Nos últimos dias, envolvido com inspeções e relatórios, me vi passando pela Lagoa da Pampulha e lembrei de um bate-papo, durante uns goles de cerveja, sobre um peixe que, trazido do mundo dos mortos, fora redescrito por um amigo ictiólogo. Como uma espécie, desaparecida há 160 anos, poderia ressurgir justamente num poluído lago artificial de uma das maiores capitais do Brasil?
Com um nome um pouco complexo, Hypostomus subcarinatus nos traz uma lição apresentada como forma de um problema. Mas para falar dela, preciso explicar o que me trouxe a este fantasma. Sou pai de três filhos e, como pai, me preocupo com o futuro deles, me preocupo com o mundo que vou conseguir deixar e, dentro das inúmeras utopias que me povoam, uma delas diz respeito em tentar deixar um mundo menos pobre a eles. Minha mente é um mundo de possibilidades, não sei como, mas ela faz uma série de ligações e arremedos capazes de relacionar uma sobremesa ao reflorestamento, meus pensamentos são regrados pela teoria do caos. E na construção dos dias vou tentando fazer com que meus rastros sejam a formação de um legado, na valorização de histórias, nas relações existentes entre tantas coisas e seus emaranhados que não desconectam do agora e do porvir.
Dentro de todo este mundo organizado no caos, sabe aquele papo sobre o bagre que voltou dos mortos? Voltou hoje em meus pensamentos, dia 09/08, enquanto brincava com meu caçula e alguma parte do meu cérebro pensava no tanto de descaminhos estão subentendidos no resultado do relatório do IPCC. Tornamos o nosso futuro imediato em algo irreversível. Lamentei pela minha descendência e, então, lembrei do bagre (mais uma vez). Por que lembrei? Pela sua história de resistência.
E qual é a sua história? Por volta da metade do século XIX, o naturalista inglês (a serviço da França), François Laporte, o Conde de Castelnau, empreendeu viagens pela América do Sul. Em sua passagem pela província de Minas Gerais, descreve um loricarídeo, o Hypostomus subcarinatus, coletado “des rivière de la province des Mines”, associando a sua presença ao sistema hidrográfico do rio São Francisco. Passaram-se 160 anos até que pudesse, mais uma vez, ser retirado do obscurantismo da existência.
Um leitor empolgado diria sobre seu encontro ao longo da calha principal do Velho Chico, ou quem sabe ainda, em algum de seus afluentes que, serpenteando pelas serras, iria ao encontro do grande rio em algum ponto da grande Depressão São Franciscana. Mas não meus caros amigos, não foi em nenhum de seus afluentes dos mais garbosos como o rio Verde, o Velhas, o Paracatu ou o Urucuia. Sua emersão do esquecimento veio, de forma sorrateira e impensável em 2014, até então, das águas de um Patrimônio da Humanidade. Durante o monitoramento ictiológico da Lagoa da Pampulha, um lago artificial e poluído na zona urbana belo-horizontina, sete exemplares foram capturados trazendo mais perguntas do que respostas. Como um fantasma ressurgiu de águas poluídas de um lago urbano artificial?
No trabalho de redescrição da espécie, os autores se debruçaram sobre o itinerário de Castelnau, pois era preciso entender as origens daquele primeiro exemplar, descrito há 160 anos. E o itinerário e o cruzamento de informações foi passando por uma série de caminhos e registros, pela bacia do Paraíba do Sul, do Paraná e do São Francisco, até que, em algum ponto de seu itinerário, há a menção a visita na vila de Curral del Rei, a atual cidade de Belo Horizonte. Ali, perdida entre serras, estava a fonte da primeira descoberta, em algum ponto do que hoje é a capital mineira. Ao longo das pesquisas, no levantamento do resultado de campanhas ictiológicas para toda região, não houve nenhuma menção sequer nos últimos 160 anos para esta espécie, o que torna especial, o seu único local de ocorrência atual, a Lagoa da Pampulha. Este dado, por si só, deveria minimamente causar uma comoção, pelo menos aos mineiros de coração. Como uma lenda, não existente em localidade nenhuma mais de Minas Gerais, resistiu ali, naquela lagoa assoreada e cheia de detritos?
Formada artificialmente a partir de 1938 com o represamento e captação de águas de uma série de ribeirões, foi durante a década de 1940 que a lagoa começou a receber, em seu entorno, todo conjunto arquitetônico que viria, em nossos dias, transformá-la num Patrimônio Mundial reconhecido pela UNESCO. A maior riqueza dela, maior que o paisagismo de Burle Marx, que as curvas de Oscar Niemeyer e que a arte de José Pedrosa, Alfredo Ceschiatti e Cândido Portinari, está lá no fundo, em meio ao lodo e aos metais pesados descarregados todos os dias pelos rios e ribeirões sem tratamento que correm para lagoa.
