Em tempos de agravamento da emergência climática é cada vez mais urgente refletir sobre o tipo de relação que construímos com e na natureza – concebida historicamente nas sociedades ocidentalizadas como se o ser humano não fosse parte dela mas um ente separado – e de como essas conexões precisam ser (re)pensadas a partir de perspectivas integradoras, inclusivas e plurais, que envolvam todos os seres vivos e as garantias necessárias para uma vida de qualidade em sociedade e no planeta.
A arte possibilita captar e questionar padrões e preocupações de uma sociedade, o chamado espírito do tempo. Nas manifestações ligadas ao Carnaval brasileiro, os desfiles das Escolas de Samba apresentam temas que traduzem questões fundamentais para as sociedades que as produzem, o país e, até mesmo, a coletividade planetária. No espetáculo-competição, as Escolas de Samba compartilham múltiplas visões de mundo com um público amplo e heterogêneo, provocando emoções, reflexões e inspirações capazes de questionar atitudes e comportamentos.
A apresentação de saberes ancestrais e perspectivas atualizadas de se conceber e de se viver a vida se expressa como um convite às reconfigurações de uma sociedade ocidentalizada e colonizada também por possibilidades distintas de relação com a natureza e com múltiplas noções de natureza existentes. Mas, então, a natureza dá samba? Partindo dessa questão inspiradora, as Escolas de Samba do Grupo Especial do carnaval do Rio de Janeiro provam que sim, como discutimos em resultados preliminares desta pesquisa.
Nos desfiles, tradicionalmente são apresentadas cosmovisões afrodiaspóricas e, mais recentemente, as dos povos originários, tratados ainda como temas secundários na educação formal majoritária, mesmo após as Leis 10.639/03 e 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino das Histórias e Culturas Afro-Brasileira e Indígena, respectivamente. Mas, historicamente, os sambas de enredos, subgênero do samba urbano carioca, que Nei Lopes e Luiz Antônio Simas identificam como originário da cultura banto-africana, vêm transmitindo mensagens importantes e urgentes sobre a necessidade do cuidado e da proteção da natureza, fazendo ecoar o tema para o território nacional e outros países.
Esse é o tema central do projeto de pesquisa intitulado Samba e Natureza, ancorado institucionalmente no Cefet/RJ, iniciativa criada no Carnaval de 2024, tendo como inspiração o desfile da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, tradicional Escola de Samba da cidade do Rio de Janeiro. Nesse ano, a Escola reeditou o samba do Carnaval de 1993, intitulado “Gbalá – Viagem ao Templo da Criação”, uma composição de seu presidente de honra, o compositor e intérprete, Martinho da Vila. “Gbalá”, do iorubá “socorrer quem está em perigo”, narra uma história ancestral da cosmogonia africana na qual Oxalá, orixá criador da humanidade, adoece em decorrência da destruição do planeta causada pelos seres humanos. No desfile da Vila Isabel, o Orixá, doente e perturbado pela destruição do mundo, termina sendo salvo por uma criança – representando todas as crianças do mundo – que com a sua inocência, amor e espírito de renovação, salva o criador e o planeta Terra.
Sob essa inspiração, o projeto tem como proposta identificar e discutir de que forma a polissêmica noção de Natureza vem sendo interpretada nos sambas de enredo das Escolas de samba do Grupo Especial, no Rio de Janeiro, buscando contribuir para a construção de um debate qualificado sobre as representações das noções de Natureza nas artes, em especial, no samba, gênero musical reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil (2007). Como base teórica, o grupo dialoga com o pensamento e as propostas de Ailton Krenak, Chimamanda Ngozi Adichie, Alberto Acosta, Davi Kopenawa, Antônio Bispo, Philippe Descola, Malcom Ferdinand, Nancy Mangabeira Unger, Luiz Antônio Simas, Milton Cunha, Marcello de Mello, entre outras referências. Isso significa compreender os desfiles das Escolas de Samba como uma expressão de produção de subjetividades afrodiaspóricas, profunda e intrinsecamente enraizadas na dimensão espiritual que origina todas as demais, o que permeia as análises e os resultados da pesquisa que também compreende como indissociável a relação entre sociedade, natureza e cultura.
