Nem todos os brasileiros sabem que nosso país possui uma das leis mais inovadoras em conservação da natureza do mundo. A Lei do SNUC, aprovada em 18 de julho de 2000, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, ou seja, define o que são as áreas que devem ser protegidas, onde estão e quais são as regras para visitação, exploração e gestão. Mas essa legislação, que é referência no mundo, tem sofrido todo tipo de pressão no Congresso para enfraquecimento da proteção das Unidades de Conservação.
A bancada ruralista está mais representativa do que nunca e com um poder grande de articular votações e driblar o regimento da Câmara dos Deputados e do Senado para acelerar a aprovação de projetos de interesse de grupos econômicos específicos, como o agronegócio e a mineração.
Mas antes, de falar sobre as ameaças, vamos entender um pouco mais sobre a importância e a história do SNUC. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação é importante porque introduziu a temática na agenda brasileira, em sintonia com as discussões contemporâneas relativas à conservação da biodiversidade. Muito provavelmente é um dos únicos no mundo por garantir o direito dessa e das futuras gerações ao meio ambiente equilibrado, respaldado pela Constituição Federal, em seu artigo 225.
Antes de ser regulamentado, havia apenas um Decreto de 1979 que regulamentava os Parques Nacionais. A Fundação Pró-Natureza (Funatura) foi responsável pela elaboração do anteprojeto de lei do SNUC. Entre os anos 1988 e 1989, uma equipe de oito profissionais trabalhou nos conceitos de unidades de conservação e suas características para então apresentar o texto que daria origem à lei. O trabalho se deu por meio de convênio com o então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A iniciativa era liderada pela ambientalista Maria Tereza Jorge Pádua, então presidente da Fundação Pró-Natureza (Funatura), com a presença de Maurício Mercadante Coutinho, na coordenação técnica, e dos consultores Ibsen de Gusmão Câmara, Miguel Serediuk Milano, Jesus Manoel Delgado, Angela Tresinari Bernardes, José Pedro de Oliveira Costa e Cesar Victor do Espírito Santo. O texto desenvolvido para o SNUC garantiu ao Brasil participar do movimento global de conservação de áreas protegidas. As categorias descritas vieram da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), um guarda-chuva mais amplo. O advogado e ambientalista Fábio Feldmann (deputado federal de 1987 a 1999) foi o relator do SNUC na Câmara dos Deputados, e é também responsável pelo texto do artigo sobre meio ambiente da Constituição.
Para Feldmann, vivemos agora um contexto político muito mais conservador, com objetivo de esvaziamento dos SNUC. “Temos que estabelecer uma estratégia de resistência. O mundo caminha na direção de exigir a proteção da biodiversidade. O SNUC é isso: área protegida significa proteger a biodiversidade. O que temos que conseguir, do ponto de vista da comunidade internacional, é apoio para conservar e ampliar essas áreas, porque tem biomas mal representados. No campo nacional, precisamos mostrar que área protegida significa uma economia geradora de postos de trabalho, renda e desenvolvimento regional. São os dois grandes esforços que temos que fazer”, afirma.
Origem da Rede Pró UC
Foi justamente no período de desenvolvimento do SNUC que nasceu a Rede Nacional Pró Unidades de Conservação, integrada pela Funatura e instituições como Ecotrópica, Biodiversa, Fundação Neotrópica, Fundação Grupo Boticário, Mater Natura, Instituto Direito, Instituto o Direito por um Planeta Verde, Amigos da Terra e Fundação Museu do Homem Americano, Pangea e Fundação Brasileira para Conservação da Natureza (essas duas últimas já extintas). “Foram organizações que decidiram se unir para aumentar o poder de pressão no Congresso, e assim, aprovar texto”, lembra Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Pró UC desde 2013.
Desde então, a Rede Pró UC, junto com instituições parceiras tem atuado na defesa dessas áreas e, quando possível, apoiado os processos de criação. “É um trabalho incansável de muitas pessoas e organizações que ajudou a articular e consolidar grande parte das Unidades de Conservação, como os Parques Nacionais que existem hoje, por exemplo”, recorda Kuczach.
O que havia antes em matérias de Unidades de Conservação
No âmbito federal, antes do SNUC, o Brasil tinha cerca de 20 milhões de hectares em Unidades de Conservação. Isso desde 1937, quando foi criado o primeiro Parque Nacional, o Itatiaia, até o ano 2000, um período de 63 anos.
