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Morro acima e morro abaixo

Nadar num lago formado pelo degelo no alto dos Andes é sinal de que o aquecimento global está mais perto do que se pensa. Mas os turistas gostam.

18 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O aquecimento global não parece tão vago como nas previsões de mudança climática, nem tão apavorante como no cinema, para quem sobe neste verão a picada do refúgio Emílio Frey e encontra lá em cima, na borda dos Andes, a 1.700 metros de altitude, a lagoa Tonchek invadida por banhistas. Entre bandos de patos selvagens, eles espadanam a água azulada, onde nas primaveras mais frias os blocos de gelo costumam boiar dezembro adentro.

“Banhistas na Tonchek? Não é possível!” – diria na volta, por trás do balcão sombrio, onde passara o dia se escondendo do calor, a concessionária do Reynaldo Knapp, um albergue do Club Andino Bariloche ao pé do Cerro Catedral. A escada de madeira rústica do Knapp desemboca no vasto deserto de asfalto de um estacionamento. Trata-se, afinal, de uma estação de esqui.

No inverno, fervilhando de automóveis e, se tudo correr bem, com a neve tapando obras que jamais acabam em suas bases, ele pode ser típico da paisagem. Mas em fevereiro, com o sol ainda ardendo às nove e tanto da noite, atravessar o estacionamento vazio, sem uma árvore, talvez seja a parte mais árida da caminhada de 13 quilômetros montanha acima.

A picada começa numa estrada poeirenta, onde se constrói atualmente mais uma funicular. Pode haver menos neve nos últimos anos. Mas há cada vez mais esquiadores. Com eles mutiplicam-se os serviços para içá-los à cabeceira das pistas. E as pistas que se espalham por todas as ladeiras onde se possa abrir passagem entre as árvores. Os investidores debandaram o mercado financeiro, na última crise da economia argentina, e resolveram botar dinheiro no que o país tem de mais sólido – ou seja, a sua paisagem assombrosa.

O resultado da febre turística é que a picada do Frey cruza agora com um cenário onde não dá para ver se as coisas vão muito bem ou muito mal no parque Nahuel Huapi. De um lado, a estação de esqui do Catedral parece cada vez mais uma cidade alpina, embora meio adormecida fora da temporada. Do outro, fica o maciço coroado por inumeráveis agulhas rosadas esculpidas na pedra pelo gelo. Os esquiadores mal o vêem, por trás da lombada onde os teleféricos desembocam. Assim, dependendo do ponto de vista de quem vai ao Catedral, ele parece estar crescendo ou diminuindo.

Foi-se a época em que os desbravadores do esqui andino, em meados do século XX, subiam as ladeiras nevadas com botas de couro duro e equipamento de madeira. O Knapp é uma relíquia desse tempo. No arquivo do Club Andino, que existe desde 1931, há belas fotografias – ainda recentes, mas já históricas – dessas caravanas de esquiadores, subindo as encostas nevadas, com agasalhos de tricô e enormes esquis de tábua.

São em geral as mesmas pessoas que implantaram a rede de refúgios nas montanhas de Bariloche. A cidade mal passou dos 100 anos. Mas já foi duas Bariloches diferentes. No começo do século XX, era lugar de colonos, que ganhavam do governo argentino descomunais latifúndios de 200 mil hectares nos confins da Patagônia andina, para povoar um território arrancado dos índios pelas campanhas de extermínio e dos chilenos por uma diplomacia a expedições de demarcação.

Aos olhos dos primeiros povoadores, as montanhas não passavam de obstáculos à agricultura e ao comércio. Elas só viraram o principal produto da região a partir dos anos 30, quando apareceu por lá gente gente disposta a fazer de um velho esporte uma nova mania. Em outras palavras, tirar do alpinismo o gene do andinismo.

Pois o andinismo também foi produto de conquista. Custou rios de suor a imigrantes como o alemão Otto Meiling (foto), que chegou a Bariloche como operário de construção civil numa boléia de caminhão e mudou instantaneamente de vocação, ao avistar o cume gelado do monte Tronador. Meiling fundou a primeira fábrica de esquis da cidade e a primeira escola para esquiadores. Foi também o primeiro a pôr os pés em dezenas de picos dos arredores, batizando um por um. Isso no tempo em que os meios de transporte locais eventualmente se traduziam em caminhadas de quase 300 quilômetros.

Ele escalou até às vésperas de morrer, em 1989, e está enterrado em seu chalé de montanha, fora da cidade. Seu biógrafo, o esloveno Voiko Arko, aos 78 anos de idade, capengando por conta de um atropelamento que lhe deixou seqüelas pelo resto da vida, ainda fazia a trilha do Frey todo fim de ano. Gastava dois dias na caminhada de quatro ou cinco horas. Dormia a primeira noite no refúgio Priedritas, uma cabana de troncos encaixada debaixo de uma pedra no meio da subida. Mas passava o réveillon vendo as torres do Catedral se espelharem nas águas do Tonchek.

