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O Cappio sem saída

Os brasileiros ficaram devendo a Dom Luiz Flávio Cappio um favor inestimável: a greve de fome obrigou-os a discutir a transposição do rio São Francisco.

9 de outubro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Bem que Dom Luiz Flávio Cappio avisou: “Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”. A frase, que ele citava ao pé da carta onde anunciou ao governo sua greve de fome, é de outro franciscano, um alemão chamado Theodor Reinch que morreu no Brasil em 1937, deixando até hoje devotos no sertão baiano. Mas agora pode ser de todo brasileiro perplexo diante do governo Lula.

É ou não é caso a loucura o que se fez com o bispo na semana passada? Quinta-feira, para se livrar do protesto contra a transposição do rio São Francisco, Lula mandou a Cabrobó o ministro Jacques Wagner, titular das Relações Institucionais – ou seja, de um desses cargos inexplicáveis que o presidente inventou para empregar os amigos. Wagner exerce um ministério de fantasia. E, pelo visto, é disso que trata.

Em Cabrobó, ele se trancou com Cappio por duas horas. Quando saiu, não havia mais greve de fome. Em compensação, havia duas versões para o acordo que encerrou 11 dias de jejum. Cappio disse que o governo lhe prometera adiar a obra, até que suas objeções ao projeto fossem discutidas em público. E o ministro informou aos jornalistas que o acerto não continha a palavra adiamento. Tradução: alguém estava ali enganando o outro. E ganha um retrato oficial do presidente Lula quem encontrar o autor do malentendido.

Na dúvida, basta consultar os jornais do dia seguinte, onde saiu a notícia do pacto de Cabrobó. Encontrará em O Globo um artigo onde a ministra Marina Silva garantia que a transposição é “ambientalmente sustentável”. No Ministério do Meio Ambiente que ela comanda, “sustentável” é tudo que a política vigente sustenta. E vice-versa. Fogo em assentamento na Amazônia, por exemplo. Se a transposição está carimbada com esse adjetivo, quer dizer que a ministra a aprova.

Mesmo se, formalmente, no momento em que saiu o artigo a obra ainda dependia do Ibama a licença para o desembarque das empreiteiras na beira do São Francisco. Assinando o texto (escrito a seis mãos com os ministros Ciro Gomes e Miguel Rossetto, para deixar bem claro que Brasília está de cabeça feita sobre a transposição), a ministra desdenha o trabalho dos técnicos que lhe são subordinados. Pronunciou a sentença do ministério antes do julgamento pelo Ibama.

Que tende a atrasar, pois ecncalhou numa liminar da 14ª Vara Federal da Bahia, onde a juíza Cynthia de Araújo Lima Lopes suspendeu a autorização prévia do Ibama para o governo tocar o projeto. Sem sinal verde para o projeto não há licença para a obra. Portanto, Wagner prometeu a Cappio o que o governo, pelo menos naquela quinta-feira, não podia negar: uma trégua. Se ela não se destina a rediscutir a transposição – porque a ministra do Meio Ambiente já decretou que ela é “sustentável”, logo indiscutível pelos dogmas da ecologia acreana, – servirá para discutir o problema com a Justiça.

Menos de 24 horas depois da visita de Wagner, um repórter perguntou ao ministro Ciro Gomes se as máquinas começariam rasgar as margens do rio assim que o governo se livrasse da liminar. “Não cairei nessa armadilha”, respondeu o ministro. Em outras palavras, quem caiu na armadilha foi o bispo. Aliás, na mesma entrevista o ministro da Integração Regional anunciou numa entrevista coletiva coletiva sua primeira providência para abrir “o diálogo”, que Wagner e Lula trocaram com Cappio pela greve de fome.

Era uma proposta de debate com a CNBB. Endereçada a outro bispo, Dom Geraldo Magella Agnelo, que entrou na história criticando o protesto como se greve de fome fosse temporada em spa: “Espero que a moda não pegue”. Essas coisas pegavam em outros tempos, quando Moisés podia voltar de um jejum de 40 dias empunhando as tábuas das lei. Mas o ministro soube escolher o interlocutor a dedo. E avisa que “o debate durará enquanto for necessário”e que “a obra só será feita quando o debate estiver amadurecido”.

