O primeiro resultado do Programa de Aceleração do Crescimento foi mostrar que o presidente da República pode governar falando português. Em lugar daqueles improvisos destrambelhados, a serviço da mitologia do comunicador popular, Lula preferiu desta vez a leitura. Leu um discurso de conciliação, em que os pronomes se entendiam com os verbos, as palavras, umas com as outras e as orações intercaladas, com as vírgulas em que se encaixavam. Dava para sentir, em cada frase, o esforço de um redator anônimo para provar que simplicidade não é antônimo de sintaxe.
Tudo o que ele disse na ocasião parecia discutido e pensado. E há trechos que parecem obra de perfumista. Como o parágrafo onde o presidente afirma que o brasileiro nunca teve que abrir mão da esperança. “Mesmo aquelas pessoas que, por precipitação emocional ou volúpia interesseira, viram em problemas passageiros alimento para uma retórica da desesperança, mesmo elas não tiveram combustível para prosperar em seu pessimismo”. É difícil imaginar um modo mais elegante de resumir a mixórdia que ocupou metade de seu primeiro mandato com aloprados petistas, traidores íntimos e outros “problemas passageiros” que agora repousam no STF. Destilada em eufemismos, até a crise do primeiro governo cheira bem.
Ambiente interno
O que cheira mal, no discurso, é o silêncio sobre o meio ambiente. Esse é o tipo do cuidado que hoje deveria fazer parte de qualquer aposta econômica no destino dos recursos naturais. No mundo, cada vez mais ele marca a fronteira do avanço com o atraso. Aqui, pelo visto, ainda não. Lula só mencionou “o ambiente” duas vezes. Primeiro, para dizer que espera implantar finalmente em sua administração trabalhistra a “cultura do trabalho” – ou seja, “a verdadeira cultura produtiva”. Para isso, acredita que será preciso “contagiar, de forma especial, o ambiente interno do governo”. Adiante, ele voltou ao “ambiente”, declarando que “a democracia é um ambiente mais saudável para o crescimento”. E com isso garantiu as manchetes do dia seguinte.
Sobre o ambiente propriamente dito, nem um pio. O que talvez não soasse como manifesto de desdém pelo assunto, se ele estivesse improvisando. Nesses casos, os brasileiros já sabem que não podem pegar o presidente pelo pé da letra. Mas, num discurso como aquele, redigido com notória cautela por um profissional da conveniência, as omissões não ocorrem por esquecimento. Aí só se esquece por deliberação. E fica o não dito pelo dito. Lula, portanto, teve a intenção de deixar claro que vem por aí, na melhor das hipóteses, mais um surto predatório do desenvolvimentismo retrógrado. Depois ninguém diga que o homem não avisou.
A floresta amazônica que se cuide. Ela está numa encruzilhada por onde o PAC quer passar – “a 120 por hora, botando a turma toda do passeio para fora” – com gasodutos, estradas, terminais graneleiros, hidrovias e hidreléticas. O plano destina R$ 32 bilhões aos 12 mil quilowatts de energia nova que espera extrair até 2010 dos rios da Amazônia. Prevê a conexão de rodovias com portos fluviais, abrindo para a soja as últimas fronteiras selvagens. É um plano para o futuro feito com projetos do passado.
Na encruzilhada
Promete obras controversas. Elas dependem de estudos e relatórios de impacto ambiental. Mas a ministra Dilma Roussef afirma que esses documentos estão prontos. E a ministra Marina Silva, que há muito tempo não diz muita coisa, parou de falar na idéia de abrir esses relatórios à discussão pública, publicando-os na internet pelo site do Ibama. Em resumo, com 85 mil quilômetros de desmatamento amazônico em seu currículo administrativo, Lula ainda ”acha que pode apresentar um slide com linhas cruzando a floresta”, como escreveu a jornalista Miriam Leitão, “sem outro slide em seguida, avisando sobre os cuidados tomados para evitar que a destruição se acelere”.
Pendurado no PAC, há um projeto de lei regulando o Artigo 23 da Constituição, para aumentar “a eficiência na atuação do poder público com vistas à proteção do meio ambiente, reduzindo os questionamentos judiciais sobre as competências entre as competências de cada entre federativo”. Sua prioridade é “contribuir para a realização de novos investimentos”. Tende a centralizar uma política ambiental que aos poucos, para o bem e para o mal, vai se descentralizando por estados e municípios. De reforçar a equipe do Ibama, para desentupir pela eficiência a burocracia do licenciamento, o documento aparentemente se esqueceu. Bem-vindo ao governo Lula, Parte 2.
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