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Os peixes do Pantanal pedem água

O governo do Mato Grosso do Sul quer impor quatros anos de moratória à pesca profissional para recuperar os rios do Pantanal e garantir peixes para o futuro.

26 de maio de 2006 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A moratória da pesca no Pantanal, proposta pela Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Mato Grosso do Sul, é um duro golpe na imagem do Brasil como paraíso terrestre. Dessa velha lenda, que o historiador José Murilo de Carvalho apelidou de “mito edênico”, jorra a eterna fonte da prodigalidade brasileira. Ela já nos custou a Mata Atlântica quase toda e pelo menos um terço da floresta amazônica. Mas conserva de pé, no Hino Nacional, a estrofe sobre nossos bosques que, como se sabe, “têm mais vida”.

Agora, com o desprendimento que às vezes acomete políticos em fim de mandato, quando correm por fora da campanha eleitoral, o governador José Orcírio Miranda dos Santos, ou Zeca do PT, quer suspender por quatro anos a pesca profissional em seu estado. Com a trégua, daria aos grandes peixes migratórios uma chance de sair das malhas de uma economia predatória, que em pouco mais de duas décadas tornou raro o que parecia inesgotável no Pantanal.

Miragem de fartura

Pacus, dourados, cacharas e pintados estão encolhendo a olhos vistos nos rios da região. No começo dos anos 80, a produtividade média de um pescador pantaneiro chegava a 286,8 quilos por dia. Caiu exatamente 83,7%. No rio Miranda, a queda bateu em 96,8%. Estima-se atualmente sua média em 7,21 quilos por dia. Mas não ficou só na quantidade o milagre brasileiro da subtração dos peixes. Eles estão perdendo também no tamanho.

Os dourados diminuíram 58,8 para 34,7 centímetros. Os curimbatás, de 31,9 para 26 centímetros. Os dourados, 40%. E daí por diante. O projeto de moratória está lastreado numa safra recorde de estatísticas sombrias, colhidas por cerca de 260 policiais e voluntários para o biólogo Thomaz Liparelli, Superintendente de Pesca do Mato Grosso do Sul. Há três anos, Liparelli inaugurou o cargo. Vinha de uma longa experiência no comando do Programa de Incentivo à Conservação da Natureza na Fundação O Boticário, em que monitorava a execução de dezenas de projetos ambientais espalhados pelo país. E levou para o governo um doutorado em ictiofauna. Logo bateu de frente com a miragem do Pantanal sem fim, que dez anos atrás ainda era endossada pela bióloga Emiko Kawakami de Resende, da Embrapa. Resende calculou em 1993 que, daquela imensidão inundável de 62 mil quilômetros quadrados, daria para tirar pelo menos 105 mil toneladas de peixe por ano. Ou, quem sabe, 307 mil toneladas.

Em poucos anos de exploração desmedida a produção acaba de bater em 1,4 mil tonelada anual. “Com isso se destrói um mito comum no inconsciente coletivo”, diz ele. Ou seja, o mito de que “biodiversidade e abundância navegam juntas”. Enquanto a pesca caía, crescia 300% em 25 anos o credenciamento de pescadores profissionais pelo governo federal, pela secretaria estadual de Meio Ambiente e pelas associações locais de pescadores, todos competindo num torneio de assistencialismo político. No ano passado, quando Liparelli passou as concessões em revista, conferindo nada menos de 559.872 registros de CPF, encontrou carteiras em mãos de funcionários públicos, aposentados, empresários e motoristas de táxi de Corumbá, Ladário, Três Lagoas e Anastácio.

Política de extermínio

Essa operação, chamada “Cardume”, cassou, entre outras espécies exóticas de pescadores, 57 assentados do Incra em lotas da reforma agrária. Encontrou 2.960 profissionais pendurados no cabide do seguro desemprego e 16 foragidos com mandados de prisão. Trouxe à tona curiosidades burocráticas, como a paradoxal corrida pela expedição de carteiras que ocorria em novembro, quando começa o defeso no Pantanal. Logo, num período em que não se pesca. Tudo porque no período de reprodução, que dura até fevereiro, o profissional passa a colher na bacia das almas do assistencialismo oficial uma cesta básica e um salário mínimo por mês. E a carteira era procurada por valer uma sinecura de quatro meses.

“Grande parte dos dirigentes das colônias e em especial da Federação dos Pescadores de Mato Grosso do Sul”, diz o relatório da força-tarefa que tratou da faxina, “não é nem nunca foi de pescadores profissionais”. Em outras palavras, aquilo era uma bagunça. Mas uma bagunça tão bem organizada que, no mês passado, a Assembléia Legislativa de Mato Grosso do Sul aprovou por unanimidade um projeto do deputado Akira Otsubo, liberando equipamentos proibidos, como tarrafas e bóias com anzóis, a pretexto de resolvar a crise dos pescadores. Para políticos como Otsubo, se os peixes estão sumindo, o remédio é acabar com eles mais depressa, intensificando seu extermínio.

Mas o expurgo mostrou que existe outro caminho. Dos 15 mil que havia nas várias listas oficiais, sobraram 1.284 pescadores ao todo, em 7 colônias. E, com a moratória, seriam encaminhados a programas de treinamento, “dando-lhes condições de exercer sua atividade com maior grau de responsabilidade ambiental”, diz a proposta. De quebra, o curso lhes abriria a porta de uma nova atividade, que é acompanhar as embarcações de pesca turística, como fiscais da superintendência. Eles já têm direito à cesta básica e ao salário mínimo da temporada de defeso. E estender a rede de proteção por oito meses, por quatro anos de inatividade compulsória, parece o melhor negócio que o país pode fazer no Pantanal. O pior todo mundo está cansado de saber qual é.

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