Poucas mortes devem ser tão parecidas com o fim do mundo quanto a de um beija-flor que colide com uma parede branca a mais de 50 quilômetros por hora. E, para esse tipo de efeito especial, as paredes andaram especialmente brancas nesta primavera. Antes de se dissolver na umidade pegajosa do verão antecipado, a estação pegou desprevenido o Rio de Janeiro com dias de ar frio e sol ofuscante, como se maio estivesse chegando com cinco meses de atraso.
Numa dessas manhãs lavadas, uma fêmea de Papo-Branco se estatelou na fachada de uma casa em Muri, na serra fluminense. Chocou-se no vôo com uma súbita barreira de luz solidificada. Para ela, aquilo foi um 11 de setembro em outubro. Mas, até aí, nada demais. “Os beija-flores, às vezes, voam de encontro a paredes brancas ou vidraças, e com freqüência nestes acidentes escapam à morte, ao contrário de outras aves, como pombas”, promete o verbete dos Trochilidae em Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick.
Mas aquela fêmea morreu. E em tragédias dessa escala, envolvendo um corpo que mal chega a cinco gramas em dez centímetros de tamanho do bico à cauda, desastre não faz barulho. Quando ela foi achada no chão, muito tempo depois, seus dois filhotes também estavam mortos no ninho, ainda implumes, duas semanas depois de quebrarem os ovos a três metros de uma janela no segundo andar da casa. Muri tinha perdido de uma vez três exemplares e duas gerações de Leucochloris albicollis, só porque o tempo estava bom.
Somando a expectativa de vida da mãe e dos filhos, são pelo menos dez anos de beija-flor a menos. Quer dizer, pouca coisa. A espécie, em si, nada tem de rara. O próprio Sick avisa que, mesmo sem a vizinhança de paredes brancas, “nos anos chuvosos morrem muitos filhotes” e que até o excesso de calor pode levar uma fêmea a desertar o ninho. E certamente há um preço a pagar para viver com uma febre crônica de 42° e um coração que bate 1.240 vezes por minuto. Não foi à-toa que Guimarães Rosa chamou o beija-flor de “cintilante instante, sem futuro nem passado”.
Aquela família de Leucochloris albicollis, pelo menos, foi exatamente isso. Apareceu de repente embaixo da janela, balançando na ponta de um galho de quaresmeira. O ninho dava a impressão de que não iria resistir ao primeiro pé-de-vento. Mas agüentou firme e ainda está lá, vazio, mas intacto. É de boa construção, feito com musgo, paina e teia de aranha. E deve ter custado à mãe uns dez dias de trabalho. Ela passou em seguida duas semanas chocando os ovos. Depois, vieram os quinze ou dezesseis dias em que alimentou as duas bocas de bicos curtos, que comiam e cresciam sem parar. No fim, o ninho parecia pequeno demais para os três. Cada vez que lá embaixo os filhotes se mexiam, ela balançava em cima deles, como um barco nas ondas.
Tudo isso para dar em nada. Ou seja, para dar numa coleção de fotografias que parou de repente, no meio do caminho. Ou numa parede branca. Mas esse também não é o problema, porque já fomos mais perdulários em matéria de beija-flor. No século XIX, fez fama e fortuna em Paris uma certa Mme. Finot, confeccionando chapéus iridescentes com penas de beija-flor. Londres teve um leilão em que saíram, de uma martelada só, nada menos de 37.603 peles de beija-flor, importadas do Brasil e da Colômbia. E em 1905 os livros de moda registram o recorde de oito mil peles num único manto de plumas.
À sombra desses números, as três baixas da semana em Muri talvez não tenham a menor importância. Elas só vieram parar aqui, nesta página, para aproveitar algumas fotografias, que ninguém é de ferro, antes que elas baixem ao arquivo morto. E para lembrar que somos mesmo uma espécie muita desastrada no trato com o planeta. Não sabemos nem pintar uma casa sem fazer uma armadilha.
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