Análises

Transespinhaço: a trilha que está nascendo na única cordilheira do Brasil

Durante 50 dias e 740 quilômetros a pé, testei os caminhos da Transespinhaço em Minas Gerais, de olho nos desafios e oportunidades para esta jovem trilha de longo curso

Luiz Aragão ·
19 de julho de 2024

Quando toquei na tela do celular, o aplicativo calculadora me mostrou o resultado: um redondo e exato 50. Suspirei de alívio e pensei: pelo menos não serão dois meses longe de casa, serão “apenas” 50 dias. Mas, o nosso cachorro, o Zeca, que acompanhava atento do chão, deitado na minha frente, com os olhos colados nas caretas que costumo fazer quando estou matutando, percebeu também um sorrisinho escondido no canto da minha boca e levantou as orelhas, achando que ia rolar um passeio. Só que não, Zeca, pois na verdade eu estava com aquele meu conhecido frio na barriga, pensando: “praticamente” dois meses de mochila nas costas! Vai ser bom demais! – apesar da distância da família que seria recompensada por postagens em rede social, que eu faria sempre que possível.

Ao fim e ao cabo, foram 740 quilômetros vencidos com uma média confortável e tranquila para as trilhas brasileiras de 15 km por dia, às vezes um pouco mais e outras vezes bem mais, quando as coisas não iam conforme o planejado. O objetivo, porém, era e sempre será “caminhar” e não “chegar”.

Hoje tenho certeza que a cordilheira do Espinhaço é um dos melhores lugares do Brasil para uma Trilha de  Longo Curso “modelo”. É uma longa cadeia longitudinal de serras conectadas por caminhos silenciosos de beleza selvagem, cuja dança geológica vai terminar lá pelos sertões da Bahia, na Chapada Diamantina, e que somente dentro de Minas Gerais atinge uns 1.200 km de extensão, proporcionando uma caminhada com um sentimento de “vastidão” no espírito, ao olhar para o horizonte à frente, para leste ou oeste, e não vislumbrar nada além de montanhas e natureza. Motivos suficientes para que a Trilha Transespinhaço seja uma das principais Trilhas de Longo Curso em um país que começou a montar sua rede de trilhas recentemente, em 2018/19, com a criação da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso e Conectividade de Paisagens. 

Luiz Aragão na Trilha Transespinhaço. Foto: Acervo Pessoal

Eu diria que existem muitos bons motivos para trilhar a Tranespinhaço. Essa cordilheira faz parte da história do Brasil e do mundo, pois nela, durante os séculos 18 e 19, naturalistas europeus e o ciclo do ouro fizeram a festa no Cerrado, em expedições tão bem narradas por, entre outros, Martius e Spix, Langsdorff, Auguste de Saint-Hilaire e um geólogo e militar alemão cujo nome é uma sopa de consoantes: von Eschwege, o responsável por cunhar o termo “espinhaço” entre 1810 e 1821.  Até hoje, cidades como Vila Rica (agora Ouro Preto), Diamantina, Serro, Tiradentes, e Milho Verde são testemunhos vibrantes dessa pegada histórica.

Caminhar no Espinhaço mineiro é uma aula de história, botânica, zoologia, biologia, geologia e outras “ias” da ciência, além de ser uma experiência  para o corpo e o espírito. A cordilheira é perfeita para uma trilha de longo curso mas, como falarei adiante, o tempo corre contra nós. 

O Espinhaço também é palco para a especulação imobiliária, para o crescimento desordenado das cidades turísticas (tal como na Mantiqueira paulista) e para os passos  nada furtivos da mineração – todas estas ameaças presentes, mas ainda sem força suficiente para tirar o caminhante do trajeto. Além disso, ainda temos os muitos desafios inerentes à implementação de trilhas longas no Brasil.

Tal como planejado, palmilhei a Transespinhaço por 50 dias e sabe com quantas pessoas cruzei fazendo algo parecido ou pelo menos um “trecho” (ou até mesmo acampando)? Para essa nem precisei da calculadora: zero! Com exceção de  um casal em Milho Verde, que fazia pequenas caminhadas locais, e um grupo de 15 pessoas de Belo Horizonte, liderado por um operador de turismo, que faziam a travessia de 2 dias “Fechados-Tabuleiro” (sentido leste-oeste, diferente do sentido sul-norte que eu estava), não vi ninguém se aventurando naquelas paragens desertas, banhadas por um quase eterno céu azul e temperaturas amenas (peguei somente dois dias de chuva, dos quais um foi apenas “chuvisco” de 20 minutos).