O que existe hoje
Após a regulamentação do SNUC, foram criados mais de 60 milhões de hectares, em ambientes terrestres, e mais de 90 milhões de hectares, em ambientes costeiros-marinhos, em âmbito federal.
De acordo com levantamento do Ministério do Meio Ambiente (2019), o Brasil possui oficialmente 2.446 Unidades de Conservação distribuídas em todos os biomas. Mas nos últimos três anos, foram criadas centenas de outras UCs, incluindo diversas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN). Após um levantamento de dados públicos feito estado por estado, junto a órgãos públicos regionais e federais, como o próprio ICMBio, a Rede Pró UC estima que o número já ultrapasse 3,6 mil.
A Rede Pró UC fez também um levantamento para descobrir quais governos criaram mais Unidades de Conservação.
UCs criadas por Governo Tamanho total (há) No de Unidades
- Michel Temer 93,8 milhões
- Lula da Silva 26.8 milhões
- Fernando Henrique Cardoso 20.8 milhões
- José Sarney 14.5 milhões
Mais ameaçado do que nunca
Desde a aprovação do SNUC, houve um aumento bem grande no número e no tamanho das Unidades de Conservação. Apesar disso, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação está mais ameaçado do que nunca, principalmente pelo Projeto de Lei 2001/2019, o pior da história e que está avançando dentro do Congresso porque a Bancada Ruralista comprou a pauta e quer votar a qualquer preço.
O PL, de autoria do Deputado Federal Pinheirinho (PP/MG), propõe alterar a Lei do SNUC para que todas as Unidades de conservação que tiverem pendências na desapropriação de propriedades privadas, há mais de cinco anos, simplesmente deixem de existir.
“O PL estabelece que deve haver dotação orçamentária necessária e completa que garanta a indenização de áreas privadas afetadas. Além disso, prevê que o processo de indenização seja concluído em um prazo de cinco anos e em caso de não cumprimento do prazo, o ato de criação da unidade caducará”, diz o trecho doPL 2001/2019.
O texto permite ainda áreas particulares dentro dos limites dos parques nacionais, categoria que hoje é de posse e domínio públicos. Os parques nacionais, unidades de proteção integral, são incompatíveis com áreas particulares e têm como objetivo de preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica.
O PL também prioriza a propriedade privada em detrimento ao direito da coletividade ao meio ambiente, desrespeitando a função socioambiental da Unidade de Conservação e colocando em risco atributos que merecem ser protegidos. Além disso, dificulta a criação de novas unidades de conservação públicas, ao condicionar a criação ao governo ter dinheiro em caixa para indenizar os proprietários afetados. Confunde, assim, a criação com a sua implementação, que pode ser feita depois.
Momento no Congresso
Há um movimento político muito forte para pressionar as unidades de conservação, não só pela Bancada Ruralista, mas também por outros setores como da mineração. Apesar do potencial do SNUC, o fato de não estar sendo implementado, torna as Unidades de Conservação muito frágeis e reforça ainda mais as ameaças de dentro do Congresso. Como um ciclo vicioso: as UCs não são implementadas, com isso não geram ativos, por isso são questionadas e as riquezas que estão lá dentro são cada vez mais visadas.
“Proteger a biodiversidade é importante do ponto de vista ético, legal e também do ponto de vista estratégico de desenvolvimento. O que estamos vivendo é um momento muito particular do Brasil, em que a representação política está muito comprometida com o atraso. Mas essa posição não vai se manter por muito tempo e isso tende a mudar a curto prazo. A médio prazo, tudo indica que se deve aumentar as áreas protegidas, investir em outros modelos de gestão e o poder público deve investir no sentido de diminuir as tensões com pressão fundiária. O médio prazo ‘milita’ a nosso favor, mas temos esse período de resistência”, assegura o ambientalista Fábio Feldmann.
Desmatamento
Nos últimos anos o desmatamento vem crescendo muito dentro das Unidades de Conservação. As ameaças refletem o momento que o país vive, com apologia ao crime ambiental. De 2000 a 2021, a supressão de floresta em estágio primário e secundário em Unidades de Conservação de todo Brasil, somam mais de 3 milhões de hectares, de acordo com o monitoramento do projeto Mapbiomas. Somente em Parques Nacionais, o desmatamento soma 160 mil hectares.