Sua redescrição nem sequer é recente, ocorreu no início de 2019 e nas minhas buscas sobre notícias na época, não encontrei nenhuma menção a tão ilustre belo-horizontino. Esquecido por tanto tempo, nem sequer lembrado no seu retorno.
Não gozamos de uma boa conjuntura ambiental, nosso futuro imediato é sombrio e, ainda assim, a vida nos dá exemplos de resiliência, de que ainda podemos e devemos mudar nossos caminhos na Terra. Um bagre, o Hypostomus subcarinatus, esfrega na nossa cara uma história de resistência, de que mesmo em ambientes altamente degradados, a espécie resistiu. Quantas espécies ainda resistem nas brenhas de nossa ignorância, aguardando para serem redescobertas ou descobertas? O que nós faremos? Deixaremos com que desapareçam definitivamente? Qual será o seu futuro?
Talvez muitos de vocês se perguntem qual é a função desta espécie, talvez façam a pergunta que escutei de um amigo de infância enquanto tentava explicar a necessidade da ciência e da preservação de espécies em tempos tão sombrios mundialmente (para que servem peixes de poças d’água?). Não sei como vocês pensam e nem o que farão, mas ao olhar o meu caçula, mineiro de nascimento, e suas irmãs, não me resta alternativa que não seja continuar fazendo a minha parte. Informar, ajudar a preservar, estudar para quem sabe um dia, no derradeiro dia, possa entregar a eles um mundo minimamente aceitável, com parte da riqueza que existia nele como no dia que cheguei ao mundo e o recebi de meus pais. Como podemos preservar o que ainda resta em tempos em que o radicalismo de pensamentos e o climático esmurram a nossa realidade? Eu ainda não tenho as respostas, mas reside em mim a perspectiva de mudança com mais esta história.
Agradecer aos pesquisadores que trouxeram das sombras esta espécie é o mínimo a ser feito. Agradeço a todos eles, na figura do Yoshi (Tiago Pessali), quem me contou esta história da descrição (em que é um dos autores), entre goles de cerveja e doses de esperança. Para finalizar, pergunto a vocês: Qual será o seu legado?
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Quanto ao nome popular:
De forma geral os Siluriformes, ordem na qual Hypostomus subcarinatus pertence, são chamados de bagres (em inglês, catfishes). De maneira geral os Loricariidae, família na qual H. subcarinatus pertence, são chamados de cascudos (em inglês, armored catfishes).
Abs.,
Yoshi.
Lourival, como respondi anteriormente, em alguns locais do Brasil o termo bagre também é utilizado para se referir aos “bodós”, peixes da ordem dos Siluriformes. Grato pelas palavras.
Esse peixe, não é um bagre. Cascudo é a designação comum aos peixes siluriformes da família Loricariidae, também conhecidos como caximbau, acari, acari-bodó, bodó, cari, boi-de-guará e uacari. Os loricariídeos são peixes exclusivamente de água doce, que habitam os rios e lagos da América Central e do Sul. Wikipédia
Nome científico: Loricariidae
Família: Loricariidae; Rafinesque, 1815
Filo: Chordata
Ordem: Siluriformes
Reino: Animalia
Classe: Actinopterygii
Simplesmente fantástica essa história, seja pelo lado surpreende da resistência do peixe, ou pelo “incômodo” sobre o nosso Caos e pelo ato singelo de ver nela qual o futuro que queremos para nossos filhos e nosso planeta. Parabéns! Lido e compartilhado com prazer.
Siluriformes são conhecidos popularmente como bagres, bodós e acaris, apenas para citar alguns exemplos. Em relação a coleta de material para análise, a coleta de sete exemplares não representa a extinção dos peixes, que continuam existindo na Lagoa da Pampulha, monitorada ao longo do tempo. Grato pelas palavras.
Jaime, em muitos locais, mesmo os cascudos, são chamados popularmente de bagres, bodós e acaris. As denominações populares variam de região para região, como já pude escutar ao longo de anos de pesquisa. Sobre o material estudado, não há nenhuma menção de que seriam os últimos sete, mas que existe um trabalho de monitoramento em que exemplares foram recolhidos para estudo, confirmando sua identidade. Obrigado pelas palavras.
Só não entendi porque da matéria vhamar um solene Cascudo de “bagre”, já que se trata de agrupamentos de peixes completamente distintos entre si.
Também, claro, com a noticia da coleta de sete exemplares da raríssima eespécie redescoberta, não pude deixar de imaginar se não eram estes que hoje jazem no formol de alguma universidade os últimos sete… Isso já aconteceu antes com outras especies muito raras…