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Chegou a vez de Lumiar

As chuvas de verão puseram a estrada de Lumiar, na serra fluminense, no caminho do governo Rosinha Garotinho. Lá se vai mais um pedaço do Rio de Janeiro.

4 de março de 2005 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O Brasil tem um remédio para todos os males ambientais. Basta empurrá-los para debaixo de outras notícias e eles desaparecem. Foi assim que a liberação dos transgênicos sumiu nos jornais esta semana, escondida sob a campanha das células-tronco, e que a seca virou falta de eletricidade no apagão de 2001. Mas, para não complicar muito a história, é melhor pegar o caso da estrada Muri-Lumiar, no município de Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro.

Ela afundou de madrugada, em 20 de fevereiro, perdendo um naco de sessenta e tantos metros na altura do quilômetro 10. Durante a noite, seu asfalto fino e rachado se dissolveu no barro mole. A enxurrada levou três casas, construídas irregularmente, como manda o figurino, na beira do acostamento. Ninguém morreu. O desastre era esperado. Constara, na véspera, em primeira página, da edição de sábado do jornal A Voz da Serra, que tem quase 60 anos de tarimba em assuntos do município.

“Os motoristas devem redobrar a atenção” na Muri-Lumiar, a RJ-142, advertia a reportagem, porque em vários pontos – inclusive aquele que ruiu – “o asfalto está trincado”. Um morador da vizinhança havia ligado para o jornal, prevendo “um acidente sério” se passasse pelo lugar “um veículo com carga pesada”. Em compensação, algumas linhas abaixo, o chefe do Departamento Estadual de Rodagem José Beraldo dizia que, pelo “monitoramento feito diariamente”, a rachadura não estava “evoluindo”.

“Para que o problema seja solucionado, deverá ser necessária uma obra de drenagem da água subterrânea no local”, concluía o diretor. A estrada foi abaixo naquela mesma noite, deixando três cidades sem contato via asfalto com o resto do mundo. Dias depois, outra fatia praticamente do mesmo tamanho foi arrancada pelas chuvas no quilômetro 16, enquanto as autoridades estaduais e municipais, finalmente despertadas pelo barulho, anunciavam visitas, obras, verbas e providências urgentes para a RJ-142.

Ela sempre foi uma estrada problemática, sujeita a erosões e quedas de barreira. Nos trinta e poucos quilômetros que ligam Muri a Lumiar, estão expostos, em remendos grosseiros, os erros de todos os governos estaduais que nos últimos 40 anos fizeram da RJ-142 um mostruário de como não se faz projeto, traçado, engenharia, conservação e sobretudo política de respeito ambiental numa rodovia. Agora, em cima desse sambaqui da má administração pública, depositou-se a urgência de restabeler o trânsito em suas pistas.

Lumiar tem uma associação de moradores que se chama Amola. O nome parece escolhido a dedo. Essas associações existem mesmo para isto: azucrinar administrações distraídas. Na composição da sigla, o “A” de “Adjacências” só pode ter entrado deliberadamente, formando “Amola”. Mas Marcos Viveiros de Castro, o presidente da associação, declarava-se dias depois numa edição de A Voz da Serra “satisfeito” com as “medidas emergenciais” para remediar o trânsito, desviado para as velhas e escalavradas estradas de terra do município, que mal ou bem resistem às chuvas porque seu traçado não abriu nas encostas instáveis da região.

A volta do asfalto à RJ-142 é mais complicada. Está prometida, vagamente, para o ano que vem. Depende de obras que a governadora Rosinha Garotinho prometeu começar imediatamente. E não é a primeira vez que ela promete alguma coisa do gênero RJ-142. Em maio do ano passado, num pacote de R$ 249 milhões para “melhorias no interior do estado”, ela já tinha incluído sua “recuperação”.

Agora se trata de uma emergência. E é aí que mora o perigo. O programa rodoviário do governo Garotinho, como outro dia mesmo explicou aqui neste site o historiador Arthur Soffiati, é um roteiro de atentados ambientais, tocado por “licenças simplificadas” dos órgãos estaduais teoricamente responsáveis pela defesa do meio ambiente. E agora tem urgência.

Pela RJ-142 passa o eixo da “denominada Eco-Estrada”, ligando Nova Friburgo à Região dos Lagos, no litoral fluminense. E, segundo Soffiati, “em toda sua extensão não pode haver obra mais anti-ecológica do que esta”. Pena, porque corta uma região que até agora, sem asfalto, ficava mais ou menos à margem da degradação generalizada que assola a paisagem no estado do Rio de Janeiro.

É terra de morros verdes, águas limpas, e pousadas turísticas, que os colonos suíços e alemães de Nova Friburgo não conseguiram estragar com o café nas primeiras décadas do século XX. A história dessa migração, em que 389 suíços morreram na viagem, é uma das grandes sagas da História do Brasil.

Lumiar brotou na fazenda dos Roure por volta de 1820. A velha sede da propriedade fica hoje na praça central da cidade, cercada de pousadas por todos os lados. Quase 40 anos atrás, foi reduto de hippies. O resto do país ouviu o nome Lumiar pela primeira vez numa canção do compositor Beto Guedes, nos anos 1970. A luz elétrica só chegou lá em meados da década de 80. O asfalto veio ainda mais tarde. Tudo isso para, numa madrugada de chuva, cair no colo da administração Garotinho, em regime de urgência, exatamente quando precisava mais do que nunca de um projeto capaz de salvar da ocupação desordenada sua paisagem e sua economia.

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