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Na Amazônia, bloco de Carnaval reúne milhares de foliões no manguezal

“Pretinhos do Mangue”, em Curuçá (PA), exalta a cultura do mangue na festa mais popular da Terra, mas festejo coincide com o defeso do caranguejo-uçá, que deveria ser deixado em paz no período

Alice Martins Morais ·
19 de fevereiro de 2024

No município de Curuçá (PA), o bloco de Carnaval “Pretinhos do Mangue” usa a lama do manguezal como abadá. Milhares de foliões entram em uma área desse ecossistema quando está com a maré baixa e se deparam com o tijuco, como é chamado esse solo lamoso, e sujam o corpo como parte da “fantasia” antes de sair para a avenida. No entanto, essa interação humana provoca pisoteios aos crustáceos e outros animais que ali vivem e uma inserção de lixo na natureza que levanta preocupações.

Esse não é o único bloco de Carnaval do Brasil que usa esse tipo de  “pintura” do corpo. Em Paraty (RJ), por exemplo, a lama é o adereço que serve de base para fantasia de humanos da época das cavernas, pré-históricos. Já em Olinda (PE), o bloco Mangue Beat homenageia a obra do artista Chico Science.

Já em Curuçá, a história começou no carnaval de 1989, quando dois moradores, Everaldo Campos e Sebastião Araújo, estavam se preparando para a folia e foram ao manguezal pegar caranguejo para o tira-gosto. Não encontraram nenhum, porque esse é o período da “andada” (reprodução) da espécie prevalecente do município, o caranguejo-uçá, que sai de sua toca e percorre o manguezal para acasalamento e liberação dos ovos. Como não acharam o animal, eles mesmos se fantasiaram à sua semelhança, com lama pelo corpo e alguns galhos na cabeça. A brincadeira chamou a atenção de amigos e a cada ano foi se firmando essa tradição com cada vez mais pessoas.

Em 2000, o irmão de Everaldo, Edmilson Campos, o “Cafá”, assumiu o comando do bloco, nomeando oficialmente como Pretinhos do Mangue, criando a identidade visual e atraindo a atenção da imprensa. Quando se tornou notícia nos telejornais, até mesmo em nível nacional, começou a tomar uma proporção maior. Neste ano, foram mais de 17 mil brincantes percorrendo as ruas do pequeno município que tem aproximadamente 41 mil pessoas e 676 km².

Além das pessoas cobertas por lama, o Pretinhos do Mangue se caracteriza por um carro alegórico que, apesar de não ter a dimensão de grandes carnavais como do Rio de Janeiro, não passa despercebido e faz a alegria dos foliões. Carrega um grande caranguejo-uçá mecanizado, que se mexe e solta espuma. No carro, crianças moradoras da cidade acenam e dançam. Tudo isso em um trajeto de 1 km agitado por músicas de Carnaval e ritmos regionais paraenses. “A nossa ideia é unir a alegria do carnaval com a preservação do meio ambiente e, ao longo do ano, participamos de ações como mutirões de limpeza das praias da cidade”, ressalta Cafá.

Segundo Henrique Campos, secretário de turismo de Curuçá, a Prefeitura e as secretarias municipais fazem um esforço, em conjunto, para realizar o Carnaval com primor. Na entrada da cidade, os turistas chegam a ser recebidos pelo próprio secretário de turismo, que distribui panfletos com mapas e informações adicionais. Pelas ruas, são incontáveis os policiais, guardas e seguranças contratados para o evento. Mas no porto do Pretinhos do Mangue, onde os brincantes descem para se sujar de lama, a reportagem de ((o))eco não viu cestos de lixo ou testemunhou orientações sobre os limites a se respeitar na área. “Tem os resíduos do Pretinhos do Mangue, mas logo depois passam os garis limpando e no dia seguinte também”, relatou o secretário. No entanto, depois de poucas horas de concentração já se tinha um grande acúmulo de latinhas, garrafas e outros resíduos.

Mesmo após a limpeza feita pela equipe da Prefeitura, na manhã seguinte ainda foi possível encontrar vários resíduos no porto que acabam ficando pelo caminho. Campos também destacou que há decreto municipal que proíbe a venda de produtos com embalagem de vidro durante o Carnaval na chamada Avenida da Folia, mas mesmo assim era comum encontrar infrações a essa regra. Soma-se a isso o fato de que a rede de esgoto vai parar bem ali no manguezal. Então, quando a maré enche, toda a sujeira segue junto o caminho da água, podendo adentrar os rios e oceano.

Nilson Monteiro, presidente da Associação dos Caranguejeiros da comunidade de Arapurí (em Curuçá), se preocupa com os impactos a curto, médio e longo prazo dessa atividade humana descoordenada no manguezal e o acúmulo de lixo no ecossistema, não apenas no Carnaval, mas no decorrer do ano no município. Para ele, o poder público e a organização deveriam mitigar esses danos com um sistema de rodízio de locais para aglomeração. “Já são muitos anos que a concentração é nesse porto do Pretinhos. A meu ver, poderiam variar a rota para deixar aquele local ‘respirar’, se recuperar””, diz. O sistema de rodízio de rotas é uma técnica utilizada hoje no ecoturismo em muitos locais, optando por revezamento de trilhas para reduzir a intensificação do impacto humano em áreas preservadas.

A organização do bloco chega a disponibilizar alguns baldes com o tijuco para quem quiser se sujar sem adentrar nesse ambiente e Cafá comenta que há uma recomendação de que as pessoas se sujam em uma parte do manguezal chamada “terê-terê”, que é mais mole, e com um mergulho já é possível cobrir todo o corpo, mas na realidade muitas pessoas acabam ficando por muito tempo na lama, deitando no chão e brincando como desejarem.