Na primeira fase da pesquisa foram analisadas as letras dos sambas de enredos dos desfiles do Grupo Especial do Rio de Janeiro entre os anos de 1984 e 2024, compreendendo 40 anos, desde a inauguração do Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Oficialmente intitulado Passarela Professor Darcy Ribeiro, o Sambódromo, inaugurado em 1984, se consolidou como palco principal de uma das maiores festas populares do país e, em 2021 foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Além disso, a Lei Nelson Sargento, de 14.567/23, reconhece os desfiles, músicas, práticas e tradições das Escolas de Samba como patrimônio cultural imaterial e manifestação da cultura nacional.
Natureza em múltiplas visões
Por meio dessa pesquisa, foram sistematizadas e analisadas 533 letras dos sambas de enredo interpretados por 30 Escolas de Samba entre 1984 e 2024. Desse total, até o momento, foram selecionadas 54 letras por mencionarem e ilustrarem, mais diretamente, a relação com o tema natureza. Nesse contexto, foram identificadas 63 menções distintas sobre natureza, conforme pode ser observado na imagem, a seguir:
São muitas as interpretações de natureza como: “mãe terra”, “natureza abençoada”, “natureza dominada”, “eldorado”, “paraíso divinal”, “jardim sagrado”, “terra cobiçada”, entre outras, agrupadas em categorias como natureza ameaçada; exuberante; preservada; materializada; materna; personificada; sagrada; e encantada, o que ilustra o caráter diverso expresso nas letras analisadas.
No caso do samba “Vida que te quero viva”, da G.R.E. S. Unidos da Ponte (1989), momento pós Constituição Federal de 1988, que instituiu a qualidade do meio ambiente como um direito constitucional, a composição de Gerson PM, Jorginho do Axé e Renato Camunguelo se destaca pela crítica social na qual prevalecem as categorias natureza exuberante, ameaçada e personificada:
“Campo em flores
E as matas verdejantes, ô
Que a natureza nos deixou (nos deixou)
Vida que te quero viva
Cheia de esplendor
Os caçadores de riquezas
Sem medir sua frieza
Roubam o que a terra tem de bom
Na cidade grande
Não tem ar puro, só há poluição
S.O.S. à Mãe Natureza
Parem serras e queimadas (bis)
Deixa a beleza
(…)”
Já na década de 1990, marcada pela realização da Rio 92 e do assassinato do seringueiro e ativista socioambiental Chico Mendes, em dezembro de 1988, a Escola de Samba Lins Imperial (1991) faz uma homenagem ao ambientalista com o samba “Chico Mendes, o Arauto da Natureza”, composição de João Banana, Jorge Paulo, Serjão e Tuca. Nela, percebe-se a natureza ameaçada, exuberante, encantada e preservada:
“Quanta maldade é ver
O homem destruir
O que hoje encanta (bis)
A Sapucaí
Amazônia
Que verde encantador
Fauna tão linda
Um verdadeiro festival de cor
Terra rica em frutos e pesca
Chico foi o mensageiro (bis)
Em defesa da floresta
Os invasores, por ambição
Calaram Chico
Dando sequência à destruição
(…)”
Ainda nessa mesma década, o samba de inspiração da pesquisa: “Gbalá – Viagem ao Templo da Criação”, da Escola G.R.E.S Unidos de Vila Isabel (1993), uma composição de Martinho da Vila reeditada para o carnaval de 2024, retrata a natureza como sagrada, ameaçada e personificada:
“Viram como foi criado o mundo
Se encantaram com a Mãe Natureza
Descobrindo o próprio corpo,
compreenderam
Que a função do homem é evoluir
Conheceram os valores do trabalho e do amor
E a importância da justiça
Sete águas revelaram em sete cores
Que a beleza é a missão de todo artista
Gbalá é resgatar, salvar
E a criança, esperança de Oxalá
Gbalá, resgatar, salvar
(…)”
Na década seguinte, foram mapeados mais de vinte sambas de enredo que ilustram, claramente, as múltiplas noções de natureza encontradas na pesquisa. Essa década foi marcada pela adoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), expressos em oito metas globais acordadas por 191 países signatários, dentre eles o Brasil, no âmbito da ONU (2000), tema do desfile da G.R.E.S. Portela (2005): “Nós podemos: oito ideias para mudar o mundo!”. A composição de Noca da Portela, Darcy Maravilha, J. Rocha e Noquinha defende a importância da natureza preservada:
“(…)
Respeitando os direitos da mulher
Dando a juventude um novo amanhã
Saúde, corpo e mente sã
Combater o HIV
E toda epidemia que aparecer
Preservar a natureza
Ver o bem vencer o mal
