Se o governo Lula não fosse tão oblíquo e dissimulado, teria anunciado este mês aos brasileiros que lhe tomou mais naco de patrimônio público. Desta vez, um parque nacional, o do Araguaia, na ilha do Bananal. Mas, sendo o governo o que é, preferiu enterrá-lo sem a menor choro nem vela num decreto de homologação das terras dos Javaé, Karajá e Avá Canoeiro. O parque está agora, como o do Monte Roraima, sob o regime da “dupla afetação”. Destina-se simultaneamente “à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios”.
Os “direitos constitucionais dos índios”, pelo Artigo 231, incluem “o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos”. Delas, eles devem extrair o necessário “para suas atividades produtivas”, preservando “seus usos, costumes e tradições”. A começar, pela caça e a pesca. Foi assim que os usos, costumes e tradições dos índios que vivem na ilha do Bananal acabaram nos últimos anos com “o pirarucu, as tartarugas, os jacarés e as matas”, diz a ambientalista Maria Tereza Pádua. Ela criou a maioria dos parques brasileiros. E em 1981, quando o regime era militar e na presidência estava o general João Figueiredo, demitiu-se do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, porque o governo aprovara a construção de uma estrada no Araguaia.
Bons tempos aqueles, em que os céus de Brasília podiam ser de chumbo, mas à sua sombra ainda havia quem se demitisse por incompatibilidade moral com o manda-chuva da vez. O decreto de Lula passou em brancas nuvens. Como se fosse a coisa mais natural do mundo uma “dupla afetação”que entrega a caçadores e coletores a guarda de um parque nacional, definido pela legislação ambiental em vigor como uma unidade de uso indireto. Quer dizer, um lugar onde não se permite “consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais”.
Lá se vai o último pedaço da ilha do Bananal que, nos mapas oficiais, continuava verde. E quem quiser vasculhar a origem dessa partilha não corre o risco de se perder na noite dos tempos. Quando o parque foi criado, em 1959, tinha dois milhões de hectares. Ou melhor, a ilha inteira. Em 1971, um acordo entregou aos índios três quartos do Bananal. Eram 466 hectares para cada índio. Sobravam 500 mil hectares para o resto da população brasileira dividir entre si. Isso no papel. Porque, na prática, esses 500 mil hectares não passavam de 90 mil. Foi eles que Lula passou à administração dos Javaé, Karajá e Avá Canoeiro.
E o que o país tem a ver com isso? O Bananal fica tão longe quee só conheceu a popularidade no governo Juscelino Kubitschek, quando o encontro do presidente com um cacique fez sucesso no carnaval com um bordão que pesava como borduna: “Índio quer apito, se não der, pau vai comer”. Índio não quer mais só apito. Tem hoje uns 100 milhões de hectares do território nacional. E os pés plantados em outros 13 milhões de hectares de reservas naturais. De dupla afetação em dupla afetação, elas acabarão debaixo de seu tacape fundiário.
O que seria uma política, se o governo tivesse a fineza de discuti-la com os brasileiros desapropriados. Mas o decreto assinado por Lula tem três parágrafos, sob medida para um presidente que não gosta da palavra escrita. A maior parte do texto define as novas coordenadas geográficas do Araguaia. Nestes termos: “M-01, 10°11’59,817″ S e 50°10’18,766″ Wgr; M-02, 10°11’59,499″ S e 50°09’45,892″ Wgr.; M-03, 10°11’59,181″ S e 50°09’13,024″ Wgr.; M-04, 10°11’58,861″ S e 50°08’40,097″ Wgr.; M-05, 10°11’58,542″ S e 50°08’07,203″ Wgr.; M-06, 10°11’58,223″ S e 50°07’34,253″ … Etc. e tal, por mais 11 linhas.
Tudo isso talvez queira dizer que o Brasil está perdendo o costume de falar português na era Lula. Quando falava, o engenheiro André Rebouças abriu em linguagem muito clara o debate sobre parques nacionais no país. Propôs em 1876 a decretação de dois imensos parques, o Bananal e o de Sete Quedas. Sete Quedas jaz há mais de 20 anos no fundo da represa de Itaipu. A ilha do Bananal caiu agora no papo dos índios. Deve ser isso o que se chama de destino manifesto.
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