A jornalista Míriam Leitão ganhou sozinha a campanha presidencial. Colheu a única xepa aproveitável do fim de feira que foi este segundo turno. Mostrou que, se os candidatos levassem mais a sério o que eles mesmos dizem na TV, nas entrevistas ou mesmo no varejo das palavras jogadas ao vento, teriam içado a alturas nunca vistas a controvérsia sobre a privatização de bens e serviços públicos no Brasil. Mas eles não estão nem aí para isso. E só ela pareceu notar que, na vida real – ou, pelo menos, durante seu primeiro mandato – o presidente Lula não foi assim tão alérgico à privatização.
O clima de eleição tende a deixá-lo mais nordestino, metalúrgico e doutrinário. Mas, na prática, ele é bastante flexível – nesse ponto, como nos outros. Tanto que confiou à iniciativa privada a floresta amazônica. Ela mesma, aquela que o artigo 255 da Constituição considera “patrimônio nacional”, tratamento jamais dispensado a trens ou telefones. Seu governo mudou a lei e a burocracia ambiental, para entregar a exploração da Amazônia a concessionários, cedendo-lhes a madeira nativa por 30 anos, prorrogáveis por mais 30. Ou seja, fez uma privatização, sem tirar, nem pôr, esperando que, se for bem explorada comercialmente, a floresta resista melhor ao uso comercial do que ao abuso informal. Conservá-la seria função estratégica do Estado brasileiro. Mas a ministra Marina Silva acha que isso é coisa que o Estado brasileiro – no caso, o Ibama que ela comanda – não sabe, ou não pode fazer.
Hino Nacional
É “uma enorme contradição”, concluiu a repórter. Lula desanca “um mecanismo ao qual ele mesmo está aderindo, e com um patrimônio muito mais delicado”. Tudo bem, ele diz uma coisa e faz outra. Mas será mesmo contraditório? O presidente estava provando, mais uma vez, que de opinião pública ele entende como ninguém. Sabe que esta é a terra onde todos assobiam o Hino Nacional, mas poucos se arriscam a cantar suas estrofes. Deve ser por isso que temos o mesmo hino desde o começo do Império. A música de Francisco Manuel da Silva pegou há muito tempo. A letra de Joaquim Osório Duque Estrada, feita um século depois da melodia, deve estar esperando o bicentenário da Independência, daqui a 16 anos, para ver se emplaca.
O Brasil não é um país ao pé da letra. Não sendo, passou do governo Fernando Henrique ao governo Lula mexendo muito no acessório, mas sem tocar no essencial. E o essencial é a privatização, venerando projeto nacional, em curso há cinco séculos. Já estava aqui quando a colônia era privatizada a golpes de sesmarias. É coisa nossa. Não iria acabar assim, sem mais nem menos, só porque em 2002 os petistas tomaram posse da presidência. Eles encontraram já leiloadas todas as estatais que os tucanos tiveram a petulância de passar no martelo, deixando-lhes as jóias inalienáveis da Coroa, como o Banco do Brasil ou a Petrobras. Mas não renunciaram à privatização. Simplesmente, modernizaram o velho hábito, adaptando-o aos novos tempos.
Nisso, o governo Lula trocou seis por meia dúzia. Privatizou simbolicamente o Banco do Brasil e a Petrobras, anexando-os ao pátio de manobras do PT. E acertaram com “felizes empreiteiros” a venda de “ferrovias, portos e estradas inexistentes”, como ensinou esta semana o jornalista Elio Gaspari. Bingo! Os petistas criaram o mercado futuro da privatização, chamado Parceria Público-Privada. PPP, para os íntimos. Ou “privataria petista”, segundo Gaspari.
Parque da Cidade
Erraram os comentaristas políticos que estranharam a presença da privatização na campanha eleitoral, como se fosse um assunto alheio aos grandes interesses nacionais. É verdade que ela foi posta no debate por malícia do governo. Se, de um lado, Geraldo Alckmin não estivesse sempre pensando no que vai dizer daqui a pouco e, do outro, Lula não falasse de quase tudo, menos do que lhe passa realmente pela cabeça, ela teria dado um debate cilcópico, do tipo “nunca antes na história desse país” que, como diz o escritor João Ubaldo Ribeiro, continua sendo este país. Sob a privatização caberiam todos os outros problemas. Porque quase todos os eles começam ou acabam privatizando alguma coisa que deveria ser pública.
A começar pela Amazônia, se os candidatos fossem tão atentos quanto Miriam Leitão. Passando pelas cidades de todos os portes, onde todo o espaço público vai se privatizando a olhos vistos, inspirando recentemente o governo Lula a remendar este o Código Florestal de 1965, para regularizar as invasões nas áreas de proteção de encostas e margens de rio. Se as matas nativas, as águas, os terrenos de marinha e o ar fossem efetivamente conservados como bens públicos, estariam extintos os ecochatos, por falta de assunto. Toda agressão ambiental é, antes de mais nada, a apropriação indébita de um patrimônio universal.
Os políticos não discutem a privatização porque é uma unanimidade nacional. Cada um faz a sua. E tudo acaba sendo de quem pegou primeiro. No Rio de Janeiro há até um parque público em franco processo de privatização. Há pouco mais de meio século, pertencia ao industrial Guilherme Guinle. O governo comprou-o. A prefeitura botou seus funcionários para morar lá dentro. Nasceu uma favela na beira de seus portões. Hoje ele passa a maior parte do dia fechado para o público e aberto para os residentes, com guarda na entrada. Chama-se Parque da Cidade. Como ainda não virou oficialmente um condomínio privado, mantém o nome em português.
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