Quem sabe um dia cheguemos aos índices da Appalachian Trail, uma trilha de longo curso dos Estados Unidos com 3.524 quilômetros, que em 2023 foi percorrida de ponta a ponta por 1.061 pessoas –  infelizmente nenhum deles oriundo da América do Sul (o caminhante mineiro Jeff Santos, completou essa odisseia em 2017 e deixou tudo registrado no livro Appalachian Trail: Cruzando os Estados Unidos a Pé, cuja leitura vale muito a pena).

Ou ainda as 633 pessoas que completaram em 2023 a Pacific Crest Traill (PCT) também nos EUA, porém com 4.265 km de extensão!

Apesar de  pertencer ao grupo 50+  a quilometragem não me assustou (meu esporte predileto já é a caminhada nas montanhas). Mesmo assim, as pessoas se assustavam quando perguntavam para onde eu ia (nos primeiros dias) ou de onde eu vinha (do km 300 em diante). Também queriam saber se cruzei com alguma onça – foi o que mais me perguntaram – e sobre a segurança na trilha. Nada de onça ou assalto na jornada. Ninguém tentou  roubar meu celular ou equipamento.  Nem mesmo quando atravessei as duas únicas grandes cidades no trajeto,  Ouro Preto e Barão de Cocais, com 60 e 30 mil habitantes, respectivamente. 

Não vou entrar em detalhes sobre o condicionamento físico, pois isso é de cada um, mas os riscos para a saúde nessa Trilha de Longo Curso também não são muitos. Claro que existem perigos para seu corpo: hipotermia ou hipertermia, calos e bolhas nos pés, picadas de animais peçonhentos, cair/escorregar de penhascos e cachoeiras, torcer um tornozelo… Enfim, tudo possível de evitar, tendo o mínimo de experiência e prudência e lembrando que é possível aumentar o nível de segurança levando consigo um Transmissor Localizador de Emergência no estilo do SPOT Satélite ou Garmin InReach (em breve este serviço estará disponível nos smartphones no Brasil,  fazendo uma conexão emergencial com satélites em lugares onde o sinal da operadora de celular não funciona). Mas nos 50 dias de trilha o sinal da operadora VIVO me acompanhou por bastante tempo.

Visual das serras ao longo da trilha. Foto: Luiz Aragão

Como nascem as trilhas de longo curso

O modelo de implementação da Transespinhaço foi basicamente o seguido por todas as Trilhas de Longo Curso (TLC): descobrir e mapear um longo traçado juntando trilhas já existentes para em seguida dividi-las em setores, o que torna o trabalho geograficamente viável. Cada setor fica então sob a responsabilidade de um Grupo de Trabalho (GT) formado por voluntários (peças-chave numa TLC), que vão melhorando o traçado, fazendo manejo e criando as “facilidades” dentro do respectivo setor (logística de pernoite em abrigos, campings, hospedagens, locais de abastecimento, pontos de apoio, sinalização etc). 

Depois desse “tapa inicial”, os setores estarão em condições de serem apresentados a novos atores, agrupados então em regiões (do micro ao macro) ao longo do traçado, onde entram os municípios e suas secretarias de turismo/esporte/lazer/cultura, proprietários privados, moradores dispostos a prestar apoio ao caminhante, comércio local, governos federal, estadual e municipal, por meio da gestão das Unidades de Conservação (UCs) conectadas pela TLC, e associações de usuários, como caminhantes, ciclistas e observadores de pássaros. Pouco a pouco esses atores vão lapidando o produto. 