Assista a vídeoreportagem de ((o))eco

Paralisação de agentes ambientais durante o defeso fragiliza a fiscalização

Uma das questões que mais trazem preocupação para Monteiro é que o Carnaval acontece no período do defeso, ou seja, da reprodução do caranguejo-uçá. O defeso é definido em três ciclos nos primeiros meses do ano e, em 2024, a segunda fase foi justamente de 10 a 15 de fevereiro. Nesses dias, a pesca e venda dessa espécie é proibida, para garantir o crescimento e reprodução do animal. “O certo era deixar esses animais em paz durante o defeso, mas durante o Carnaval a gente chega a ver pessoas pegando e às vezes matando o caranguejo por pura brincadeira, sem pensar que ali é uma vida”, denuncia o presidente da Associação dos Caranguejeiros.

Além disso, a fiscalização do defeso está fragilizada porque coincidiu com a paralisação dos servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que, desde o início de janeiro, aderiram ao movimento iniciado pelos colegas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), como uma forma de pressionar o governo por reajuste salarial e a reestruturação na carreira de especialista em meio ambiente. 

Para o chefe do Núcleo de Gestão Integrada da região do Salgado Paraense do ICMBio, Rodrigo Figueiredo, não se pode deixar de reconhecer o papel cultural e econômico que o Carnaval, especialmente o bloco Pretinhos do Mangue, tem na cidade, mas o ideal seria que não houvesse essa atividade humana intensa nos locais onde há a andada. “Podia-se pensar em rotas que não interferissem no percurso do caranguejo para evitar danos ao animal”, sugere o servidor. De acordo com Figueiredo, o ICMBio não possui hoje dados que confirmem ou não os possíveis impactos dessa folia no manguezal, mas ele acredita ser importante ter uma atenção maior ao caso.

Vale ressaltar que, além de ser base para a economia e alimentação local, o caranguejo-uçá é muito importante para o equilíbrio ecológico, pois recicla a matéria orgânica do manguezal quando faz a escavação e limpeza de sua toca.

Foto: Matheus Melo

Apenas uma das sete reservas marinhas da região tem plano de manejo

A Reserva Extrativista (Resex) Mãe Grande de Curuçá não possui plano de manejo, mesmo 22 anos depois de sua criação. “Isso dificulta que se tenha diretrizes claras para como deve ser feito o uso sustentável da reserva e sem essas definições é mais difícil fazer o trabalho de gestão de resíduos, por exemplo, e a fiscalização dessa área”, explica Rodrigo Figueiredo.

Curuçá está na Região do Salgado, no nordeste do Pará, onde existem mais seis Resex do bioma marinho, sendo que apenas uma possui plano de manejo, de acordo com Figueiredo – a Resex de Maracanã, cujo plano ficou vigente apenas este ano. É o objetivo da gestão atual criar o documento para todas. A previsão é realizar uma oficina técnica em Curuçá com diversos atores locais direta e indiretamente envolvidos com a reserva, e, a partir daí, concluir o plano dentro de um ano.

Orla da cidade de Curuçá (PA) com o mangue na maré baixa. Foto: Matheus Melo

A Resex tem uma área que abrange aproximadamente 37 mil hectares de estuário – região onde as águas de rios interagem com o oceano – e é povoada por famílias de cerca de seis mil pescadores, divididas em 49 pequenas comunidades instaladas em ilhas, furos, rios e praias da região. O objetivo da unidade de conservação é promover o uso sustentável dos recursos naturais renováveis pela população tradicional .

Para se ter uma ideia, atualmente não há clareza suficiente junto aos órgãos responsáveis de como oferecer o Seguro-Desemprego do Pescador Artesanal (SDPA) referente ao caranguejo-uçá. Mais conhecido como “seguro-defeso”, é um benefício governamental de um salário mínimo pago a quem depende exclusivamente da pesca de pequeno porte. Já que não recebem essa quantia, segundo Nilson Monteiro, os pescadores que trabalham com o caranguejo-uçá têm dificuldades de se manter durante a andada.

Lixo nos manguezais é tema de outro bloco no município

Em Curuçá, também há o bloco Curral do Piça que traz mensagens ecológicas. Criado em 2000, homenageia o pescador conhecido como Piça, que reclamava que no seu curral (armadilha para pegar peixe) só entrava lixo. O bloco, então, tem como carro alegórico uma simulação de curral repleto de itens que costumam ser encontrados no lugar do peixe, como garrafas pet, sandália sem par e eletrodomésticos velhos. “A brincadeira se tornou grande e recebe muitas famílias, especialmente no pré-carnaval de Curuçá”, conta José Tavares Júnior, coordenador do bloco.

O Curral do Piça faz três apresentações ao longo da temporada de Carnaval e reúne uma multidão, puxado também por outro carro alegórico, a Barraca do Voado (que também desfila no Pretinhos do Mangue), que representa uma barraca tradicional de pescador, inclusive assando fogo e peixe de verdade.

Esta história foi produzida como parte da bolsa de reportagem 2024 da Internews/Earth Journalism Network.

  • Alice Martins Morais

    Jornalista freelancer e especialista em Comunicação Científica. Sua cobertura foca especialmente em temas relacionados ao Meio Ambiente, Ciência e Amazônia.

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Comentários 1

  1. Beatriz Melo diz:

    ótima matéria, parabéns
    !