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A floresta em miniatura

Colecionador de micro-orquídeas em Mogi das Cruzes, o paisagista Masuji Kawagima vê melhor a diversidade da Mata Atlântica porque enxerga seus detalhes.

27 de janeiro de 2006 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Para defender a exuberância da Mata Atlântica, a maior arma de Masuji Kawagima é uma lupa. Saca do bolso o instrumento de campo, que se dobra sobre si mesmo como um canivete, no estojo arranhado pelo uso. E assim que a lente focaliza o minúsculo ponto branco a sua frente, surge do nada uma orquídea, completa nos mínimos detalhes, abrindo sua flor de sépalas e pétalas simétricas, que apontam a pista de pouso para insetos minúsculos nas profundezas do estame. É uma Platysteles edmundoi, diz a etiqueta, ela também difícil de enxergar a olho nu. Está presa num pedaço de sabugo milho como se agarrasse o tronco de uma árvore na floresta.

Ela é um prodígio da flora tropical. Mas nem por isso é a menor da coleção de Masuji. Ou do Brasil. Aliás, do mundo. Porque esse título pertence à Barbosella miersii, que também é vizinha do paisagista em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Florida, no auge do esplendor, a Barbosella miersii não passa dos 3 centímetros de estatura. Sua flor tem as dimensões da cabeça de um alfinete, a medida exata para confirmar a velha conversa de que a diversidade da Mata Atlântica se esconde dos olhos distraídos na profusão de seus detalhes.

Pelo menos 94 espécies de orquídeas já foram catalogadas no Parque das Neblinas, um parque privado, mas aberto ao público, que brotou na virada do milênio em terras da Companhia Suzano de Papel e Celulose que desde meados do século passado pareciam condenadas a produzir carvão vegetal e polpa de eucalipto. Entre elas, a Barbosella miersii.

Masuji é presidente da Associação Orquidófila de Mogi das Cruzes e colecionador de micro-orquídeas. Uma delas tem seu nome, Miltonia kayasima. Outra foi batizada em homenagem a sua mulher – a Miltonia spectabiles “Laura Kayasima. Ele a descobriu anos atrás em matas de restinga do litoral santista, num trecho onde se ergueu nos anos 80 o condomínio Riviera de São Lourenço. É um empreendimento que a publicidade apresenta como um claustro devotado às preocupações ambientais. Reservou às áreas verdes um terço do terreno, “mais que o dobro exigido pela lei”. Tem viveiros de mudas “com o maior banco genético da flora regional”. E trouxe da Bahia coqueiros reais, para embelezar “as avenidas e praças do empreendimento”.

Mas Masuji conheceu o lugar quando o condomínio era mato. E andou por lá quando as primeiras árvores abriram alas ao loteamento. Um tronco caído surpreendeu-o certa vez pela fartura de orquídeas que definhavam ao sol, na clareira aberta pelos incorporadores. Intrigado, voltou com um amigo no dia seguinte para contá-las, levando duas máquinas de calcular. A soma bateu em 5 mil orquídeas, “fora as bromélias e os filodendros”. Se havia tantas epífitas numa só árvore, ele comenta, “imagine o que este país não perdeu, do Rio Grande do Sul ao Ceará, derrubando a Mata Atlântica sem saber o que ela continha”. Ele não cita o autor. Mas acabara de resumir numa frase, compacta como suas micro-orquídeas, as 484 páginas de “A Ferro e Fogo”, o livro em que o americano Warren Dean conta a história do Brasil pela saga da floresta que deu nome e identidade ao país, mas não viveu para vê-lo pronto.

Caçadas

Ele já batia o mato procurando flores quando os altos fornos da indústria siderúrgica tragavam árvores nativas em forma de carvão. “Até nas toras que eu via passar nos caminhões havia orquídeas”, ele conta. Saía com caçadores, “na época em que a caça era livre e a polícia florestal até vinha junto com a gente”. Mas não gostava tanto de caçar. “Meu negócio era ver o mato”, ele explica. Cansou de ver “anta, caititu, queixada, veado, jacutinga, inhambu e macuco” em florestas que estavam a caminho do fim. E foi nessas andanças que palmilhou o Sertão dos Freires.

O ônibus de Taiaçupeba tinha ponto final na beira do rio Itatinga, no coração da fazenda. “Aquilo era um lugar movimentado, com casas, armazém, escola, e o ônibus ia até lá, levando moradores. Mas nos fins de semana a metade dos passageiros a bordo ia caçar”, ele conta. Um dia perdeu um colega de turma, afogado no Itatinga. “Caiu um toró. O rio encheu de repente. Ele tentou voltar na correnteza e foi carregado. Só acharam o corpo dias depois. E durante muito tempo parei de ir lá”, diz Masuji, que não é homem de retórica.

Quando voltou a freqüentar a fazenda, não era mais o curioso que trazia orquídeas das pescarias e caçadas, porque a mãe as cultivava. Já não se limitava mais a catar plantas no mato. Também devolvia orquídeas a seu hábitat. Aos 17 anos, integrava, com veteranos orquidófilos, o júri de concursos na associação de Mogi das Cruzes. “Era um adolescente metido com um passatempo de aposentados e muito criticado por isso”, diz Masuji. Sentiu-se discriminado pela idade. Mas, aos 56 anos, conhece cada palmo dos redutos onde a floresta continua mais ou menos intocada, guardando jacarandás centenários no meio da vegetação primitiva. “São árvores enormes”, ele adverte. Tão altas que em seus galhos suas flores preferidas se perdem de vista, longe demais para merecerem a atenção de um observador.

“A orquidofilia é um interesse recente no Brasil. Vira e mexe alguém aqui está descobrindo uma espécie nova”, diz Masuji. Ele considera a mudança o sintoma de que, enfim, os brasileiros não se interessam mais pelo mato “só na hora de desmatar”. Mas não está convencido de que micro-orquídeas sejam um muito populares, a não ser quando ele as emprega em arranjos florais que cabem em tampas de refrigerante e pequenos cocos de palmeira, roídos por esquilo. Para começo de conversa, são mais difíceis de achar na mata. E, para Masuji, quem lida com essas plantas é aposentado, que tem tempo para cultivá-las, mas não a acuidade visual indispensável ao manuseio de flores minúsculas. Logo, “as orquídeas grandes sempre foram muito exploradas comercialmente e para as pequenas quase ninguém liga”.

Pode ser. Mas em 2003, 19 mudas de sua coleção viajaram a Hokkaido para uma exposição promovida pela TV japonesa HBC. O público não coube diante dos mostruários. Foi preciso dividi-lo em levas, que só entravam com senha e hora marcada. Era a primeira vez que o Japão via micro-orquídeas de perto. Antes, a emissora gravara um programa de 50 minutos no sítio de Masuji, onde a casa é de roça, o carro, de outra década e a varanda, dividida por tábuas soltas para separar as novas ninhadas dos cachorros adultos. O luxo está no quintal, pendurado nos caramanchões sombrios que se coroam de epífitas como miniaturas de floresta.

Há maneiras mais práticas de visitá-las. Masuji conduz grupos de 6 a 15 pessoas pelas trilhas do Parque das Neblinas. O programa leva um dia, das nove da manhã às quatro e meia da tarde. E conta com o endosso entusiástico de Du Zuppani, também mateiro tarimbado: “Andei no mato com ele mais de 10 vezes. E sempre tem novidade. Masuji conhece tudo. Sabe que, cortando a taquarapoca, os gomos têm água fresca para beber. Vê o que ninguém mais enxerga”. Pois é: como se queria demonstrar.

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