A ONU e o samba, parceria ideal
Pro desenvolvimento mundial
(…)”
Destaque também para o samba “Xingu, o Clamor Que Vem da Floresta”, da Imperatriz Leopoldinense (2017), com composição de Adriano Ganso, Aldir Senna, Jorge do Finge e Moisés Santiago, que exemplifica os sambas analisados, na década de 2010, quando a cidade havia sediado a Rio + 20, em 2012. Aqui, a natureza se destaca como ameaçada, sagrada e preservada por meio de uma letra que ressalta a resistência da cultura indígena da região amazônica:
“(…)
Salve o verde do Xingu, a esperança
A semente do amanhã, herança
O clamor da natureza, a nossa voz vai ecoar
Preservar
Brilhou a coroa na luz do luar
Nos troncos, a eternidade
A reza e a magia do pajé
Na aldeia com flautas e maracás
Kuarup é festa, louvor em rituais
Na floresta, harmonia, a vida a brotar
Sinfonia de cores e cantos no ar
O paraíso fez aqui o seu lugar
Jardim sagrado, o caraíba descobriu
Sangra o coração do meu Brasil
O belo monstro rouba as terras dos seus filhos
Devora as matas e seca os rios
(…)
De 2020 até o momento, vem se registrando uma rica seleção de sambas de enredo que articulam a temática da natureza. No mesmo ano da reedição do samba da Vila Isabel “Gbalá – Viagem ao Templo da Criação” (2024), temos também o samba “Hutukara”, do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro, uma composição de Pedrinho da Flor, Marcelo Motta, Arlindinho Cruz, Renato Galante, Dudu Nobre, Leonardo Gallo, Ramon Via 13 e Ralfe Ribeiro. O samba homenageia o povo indígena Yanomami, simbolizando a luta pela defesa da Amazônia, no qual a Escola alerta sobre a degradação ambiental e sobre as violações dos direitos dos povos indígenas. Percebe-se aqui, a prevalência da categoria de pesquisa intitulada natureza sagrada e ameaçada:
“(…)
Ya temí xoa, aê-êa
Ya temí xoa, aê-êa
Meu Salgueiro é a flecha pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta é um Brasil cocar
É Hutukara, o chão de Omama
O breu e a chama, deus da criação
Xamã no transe de Yãkoana
Evoca Xapiri, a missão
Hutukara ê, sonho e insônia
Grita a Amazônia antes que desabe
Caço de tacape, danço o ritual
Tenho o sangue que semeia a nação original
(…)”
Diante da riqueza dos temas abordados nesses sambas de enredo, o projeto Samba e Natureza busca, com as análises, contribuir para a dinamização do debate sobre a necessidade de reconexão da sociedade com a natureza, compreendendo, nesse contexto, o potencial fundamental desse elemento cultural ancestral para a sensibilização em relação a comportamentos que estão direta ou indiretamente relacionados à natureza.
Os resultados reafirmam a capacidade de alcance e o poder educativo do samba, como expressão artística, tanto na comunicação de temas importantes para a sociedade, como apontando caminhos para a construção de mundos possíveis a partir dos saberes afrodiaspóricos e cosmovisões dos povos originários. Afinal, como nos lembra Ailton Krenak, o futuro é ancestral. Não por acaso, em ambas as perspectivas não há separação entre humanidade e natureza, mas sim vivências integradoras, inclusive dos corpos, no caso dos desfiles, os corpos performáticos. Ao tratar da natureza nas temáticas dos desfiles, as Escolas de Samba tendem a amplificar as reflexões sobre questões globais como a crise climática, a perda de biodiversidade, o aumento da poluição, entre outras. Que mais sambas de enredo com a temática da natureza possam ser “semeados” para que possamos fruir uma compreensão cada vez mais profunda e poética sobre a importância da natureza para a existência humana e a coexistência da humanidade com outras formas de vida no planeta.
Integram a equipe da pesquisa, o pesquisador Marcelo Lima, turismólogo e sociólogo, professor convidado da Pós-Graduação em Patrimônio Cultural do Cefet/RJ e pós-doutorando do Instituto de Psicologia da UFRJ; a turismóloga e docente do curso de Gestão de Turismo e da Pós-Graduação em Patrimônio Cultural do Cefet/RJ, Claudia Fragelli; além da jornalista e pesquisadora integrante do Grupo de pesquisa Gapis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Elizabeth Oliveira; a psicóloga e responsável pela Seção de Sustentabilidade da Universidade Federal Fluminense (UFF); e o historiador e turismólogo, Nadson Souza, professor titular do Cefet/RJ.
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