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Um naturalista frustrado na Costa Rica

Escritas há mais de 30 anos, as memórias do naturalista americano Alexander Skutch, que viveu mais de 60 anos na Costa Rica, acaba com a miragem do país como paraíso tropical. Se lá é assim...

11 de outubro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Nada melhor para fechar como se deve uma viagem à Costa Rica que as memórias do botânico Alexander Skutch. Sem elas, o forasteiro pode voltar de lá achando que esteve mesmo no paraíso – ou, pelo menos, no Brasil dos anos 50, o que cada vez mais parece a mesma coisa. Até ele encontrar um tempo no vôo de retorno para abrir o livro, o país terá feito tudo para convencê-lo de que ali fica o trópico em versão suíça.

A Costa Rica pode ter dois ex-presidentes recém-saídos da cadeia por corrupção. E quatro sob investigação. Mas o atual presidente, Oscar Árias Sanchez, voltou ao cargo este ano falando, logo nos primeiros parágrafos do discurso de posse, em “preservar a vida no planeta”. As encostas que abraçam o aeroporto seriam paisagens quase alpinas, se o verde não fosse meio exagerado.

Entre parques e reservas, os santuários naturais cobrem 28% da república. No do vulcão Poás, o chão do banheiro em plena trilha reluz de limpeza. A uma hora de San José, distância que dá para cobrir de táxi por menos de 100 dólares, o Parque Nacional Braulio Carrillo tem espaço de sobra para cobrir um andarilho com selva contínua por mais de uma semana, além de serras e rios sem conta.

Metade de Pernambuco

Não é à-toa que os 50 mil quilômetros quadrados da Costa Rica, um pouco mais que a metade do estado de Pernambuco, resumem para um milhão e tanto de ecoturistas estrangeiros que o percorrem por ano, tudo o que eles estão dispostos a ver de perto em matéria de florestas úmidas, papagaios, onças, bromélias, orquídeas e chuvas torrenciais.

É aí que entra o livro. Ele narra, na primeira pessoa, a vida de um naturalista na Costa Rica. Ou melhor, de um pioneiro, que morreu em 2004, depois de passar mais de 60 anos na América Central. Quando saiu em 2001 a edição em espanhol de suas memórias, Skutch já passara dos 97 anos. Estava lá desde 1935, trazendo dos Estados Unidos um doutorado em Botânica e, das primeiras viagens pela Guatemala, um apetite insaciável pela observação das aves nativas, assunto de boa parte dos 30 livros que escreveu na mesma casa espartana, construída em pau-a-pique, emassada com estrume de vaca e envolta pelos 50 hectares de mato que ele manteve de pé, enquanto a seu redor um vale de imensas árvores seculares ia virando pasto e cafezal.

Derrubada ininterrupta

Foram seis décadas de derrubada ininterrupta. Em torno de sua primeira cabana, um casebre de palha coberto por folhas de cana onde ele preparou suas primeiras coleções de exsicatas, já era assim. “Cada colono”, ele conta, “desejava tomar posse de tanta terra quanto pudesse para sua forma tosca de agricultura e, para conseguir o título legal de propriedade, a lei o obrigava a desmatar e semear pelo menos a metade da área. Portanto, a cada verão ele retomava com zelo seu ataque à floresta, que cada mais se reduzia”.

No verão – ou seja, nos meses de estiagem – “dia após dia, em breves intervalos durante toda a manhã, eu ouvia o gemido de uma grande árvore moribunda, quando começava a estalar o cerne da madeira, cada vez mais estreito, entre os cortes do machado em lados opostos”.

Ao rumor, seguia-se “o sussurro agitado de uma miríade de folhas que despencavam pelo ar e de um golpe como um trovão, que sacudia a terra e ressoava longe no vale, quando a árvore enorme se chocava violentamente com o lugar onde descansaria para frente”. Os lenhadores gostavam dessa faina, “apesar de sua dureza e do perigo sempre presente de serem feridos ou mesmo aplastados sob um galho seco”. Ver árvores gigantescas caírem “lhes dava um deleite pueril”. Depois, em fevereiro e março, com a madeira seca, começavam as queimadas. “Num só dia pude contar dez grandes colunas de fumaça que subiam por todos os lados”, como nuvens “gordas e brancas”. O céu perdia “sua claridade fina”. A luz do sol, “filtrada pelo fumo, ficava cor de âmbar”. E “a atmosfera parecia adoecer”, com “os vapores acres da madeira ardendo, que irritavam o nariz”.

Não é preciso ir mais longe. Os parágrafos que tratam do problema atravessam quase todos os capítulos. E brasileiro não precisa disso. Sabe, por experiência própria, o que Skutch queria dizer sobre a mania nacional de botar fogo no mato. Vegetariano, frugal a ponto de sair para viagens solitárias com um punhado de bolachas na sacola, pacifista para ser um naturalista capaz de estudar, apartidariamente, os ataques de predadores aos filhotes que observava, ele acabou dono de um retalho de selva cercado “pelo berreiro dos aparelhos de som”, no meio de um centro comercial, à margem da estrada que liga o México ao Panamá. Tudo isso sem sair de onde estava desde a década de 1940.

Se “o vale tivesse continuado como era”, Skutch lamenta, “seria um exemplo brilhante de como o homem pode viver num ambiente íntegro”. Como isso não ocorreu, o sítio virou reserva, incorporado ao Centro Científico Tropical ainda com Skutch morando lá dentro. Mas, para ele, o lugar a essa altura não passava de “um modo imperfeito e precário” de lembrar “a glória original do planeta”. Se isso era o que ele tinha a dizer sobre o que aconteceu na Costa Rica, imagine-se o que não diria se tivesse fincado suas estacas numa floresta brasileira.

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