e de mais-que-humanos, é transmitida online, das diferentes latitudes, acompanhadas de promessas de desenvolvimento e de convites para temporadas em resorts e cassinos ao alcance de um click. Em tempos de colapso ambiental, estima-se que as atividades militares são responsáveis por 5,5% das emissões dos Gases de Efeito Estufa; em Gaza, chuvas de bombas caem, apagando a existência de um povo e aqui, em terras brasileiras, a destruição chega, não por bombardeios – apesar da guerra cotidiana contra as populações das favelas e periferias –, mas através da corrosão da legislação ambiental pelos mercadores de ilusão que têm suas cadeiras no parlamento e em diferentes instâncias governamentais, com a votação do “PL da devastação”e com o novo leilão do fim do mundo, em que blocos para exploração de combustíveis fósseis são negociados. A questão posta, todos sabemos disso. No ano em que o país irá sediar a COP 30 e que anuncia seu/nosso protagonismo no enfrentamento ao colapso ambiental e climático, ainda há a intenção (prevalente?) em participar ativamente daquela que pode ser a última caçada, na busca pela glória de estar no topo dos pedestais instagramáveis, assim como pela glória de seguir repetindo erros da história
E então, vamos continuar apenas olhando para as telas e fingindo não ver as caçadas contemporâneas?
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