Colunas

O Jaú e a derrota amazônica

O Parque Nacional do Jaú, segundo do país em tamanho, corre o risco de perder um pedaço de seu território para uma reserva extrativista de 150 caboclos.

19 de julho de 2006 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A campanha mal começou e já se sabe que o Parque Nacional do Jaú vai perder a eleição. Como bichos e plantas não votam, e gente é coisa que as urnas sabem buscar até nos mais remotos confins da Amazônia, armou-se em Brasília uma comissão para tirar-lhe as margens do rio Unini, onde moram cerca de 150 pessoas. Entregue à população ribeirinha, ele viraria mais uma reserva extrativista. E reserva extrativista, como já explicou o historiador Kenneth Maxwell, pode soar muito bem, mas é um conceito formado pela junção de duas palavras que se anulam.

A notícia correu outro dia no Ministério do Meio Ambiente como se fosse a coisa mais natural do mundo, o que, na prática, bafejada pelo populismo ambiental, está mesmo virando. Mas o Jaú não é um fundo de quintal qualquer. Está lá desde 1980. É o segundo do país em tamanho, com seus 2,2 milhões de hectares. Figura em documentos oficiais como um lugar de “importância extremamente alta”, numa “área prioritária para a conservação da Amazônia”. Tem problemas de estrutura, sim, como todas as unidades do Ibama. E, embora esteja encravado no cafundó do território nacional, aguarda o desfecho de um processo de regularização fundiária que se arrasta há um quarto de século. Falta acertar 2% de suas terras. E são elas que agora ameaçam mutilá-lo, abrindo um precedente que na certa se espalhará pelo país inteiro.

Berçário natural

Enfim, o Jaú pode ter lá seus problemas. Mas não é um parque de papel, como tantos na Amazônia. Nele funciona, desde meados da década de 80, um posto de fiscalização flutuante. Tem uma fauna orçada em pelo menos 460 espécies de aves e 300 de peixes. É um berçário natural de tucunarés, atraindo o olho gordo da indústria da pesca esportiva, que tem lá sua importância econômica para a cidade de Barcelos. A Unesco registrou-o há seis anos como Patrimônio da Humanidade. Mas nem isso quer dizer muita coisa, quando no outro prato da balança pesam os interesses de uma “comunidade tradicional”, que quer dizer tudo. Segundo o biólogo Fábio Olmos, na definição vigente de comunidade tradicional cabem “índios, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, açorianos, pantaneiros, geraizeiros, jangadeiros, faxinais, açorianos, pomeranos e até ciganos”.

Em suma, entram todas as minorias que, infladas por incentivos políticos, crescem sem parar, formando uma frente de tal magnitude que, contra elas, não há parque que resista. Foi assim que, segundo Olmos, racharam mais ou menos ao meio os 451 mil hectares do parque nacional da Serra da Cotia, em Rondônia. No caso, para não contrariar dois núcleos de gatos pingados que, somados, não passavam de 39 pessoas, incluindo um foragido da Justiça. No Jaú, trata-se de pescadores, caçadores e coletores de produtos silvestres. Fora um ou outro morador que eventualmente cai na rede do tráfico de pirarucus e tartarugas, eles pareciam conviver sem maiores atritos com os fiscais do Ibama. E há quatro anos estavam em negociação para se mudar dali, ganhando uma nova reserva extrativista de 800 mil hectares fora do parque, na margem direita do rio. Lá o terreno é menos alagadiço, prestando-se à agricultura de subsistência, o que não acontece onde eles estão.

Vitória Amazônica

Mas no meio do caminho havia uma ONG, a Fundação Vitória Amazônia. Ela chegou ao Jaú dez anos atrás para fazer pesquisas. E deitou raízes, tornando-se interlocutora no processo de reassentamento. Era uma ONG “parceira”, dizia-se no Ibama, que lhe encomendou o plano de manejo do parque, uma das maiores empreitadas disponíveis no mercado de serviços ambientais. Era praticamente da casa. Uma OMG, ou Organização Meio Governamental, com uma representante no ministério em Brasília. E tomou o partido dos moradores contra o parque, pastoreando-os na ação civil pública 2004.32.00001762-9 contra a União.

Cutucado na Justiça, o governo reagiu recuando, como é de praxe nestas ocasiões. Criou este mês a tal comissão de estudos, para redesenhar o parque, cujos limites por sinal foram demarcados com a ajuda da Vitória Amazônica. Acabará fazendo o que queria desde o começo a secretaria de Desenvolvimento Social do Amazonas, onde o governador Eduardo Braga apóia a reeleição do presidente Lula e vice-versa. Só pode ser coincidência, pois estas coisas no Brasil não acontecem. Mas convém notar que o grupo de trabalho veio junto com a campanha.

Leia também

Notícias
19 de dezembro de 2025

STF derruba Marco Temporal, mas abre nova disputa sobre o futuro das Terras Indígenas

Análise mostra que, apesar da maioria contra a tese, votos introduzem condicionantes que preocupam povos indígenas e especialistas

Análises
19 de dezembro de 2025

Setor madeireiro do Amazonas cresce à sombra do desmatamento ilegal 

Falhas na fiscalização, ausência de governança e brechas abrem caminho para que madeira de desmate entre na cadeia de produção

Reportagens
19 de dezembro de 2025

Um novo sapinho aquece debates para criação de parque nacional

Nomeado com referência ao presidente Lula, o anfíbio é a 45ª espécie de um gênero exclusivo da Mata Atlântica brasileira

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.