Análises

Uma COP 30 mais indígena para adiarmos o fim do mundo

Sediada pela primeira vez na Amazônia, a conferência traz a chance de darmos uma guinada positiva no esforço para frear a crise climática que ameaça nossa espécie

Toya Manchineri ·
18 de abril de 2024

Os povos indígenas do Brasil estão vivendo dias históricos neste abril de 2024. O mês iniciou-se com a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aprovando um pedido de reparação coletiva por graves violações aos direitos das comunidades indígenas durante o regime militar de 1964. Em seguida, um dos nossos mais afiados pensadores, Aílton Krenak, tornou-se o primeiro escritor indígena a vestir o fardão da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro.

Neste 19 de abril, o mês prossegue com as comemorações, em pleno Congresso Nacional, do aniversário de 35 anos da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), referência na luta pelos direitos dos povos originários, e na próxima semana, culminará com uma potente conjunto de marchas e eventos em Brasília, no contexto da 20⁠ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que tinge anualmente os gramados da capital federal com as cores dos múltiplos povos que compõem o país. Tudo isso acontece enquanto muitas das nossas comunidades ainda se reconstroem, após inundações, secas e queimadas extremas dos últimos meses, agravadas pela crise climática.

Embaladas por essas demonstrações de força dos povos originários no passado recente, a Coiab e diversas outras organizações indígenas, companheiras em nossa caminhada, estamos aproveitando o mês de abril também para semear o futuro. Além de pautas históricas como a demarcação das Terras Indígenas, o Marco Temporal e a proteção à vida em nossas aldeias, o ATL abrirá espaço para avançarmos na construção de uma visão indígena compartilhada para a COP30, a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas, que será realizada, em 2025, em Belém, e que pode ajudar a construir um planeta mais viável para a humanidade.

Sediada pela primeira vez na Amazônia, a conferência traz aos brasileiros a oportunidade de projetarmos o país como líder ambiental global, e aos humanos de todas as nacionalidades, a chance de darmos uma guinada positiva no esforço para frear a crise climática que ameaça nossa espécie. Porém, se realmente quisermos adiar o fim do mundo, para usar livremente a expressão que dá título a uma das obras mais conhecidas do agora “imortal” Aílton Krenak, precisamos construir uma COP mais indígena do que nunca, dos seus princípios à sua execução.

Em seus princípios porque só chegaremos a respostas coletivas eficazes se nos basearmos em uma mentalidade comum aos povos indígenas do mundo todo: a que coloca a vida acima do lucro e entende o ser humano e a natureza como um ente só. E em sua execução porque apenas com a participação efetiva dos povos indígenas no debate sobre a crise climática e a incorporação de seus talentos e sabedorias como parte das soluções conseguiremos tirar do papel as boas intenções dos discursos de chefes de Estado.

Algumas linhas iniciais da perspectiva da Coiab para a COP 30 começam a aparecer. Ainda serão submetidas a amplo debate e detalhamento, mas já apontam para algumas direções, entre as quais destacamos três.

Nós, povos indígenas da Amazônia brasileira, estamos empenhados em exigir de todos os países um salto de ambição em suas novas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), como são chamadas as metas de redução das emissões de gases causadores do efeito estufa. Na conferência de Belém, governos do mundo inteiro terão que anunciar, pela primeira vez, versões revisadas dessas metas, para alcançar coletivamente um volume de cortes de emissões que seja suficiente para travar a elevação da temperatura da Terra em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. 

A definição das NDCs revisadas começa muito antes da própria COP30, razão pela qual a Coiab reforçará no ATL e em outras manifestações públicas de 2024 a demanda de que o Brasil lidere pelo exemplo e se comprometa com uma meta de redução de emissões à altura da sua ambição de fazer história na conferência de 2025. Da mesma forma, cobraremos veementemente os governos de outras nações em desenvolvimento e, principalmente, os dos países desenvolvidos, maiores responsáveis pela crise climática, a apresentarem compromissos condizentes com suas obrigações. 

Um segundo foco de trabalho da Coiab no caminho para a COP 30 será o financiamento das ações de mitigação e adaptação no Sul Global. Para promover uma transição energética justa, que troque petróleo, gás e carvão por energia renováveis produzidas de maneira respeitosa com o meio ambiente e os povos tradicionais, o mundo terá de investir anualmente 5 trilhões de dólares, segundo a Agência Internacional de Energia Renovável. O volume adequado de recursos se faz necessário para  acelerar soluções urgentes como a criação de uma zona de exclusão da extração de petróleo e gás em toda a Amazônia, além de ações para zerar o desmatamento e manter a floresta em pé, valorizar a biodiversidade e remediar os impactos da crise climática que já castigam aldeias, campo e cidades. Tudo isso será possível somente se os países industrializados deixarem de lado o passo de tartaruga nas ações de financiamento e se todos os governos, inclusive o brasileiro, eliminarem seus subsídios aos combustíveis fósseis.

Por fim, outro ponto crucial para a Coiab, na rota para a conferência de Belém, reside na campanha para que os fundos climáticos, especialmente os que se destinam à adaptação, alimentem mecanismos de financiamento direto às organizações indígenas, sem passar pelo governo ou outros intermediários. Os povos indígenas já demonstraram ter conhecimento e capacidade para a gestão de soluções climáticas. Um exemplo recente é o Fundo Podáali, primeiro instrumento de captação e distribuição de recursos para povos indígenas brasileiros administrado pelos próprios indígenas, que a Coiab lutou para tornar realidade. O fundo realizou sua primeira chamada em 2023 e já distribuiu R$ 1,6 milhão para 32 projetos de gestão e proteção territorial, economia sustentável, fortalecimento institucional e proteção de direitos.

Acreditamos que o respeito à autonomia indígena e a incorporação das contribuições simbólicas e práticas dos povos originários às soluções pelo clima podem nos conduzir a uma COP30 bem-sucedida e a um caminho de garantia da vida no planeta. Como bem expressou, uma vez mais, Aílton Krenak, as comunidades originárias sabem desde sempre que o amanhã não está à venda. Mais do que isso, sabemos que o amanhã está por ser construído, com coragem e sensibilidade para reconhecermos que a Terra somos todos nós e que todos nós somos Terra.

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