“De fato, o SNUC nunca esteve tão ameaçado como agora. Há uma clara visão neste governo que a área ambiental é um estorvo a ser combatido e destruído. Os dados mostram a sabotagem que foi feita dentro do sistema de comando e controle ambiental. O número de multas travadas, não processadas por questões administrativas, chega a 3.2 bilhões reais. Há ainda o enfraquecimento da máquina de fiscalização. Não tenho dúvida alguma do que está acontecendo hoje é planejado e intencional”, afirma Enrico Bernard, professor associado ao Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Para Bernard, as Unidades de Conservação estão hoje no centro de um ataque sistemático contra a biodiversidade brasileira. “Em vários locais, elas são o que sobrou de ambientes naturais e estão circundadas por paisagens e de expansão de fronteiras agrícolas e urbanas. Vetores como o agronegócio e a pressão imobiliária contribuíram para essas áreas sofrerem recordes históricos de desmatamento. Na Amazônia, por exemplo, o desmatamento dentro de Territórios Indígenas sempre foi historicamente muito menor do que no entorno. Existia, até um passado recente, uma visão de se respeitar os limites de terras indígenas. Infelizmente essa visão mudou completamente nos últimos anos, mais especificamente neste governo que sinalizou claramente que as Unidades de Conservação eram um empecilho, um problema a ser superado para a expansão dos interesses de grupos bem específicos”.
O que corremos o risco de perder?
Estamos perdendo patrimônio natural e a conta vai chegar a longo prazo. Ao avançar a destruição dos Parques Nacionais e outras Unidades de Conservação, o Brasil perde em visitação, potencial econômico, biodiversidade e recurso humano. O indigenista Bruno Pereira foi morto em área protegida. É possível medir essa perda? Quanto tempo se leva para “formar” um novo Bruno, um profissional que entende profundamente de comunidades isoladas e que também vão deixar de existir dentro desse processo?
O livro Quanto Vale o Verde – A Importância Econômica das Unidades de Conservação Brasileiras faz a conta de quanto se ganha ao investir em conservação da natureza e estima que a falta de investimento em estão ambiental impede a injeção anual de bilhões de reais na economia nacional, a partir das áreas protegidas. A publicação, organizada por Carlos Eduardo Frickmann Young e Rodrigo Medeiros, leva em conta os produtos florestais, o uso público das áreas protegidas, o estoque de carbono, a produção de água, a proteção dos solos e a geração de receita tributária com o ICMS-Ecológico para municípios com Unidades de Conservação em seu território.
“Mesmo que a maioria das Unidades de Conservação brasileiras não gere receitas próprias, elas geram valor porque são responsáveis por proteger uma vasta gama de serviços ecossistêmicos que beneficia direta ou indiretamente as sociedades humanas, em particular as que estão mais próximas a elas”, diz trecho do livro.
Para Enrico Bernard, a sociedade simplesmente está perdendo o que sobrou do que era o meio natural do país, categorizado no mundo inteiro pela mais alta biodiversidade. “É um patrimônio público que está sendo atacado e dilacerado por interesses privados de grupos bem específicos sem benefícios para o país. As Unidades de Conservação têm um potencial gigantesco de gerar riqueza que, neste momento, corremos o risco de perder. Temos o compromisso moral com as futuras gerações de salvar esse patrimônio”.
Mas o que temos a comemorar?
Voluntariado
Em meio a essa maré de coisas negativas, existe um movimento orgânico de busca das pessoas pelas Unidades de Conservação que aumenta ano a ano, impulsionado pela pandemia e pela necessidade de estar em ambientes abertos, seguros e saudáveis. Um dos reflexos é o número de voluntários em Unidades de Conservação, principalmente em nível federal e em alguns estados.
O Instituto IPÊ começou a há cerca de 6 anos apoiar o ICMBio para fortalecer o voluntariado dentro da instituição, por meio de um projeto de cooperação. A partir disso, houve um crescimento de mais de 90% das Unidades que antes não tinham voluntários e passaram a ter. “Ajudamos a estruturar o programa, com processo, sistema, comunicação, guias e identidade visual. Mas também foi um movimento dos gestores entenderem que é importante abrir as portas para receber essas pessoas e dar meios para isso”, explica Angela Pellin, pesquisadora e Coordenadora de Projetos, responsável pela iniciativa de voluntariado para conservação dentro do Instituto IPÊ. Com o tempo, o processo foi ampliado para outras esferas, como o voluntariado corporativo, chamando as empresas para incentivar a participação de seus colaboradores para alguma ação na área ambiental. Antes disso, os programas de voluntariado eram tradicionalmente mais voltados para área de Saúde e educação.