Forma-se assim a equação: sociedade civil organizada + unidades de conservação + municípios/estados/governo federal + empresariado e prestadores de serviços = Trilha de Longo Curso.  Todos juntos e com a sinergia necessária, hoje ajudados pela expertise da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso e Conectividade de Paisagens

Missão: testar o traçado e a logística

Minha ajuda como voluntário para a Transespinhaço, dessa vez, foi testar o traçado proposto e a sua logística, caminhando até onde, na minha opinião, a trilha estava “consistente”, com poucas estradas e mais vegetação nativa  para  trilhar. Na prática, isso traduziu-se nos primeiros 730 km que ligam Ouro Branco até o limite norte do Parque Nacional das Sempre-Vivas. Dali pra frente, até a divisa com a Bahia, seriam mais 450 km que eu deixarei para o ano que vem, quando este  traçado estiver melhor definido.

Conversei com o comitê da trilha em Belo Horizonte e com o Centro Excursionista Mineiro (CEM), que apoiaram a ideia. A primeira etapa foi obter o “tracklog“, que é uma espécie de “caminho eletrônico” marcado em um mapa digital, posteriormente enviado para o seu aparelho GPS ou para um aplicativo no seu celular. Com essa rota virtual em mãos, passei dois longos meses na frente da tela do computador, pesquisando e conversando com algumas pessoas, decifrando as imagens de satélite e mapas disponíveis, vendo aplicativos de caminhada para celular e  outras fontes da Internet. E, claro, decidindo qual equipamento levar. 

Escolhi caminhar 15 quilômetros por dia e fui fazendo um esforço de imaginação vendo os modelos 3D do terreno e “chutando” onde haveria água ou local plano para acampar, onde dormir com cama+chuveiro (apoios), onde estariam os locais para abastecer e até mesmo possíveis endereços para envio de equipamentos no caso de necessidade (as UCs seriam os melhores destinatários). 

Deu tudo certo. Após exatos 50 dias, eu estava pegando a carona para Diamantina em uma viatura do Parque Nacional das Sempre-Vivas, no extremo norte da trilha, com a equipe do ICMBio, instituição protagonista na implementação da Rede Brasileira de Trilhas. Levava dentro da bagagem cerebral as dificuldades e facilidades de uma TLC no Brasil e algumas sugestões para sua melhoria.

A jornada

Minha caminhada começou bem cedo, no dia 8 de maio deste ano. Parti de uma pousada que fica bem na “linha de largada” da Transespinhaço em Ouro Branco, cidadezinha mineira de 40 mil habitantes que vivem a 1.000 m de altitude onde,  segundo a geologia brasileira, inicia a “cordilheira” do Espinhaço – há quem considere, porém, que o começo seria apenas na Serra do Cambotas, um pouco a frente. 

Logo de cara, é preciso superar um paredão de uns 300m de altura que está dentro do Parque Estadual de Ouro Branco, com uma “escalaminhada” de hora e meia até o topo, na marca de 1.350m de altitude. Testei o meu dever de casa: onde parar, onde comer, onde pegar água, por onde desviar (quando o tracklog era impossível de seguir, com barreiras como propriedades particulares, penhascos inseguros e sem caminho).

A Transespinhaço tem uma particularidade que é seguir sempre para o norte (ou sul), junto com a cordilheira, o que facilita bastante a orientação no percurso. Além disso, a cadeia de montanhas é cortada no sentido leste-oeste, o que facilita a logística de acesso à trilha principal, tanto para entrar como para sair, ensejando também o “resgate” no caso de acidentes, bem como aos interessados em caminhar apenas um trecho da trilha.

Um calcanhar de Aquiles de muitas das trilhas de longo curso brasileiras é a logística para obter suprimentos, equipamentos e reabastecer ao longo do caminho. Geralmente são cidades, povoados e vilas ao longo do traçado, ou em sua vizinhança, sendo necessário sair do leito da trilha para abastecer.

No caso do trecho que percorri, encontrei farmácias, casas de ração de animais, postos de saúde, correios, hotéis, pousadas, campings e hostels sempre em pontos estratégicos ao longo do percurso. O maior ponto de abastecimento é a cidade de Ouro Preto, que a trilha atravessa – vale até um dia a mais de turismo. 

Outro bom ponto para reabastecer é o povoado de Serra do Cipó. Ali, é preciso sair da trilha, pegar um ônibus na beira de uma BR e seguir por 23 km para abastecer a mochila. De quebra dá para se hospedar com o luxo de uma cama e chuveiro para, no dia seguinte cedinho, pegar outro ônibus e saltar no mesmo lugar onde parou no dia anterior.