Voiko (foto) tinha um currículo interminável. Mas só gostava mesmo de fala das montanhas. Até o fim da década de 80, atendia turistas na sede do Club Andino, em Bariloche, alternando as cinco ou seis línguas que falava com fluência. Ele tinha passado poucas e boas na Segunda Guerra Mundial. Lutara na resistência, fora preso pelos alemães e estava num trem, a caminho do campo de concentração, quando a Itália se rendeu. Livre, Voiko desembarcou em Bolonha e, sem ter para onde ir, ali mesmo fez a faculdade de Ciências Sociais.

Mas a guerra era um período que resumia em cinco palavras: “Me meti em coisas muito feias”. A conversa propriamente Voiko reservava às serras de Bariloche, aonde chegou no começo dos anos 50, depois de trabalhar como peão nas obras do aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Ali, aguém lhe falou do sul da Argentina. Ele foi lá verificar pessoalmente se aquilo que ouvia era verdade. E ficou. Escreveu os melhores guias de picadas e refúgios do Nahuel Huapi. Até hoje, são os únicos que têm humor e sinceridade sobrando para recomendar que se leve saco de dormir para os beliches dos abrigo, “porque é melhor deitar em sua própria sujeira”.

A casa de pedra do Emílio Frey era em princípio uma espécie de base para escaladores, cercado pelo anfiteatro de agulhas verticais que cerca o lago Tonchek. Há centenas de vias de escalada à sua volta. Quantas? “Não sei, o suficiente para uma vida inteira”, diz o “refugiero” Manuel de la Cruz. Como todos os albegues do Club Andino, atualmente o Frey recebe mais mochileiros do que montanhistas. Com a clientela, mudaram os próprios refúgios. Eles costumavam abrir por temporada, que começava com o degelo da primavera e durava até as primeiras nevascas do outono. Mas, nos anos 70, uma nova geração de concessionários do Club Andino criou a tradição de mantê-los abertos o ano inteiro.

Tonchek Arko, filho de Voiko, foi um deles. Vivia no Frey, como encarregado, em meados dos anos 80. Com a barba cobrindo o colarinho e o cabelo louro descendo até a cintura, Andi Lamunière cuidava do refúgio General San Martin, encarapitado no fim de uma picada de 18 quilômetros à beira do lago Jakob, que é provavelmente um dos lugares mais bonitos do planeta. Gabriel Rappaport geria o Manfredo Segre, um bunker de concreto erguido na beira da Laguna Negra como memorial de um montanhista italiano que morreu nas montanhas. Todos eles mal tinham entrado então na casa dos 20 anos. Contavam histórias intermináveis sobre os invernos em que a neve cobria as janelas e era preciso cavar túneis para passar pela porta.

Eles não estão mais lá. Os refúgios prosperaram. Eles costumavam ser abastecidos com as coisas que os concessionários levavam na mochila. Agora, os mantimentos lhes chegam em lombos de cavalos. As tropas mantém abertas o ano inteiro as trilhas de erosão nas picadas. Em troca, agora dá para escolher marca de vinho e tipo de refrigerante na mesa dos refúgios. Dez anos atrás, nenhum deles tinha banheiro. Hoje, todos têm.

O tempos são outros. O ecoturismo deixou de ser amador. Profissionalizou-se. Tonchek Arko trabalha no jornal Rio Negro como fotógrafo especializado em competições de esqui e esportes radicais. Dois anos atrás, sofreu um assalto em casa, numa rua tranqüila de Bariloche. Clemente, outro filho de Voiko, toca uma agência de turismo na cidade, mas tira um dia por semana para cuidar do Challhuaco, um refúgio quase encostado no subúrbios de Bariloche, embora continue escondido nos bosques do parque nacional. “É o que eu queria fazer a semana inteira, mas não posso, porque o turismo vive de marketing e marketing eu tenho que fazer na cidade”, ele explica.

Há mudanças que vieram para durar mais tempo. A picada do Frey (foto), que nove anos atrás corria à sombra de lengas e outras árvores centenárias, ganhou um vasto trecho de vegetação rasteira, entre troncos desfolhados. A floresta que costeava o lago Gutierrez queimou no verão de 1997. As faias chamuscadas continuam de pé. Mas perderam a copa para sempre.

Desmatada, a montanha acabou rasgada em vários pontos do caminho por ravinas profundas, que atravancam a trilha com avalanches de pedras e a areia fôfa do degelo. Mas não é o fim do mundo. Sob o sol sem filtro, o chão floresce como nunca. Contra o céu, dá para ver nos ramos desfolhados os pássaros que antes as árvores vivas camuflavam.

Para os especialistas, tudo isso quer dizer que o bosque do Catedral vai aos poucos se recuperando sozinho do incêndio que o lambeu. Ao contrário da estação de esqui, ele não requer um centavo de investimento ou qualquer esforço humano para atrair os turistas com novidades em cada temporada. Desde o último incêndio, ninguém plantou um pinheiro na picada do Frey. E ela nunca esteve tão marcada de pegadas como neste verão. O calor que queima é o mesmo que atrai banhistas ao lago Tonchek. No Nahuel Huapi, até o aquecimento global tem a sua graça. final, é para isso que servem os parques nacionais: para mostrar que, deixada por sua própria conta, a terra muda mas não acaba.

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