“Apoiamos a estruturação de um sistema completo para o ICMBio, onde a pessoa se cadastra, o gestor acessa, identifica o perfil que precisa e também publica editais de seleção. Já estamos com mais de 40 mil cadastros, em um movimento crescente”, comemora Pellin.
Uma pesquisa realizada em 17 estados avaliou a percepção dos gestores do ICMBio sobre a motivação dos voluntários. A maioria (66%) acreditava que os voluntários eram, principalmente, motivados pelo “desejo de contribuir para a conservação da natureza”.
Há pessoas de todas as partes do país e de todas as idades. Mas grande maioria é de jovens. Quase metade está cursando ou já concluiu um curso superior.
Mas é importante ressaltar que não há um dedo do governo nisso. “O movimento não é ainda de incentivo. Não existe uma comunicação intensa para incentivar o voluntariado porque os próprios órgãos sabem que não dão conta da demanda. Há muito o que avançar nesse gargalo”, completa Angela Pellin.
Resistência e Movimentação da sociedade civil
Há um eco dentro do Congresso, entre parlamentares mais sensíveis à causa das Unidades de Conservação. A união da sociedade civil organizada e da Frente Parlamentar Ambientalista tem dado resultados.
“Isso mostra uma resistência. Se nós tivéssemos um cenário favorável à conservação não haveria notícias de judicialização de processos, do Supremo Tribunal Federal barrando decisões do Congresso, parlamentares entrando com ações de inconstitucionalidade em relação aos atos do Ministério do Meio Ambiente e da Presidência da República”, reforça Enrico Bernard.
A quantidade de vezes que o STF está sendo acionado por questões ambientais nos últimos anos mostra a gravidade da situação. “É a última boia de salvação, após todas as tentativas se esgotarem o que resta é bater na porta da mais alta corte jurídica do Brasil para tentar barrar o desmantelamento do sistema de controle ambiental do país. O caminho crescente da judicialização é um fato e demonstra o nível de desmonte que chegamos”, ressalta o professor.
Há também um movimento articulado de organizações do Terceiro Setor para divulgar o conteúdo danoso de alguns projetos de lei e assim mobilizar a imprensa e a opinião pública em defesa do meio ambiente. As redes sociais tem dado escala para campanhas e, em alguns casos, tem atrasado e até impedido a colocação de determinados projetos de lei na pauta de votação do Congresso.
O próprio ICMBio também precisa ser valorizado, de acordo com Angela Pellin. “Por mais que houve muitas perdas, só não foi pior porque os profissionais comprometidos com a gestão das Unidades de Conservação se mantiveram firmes, em sua maioria, no cumprimento de seu papel. São pessoas que seguem fazendo seu trabalho da melhor forma, a despeito das tentativas do governo de atrapalhar, muitas vezes colocando o cargo em risco com retaliações, transferências e exonerações”.
Cobertura da imprensa
Ainda que as redações de jornais e emissoras de todo país estejam vivenciando um momento de demissões e redução no quadro de jornalistas, é perceptível um maior espaço na mídia aberta e especializada na cobertura de fatos e temas relacionados à agenda ambiental. No Brasil havia um histórico de coberturas focadas em incêndios, fiscalizações e flagrantes de crimes ambientais. As notícias do momento continuam recebendo atenção dos veículos de comunicação, mas, ao mesmo tempo, há uma tendência do aumento da divulgação de pautas, análises e colunas dedicadas a conservação ambiental, cenário político, biodiversidade e suas ameaças.
Como exemplo, podemos citar programas como Globo Repórter que tem nas pautas relacionadas ao meio ambiente as maiores audiências, de acordo com dados do Instituto Kantar Ibope Media. O programa recente, gravado no Parque Nacional do Caparaó, mostrando as belezas do Espírito Santo atingiu a marca de 19,6 pontos de audiência no estado, um aumento de 75% do número de telespectadores assistindo.
Plataformas de streaming também aumentaram o acesso à documentários, filmes e séries nacionais e internacionais valorizando a riqueza da biodiversidade, como a produção americana Os Parques Nacionais Mais Fascinantes do Mundo, apresentada e produzida pelo ex-presidente Barack Obama. A procura crescente por esse tipo de “produto” demonstra o interesse crescente do público em conhecer e se apropriar desse patrimônio natural.
As opiniões e informações publicadas nas sessões de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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