Noites seguras e silenciosas ao longo do trajeto. Foto: Luiz Aragão

Há ainda os “pontos de apoio”, como casas de moradores rurais ao longo do trajeto que, tradicionalmente, fornecem o jantar + pernoite + café da manhã para o caminhante e normalmente estão situados exatamente no leito da trilha ou bem próximos. O pernoite pode ser cama + chuveiro ou camping + chuveiro, além, claro, de uma chance de conversar com as pessoas sobre a história do lugar e da família que mora ali.

Cito como um bom exemplo (o melhor), com ótima comida e acomodação bem no meio da travessia Fechados-Tabuleiro, o famoso apoio do Sr. Valter e da Dona Mirtes, sua esposa: com uma cama e chuveiro, jantar quando chega e café da manhã quando sai no dia seguinte. Um sítio longe de tudo, mas um verdadeiro oásis na Transespinhaço e uma das melhores comidas que provei no trajeto.

Na maioria das vezes, montei acampamentos selvagens, de preferência perto de água corrente, protegido dos ventos, plano e com belo visual. Normalmente eu caminhava 7 horas por dia, acampava e, no dia seguinte, caminhava mais 7 horas e chegava em outro ponto de pernoite, fosse um povoado, uma casa de alguém ou simplesmente a minha barraca.

Essa pluralidade do traçado é um dos pontos fortes da caminhada, que é muito selvagem em algumas partes, em outras é um traçado “goumert” com cama+chuveiro, passando por vilas, vilarejos e povoados, com opções de um cardápio para as refeições. E até mesmo, em alguns momentos, um traçado que pode ser feito com a família, sem muito perrengue e dentro de uma unidade de conservação.

Tanto o ICMBio (órgão federal) quanto o IEF-MG (órgão estadual) integram a Rede Brasileira de Trilhas, então eu tive, ao longo do traçado “teste” da Transespinhaço, apoio dos Parques Nacionais da Serra do Gandarela e Sempre-Vivas e dos Parques Estaduais do Itacolomy, Serra do Intendente, Itambé, Rio Preto e Biribiri, bem como da APA Estadual Águas Vertentes, em Milho Verde.

Para os últimos nove dias de caminhada, inclusive, tive que enviar pelo correio meus suprimentos – neste caso rações liofilizadas e usei como endereço o Parque Nacional das Sempre-Vivas. Essa possibilidade de enviar gêneros e equipamentos para UCs pré-cadastradas, assim como pontos de apoio ou pousadas ao longo do trajeto, para reabastecimento futuro é definitivamente um ponto positivo do percurso.

Ainda assim, é preciso ressaltar que há pouca oferta de gêneros e equipamentos mínimos ao longo do traçado. O que encontrei para comer foram basicamente frutas como maçãs, bananas e laranjas, sem grande qualidade, ovos, macarrão instantâneo, sardinha/atum enlatados, bolachas doces e salgadas, sucos em pó e, em alguns lugares, “pão de forma”. Quando tinha sorte, havia “pão sovado”, que dura mais na mochila. Não encontrei carnes secas ou frutas secas e, por incrível que pareça, em plena Cordilheira do Espinhaço, coluna cervical do estado de Minas Gerais, não consegui comprar um queijo parmesão – que também dura mais na mochila. 

Também não existe a possibilidade de comprar material de camping, principalmente os tão necessários cartuchos de gás para fogareiros portáteis, o que me levou a usar apenas espiriteira com álcool, que pode ser comprado em posto de combustível (Etanol). Tampouco foi fácil encontrar pilhas alcalinas, lanternas de cabeça ou qualquer outro material básico para caminhantes.

Creio que esse problema será resolvido no longo prazo, à medida que a demanda se mostrar importante para os comerciantes ao longo da trilha. Por enquanto a solução foi enviar à frente as famosas comidas liofilizadas, além de um par de tênis de caminhada que enviei para uma pousada em Milho Verde – e acabou que não precisei dele.