Se for mesmo esperar pelo amadurecimento de um debate no governo Lula, o São Francisco estará salvo. Lançada nas vésperas de ano eleitoral, por uma administração cujo chefe reúne no palácio do Planalto deputados suspeitos de corrupção para comunicar-lhes que caixa dois em eleição é pecado venial, a transposição é um projeto tardio, megalômano e tão mal explicado que, dias atrás, discursando no segundo aniversário do Fome Zero, Lula voltou a dizer que, com ela, dará de beber a “12 milhões de famílias da região mais pobre e mais seca do Nordeste”.

Não foi a primeira vez que, em defesa da empreitada, o presidente invocou esse número delirante. Usou-o em junho, numa entrevista coletiva no Palácio do Planalto em que tratou de desviar, na mesma promessa, as águas do São Francisco e as perguntas sobre a crise política. Voltou a sacá-lo na semana passada, reagindo ao ultimato de Cappio. Entre as três citações, passaram mais de três meses. Nesse tempo todo não apareceu, no que restou de sua equipe, uma voz amiga para lhe cochichar que, no Nordeste, “12 milhões de famílias”significam mais de 43 milhões de pessoas, o que inclui praticamente todos os nordestinos. Por exemplo, aqueles que doarão a água do São Francisco para estados vizinhos. Ou nordestinos que integram o time dos brasileiros indiferentes, segundo Lula, por terem garrafa de “Perrier na geladeira”.

Isso é gente que não acaba mais. Tanta gente, que o Fome Zero, “o maior programa social do mundo”, suou para cadastrar este ano no país inteiro 7,5 milhões de famílias, mesmo alargando os critérios de seleção a ponto de, em cidades da Paraíba, haver romaria de mulheres para devolver cartões do Bolsa Família recebidos indevidamente. De onde, então, Lula tirou seus “12 milhões de famílias”, senão da prerrogativa sobenara de dizer em público qualquer coisa que lhe venha à cabeça?

Ele não se deu ao trabalho de decorar sequer a primeira tabuada da transposição. E está apostando com Cappio, daqui para a frente, sua credibilidade pessoal numa obra de R$ 4,5 bilhões e custos ambientais imponderáveis, porque foram calculados sob a supervisão de uma ministra que a considera, de antemão, “sustentável”. Prevista para durar dois anos, ela entra na agulha a um ano e dois meses de acabar o mandato de Lula, quando ele tem pela frente uma reeleição arriscada e pelas costas o entulho de uma corrupção ruinosa.

Como já ensinou neste site o colunista Sérgio Abranches, Lula não tem sequer mandato para fazer a transposição do São Francisco. E vem agora o ministro Ciro Gomes – que aliás, como também já se mostrou neste site, quando era governador do Ceará, fez uma transposição em seu estado que fracassou – com essa conversa de “debate amadurecido”. Depois que a razão se extingue, ministro, o único caminho é a loucura, como dizia o Frei Luiz.

Mas entre Lula e Ciro Gomes, há um belo deságio. O ministro tem declarado que são “12 milhões de pessoas”os brasileiros beneficiados com a água da transposição. Com a simples troca das “famílias”de Lula pelas “pessoas”de Ciro Gomes, entre os “12 milhões” do presidente e os do ministro cava-se um fosso de 360%. Mas nem assim dá para fechar o cálculo oficial. Nos “12 milhões de pessoas”cabem praticamente todos os habitantes dos quatros estados onde desaguará a transposição, segundo o engenheiro agrônomo João Suassuna, pesquisador do Instituto Joaquim Nabuco. E o governo ainda acha que nesta história quem está exagerando é o bispo.

O Brasil já viu de tudo em obras públicas. Mas a transposição é, até onde a vista alcança, a primeira que começa superfaturando gente, uma conta fácil de verificar no site do IBGE. Imaginem-se as outras. São erros grosseiros, que só servem para uma coisa: mostrar que qualquer brasileiro está habilitado a discutir o caso do São Francisco no governo Lula. Seus problemas técnicos podem ser complexos. Mas seus argumentos políticos não poderiam ser mais toscos.

E essa chance o país ficará devendo para sempre a Cappio. Com a greve de fome, ele obrigou os brasileiros a prestar atenção num assunto que transitava por Brasília como obsessão privativa do presidente da República. O bispo de Barra, com sua greve de fome, transpôs o rio São Francisco dos palácios para uma capela com chão de terra batida em Cabrobó, onde ela está mais perto de todo mundo. Cappio, em italiano, quer dizer laço. Pode ser coincidência, mas com Cappio o governo caiu num laço sem saída.

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