Os desafios e oportunidades de melhoria

Um dos pontos que precisam ser trabalhados para implementação da Transespinhaço é a própria abertura da trilha. O Seminário da criação oficial da Transespinhaço foi em maio de 2018 e em maio de 2024 resolvi testar o traçado inteiro por conta própria. Sim, seis anos depois. E não deu outra. Caminhos antigos que o Cerrado fechou; caminhos que passam agora em propriedades particulares; caminhos que foram traçados apenas com o uso de fotografias aéreas e ainda não tinham sido testados e, até mesmo, um traçado novo que não havia sido realizado ainda dentro do Parque Nacional das Sempre-Vivas (sentido longitudinal sul-norte), que acabou sendo realizado com sucesso (essa era uma das minhas principais missões!).

Durante os 50 dias, caminhei basicamente por onde passa o gado, o cavalo, em alguns casos, a moto e, em todos os casos, a água das estações chuvosas. Na melhor das hipóteses é um “trilho” antigo onde cavalos dos tropeiros históricos. No Espinhaço temos, certamente, rotas bem antigas dos Povos Originários e dos Bandeirantes e outras ainda utilizadas por um ou outro tropeiro que insiste na tradição, levando queijo e criação de lá pra cá.

Na maioria das vezes você caminha colocando um pé na frente do outro, dentro de uma “canaleta” rasa com vegetação nas laterais ou pedras afiadas e não com um pé “ao lado do outro”, na largura dos ombros, o que seria normal e confortável. Isso obriga o caminhante a se equilibrar no caminho com sua mochila nas costas, boa parte do tempo, o que descortina a importância do uso de bastões de caminhada. 

Quando o trilho está mais largo, o mato toma conta: caminhei de “short” e tênis e não usei perneira de cobra – foi chicotada de galho, arranhão de arbusto, furada de espinho o tempo todo. Uma “polaina” longa, ao invés da curta que usei, resolveria, bem como a tal poda seletiva, como diz o Mister Peter lá da Equipe de Trilhas do Parque Nacional do Itatiaia.

Faz-se, portanto, necessário o manejo desses “trilhos” para transformá-los em “trilhas”. Dentro das UCs, que contam com pessoal e equipamento, é relativamente fácil, mas fora delas, entra o trabalho de uma “associação” no estilo da Appalachian Trail Conservancy, da Continental Divide Trail Coalition ou da Pacific Crest Trail Association, para  citar as três grandes Trilhas de Longo Curso dos EUA, com todos os cargos ocupados por dirigentes voluntários, mas contando com pessoal contratado e dinheiro em caixa obtido através de editais ou via governos federal, estadual, municipal, ONGs, etc. 

Aqui no Brasil, uma associação com CNPJ é importante para as TLCs decolarem, A própria Rede Brasileira de Trilhas, bem como outras trilhas, a exemplo do Caminho dos Veadeiros e da Trilha Transcarioca que já têm CNPJ. Ao investir nessas associações e ter a Rede Trilhas dando guarida e prioridade, teremos mais robustez e capacidade de manejo. O montanhista Sérgio Beck já dizia em 1980 nos seus roteiros datilografados, vendidos nas lojinhas em São Paulo (eu tenho alguns) da importância de se unir as trilhas do Espinhaço para termos no Brasil uma trilha de “longa distância”, como ele chamava.

Isso nos leva ao que eu considero o problema número 2 das Trilhas de Longo Curso no Brasil: ausência de recursos (pessoal e financeiro) para sinalizar o traçado, mas principalmente a ausência de informação, pois até hoje ainda existe gente achando que a sinalização “rústica” é “pichação” (com CH mesmo: aplicar ou colocar “piche”; escrever, rabiscar em muros, paredes etc.). 

Leia mais: Pichadores de Trilhas de Longo Curso

A Transespinhaço começou bem, com seminários de sinalização informando o público, mas a sinalização ainda está muito incipiente, principalmente dentro das UCs, onde é praticamente inexistente – mesmo na Serra do Cipó, eu só consegui fazer a principal travessia do parque usando o GPS. Sem ele eu teria errado nas bifurcações. Fica aqui um elogio para a Área de Proteção Ambiental (APA) Estadual das Águas Vertentes, com sede em Milho Verde, para o Parque Estadual do Rio Preto e para o Parque Estadual do Itambé, todos de parabéns pela sinalização apresentada.

É preciso avançar do micro para o macro, repetir os seminários de sinalização em cada “região” da TLC (macro) e depois nos “setores” (micro), além de fomentar recursos para confecção de placas de madeira, tinta e maquinário para uma “fábrica de placas/marcenaria” em alguma UC da região a exemplo das marcenarias já implementadas na APA do Planalto Central, no Parque Nacional de Jurubatiba e no Parque Nacional do Itatiaia.

Também é necessário que, aos poucos, os voluntários dos setores visitem os pontos de apoio ao longo da trilha, a fim de capacitar os provedores de serviços, levar informação para profissionalizar os serviços prestados, do tipo de um cardápio básico, um “alojamento” básico ou um camping (tem que ter um varal e um tanque pra lavar roupas, por exemplo, coisa que precisei bastante no trajeto), quem sabe até mesmo gêneros básicos para vender (pasta e escova de dentes, sabão de coco e cartuchos de gás).

Essa capacitação também pode ser feita por meio de cursos nas prefeituras. Como vi em Extrema, distrito de Congonhas do Norte-MG, que tem um camping familiar ao lado de um restaurante familiar, onde ambos recebem turistas, depois da capacitação ministrada pela prefeitura.

Por do sol do alto da única cordilheira do Brasil. Foto: Luiz Aragão

Engajamento das unidades de conservação

Merecem destaque as UCs que, juntamente comigo, testaram o traçado dentro de seu território, na ordem cronológica: Parque Estadual do Itacolomy (apesar de fechado, autorizou a passagem para “teste” do traçado e logística e colocou uma funcionária para me acompanhar), Parque Nacional da Serra do Gandarela (o chefe e sua equipe me acompanharam por dois dias e uma noite na travessia dentro do Parque), Parque Estadual da Serra do Intendente (o gerente acompanhou por um dia o traçado proposto, inclusive verificou a necessidade de alterar o mesmo e, juntos, testamos um novo “trecho” do setor dele), Parque Estadual do Rio Preto, APA Estadual Águas Vertentes e do Parque Nacional das Sempre-Vivas.

Faz-se necessário reforçar o grupo de trabalho existente sobre as Trilhas de Longo Curso em nível governamental, unindo as esferas níveis federal, estadual e municipal, em um esforço conjunto das UCs do Brasil para fomentar as TLC ou mesmo as pequenas trilhas que passam dentro das respectivas áreas protegidas (sinalizadas, seguras, com mapas online) para que, no futuro, conectem-se com outras e sejam local de passagem de trilhas maiores. Para isso é preciso fortalecer a governança desse GT em âmbito nacional dentro dos Ministérios do Meio Ambiente e do Turismo com reuniões em Brasília e nos estados da federação, fomentando a cultura de trilha em todo o país.

Entendo perfeitamente e acredito que a maioria dos “caminhantes” que estão lendo essas linhas também pensam assim, que é injusto comparar nosso país que não tem a cultura de “caminhar na natureza”, com países como EUA, Argentina, Chile ou da Europa. Mas o relógio não para. Enquanto estamos aqui “discutindo” o assunto, mineradoras, empreendimentos imobiliários, propriedades muradas, estradas asfaltadas, cercas de arame farpado de 8 fios, entre outros obstáculos, estão brotando no Espinhaço, na Mantiqueira, nas serras da região Sul – sem falar do pensamento “tranca-parque”/preservacionista que ainda existe em alguns poucos gestores quando o assunto é dentro de Unidade de Conservação. Fui chefe do Parque Nacional do Itatiaia por longos três anos e presenciei uma excelente equipe de Uso Público que lá existe, além de uma equipe modelo de manejo de trilhas, que trabalha incansavelmente, mantendo as existentes bem como a TLC Transmantiqueira que tem uma grande quilometragem dentro da UC.

Enfim, o rumo está traçado, mas precisamos de maior engajamento. Afinal, a trilha é mesmo longa.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Luiz Aragão

    Montanhista, coordenador de Sinalização da Associação Trilha Transmantiqueira e ex-gestor do Parque Nacional de Itatiaia

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